segunda-feira, 4 de maio de 2015

Atropelados por um trem - Coutinho

1. O escritor Jeffrey Archer escreveu há uns tempos que dez jovens são mortos todos os dias em Mumbai, na Índia, quando cruzam a linha férrea. Mas não pelos motivos que o leitor imagina.
Muitos deles são ceifados pelo trem por vaidade: com seus smartphones na mão, a maioria procura captar o momento em que a máquina está quase, quase, quase em cima do artista. Muitos deles, provavelmente usando um pau de selfie, não sobrevivem para contar. Haverá melhor exemplo sobre a era narcísica em que vivemos?
Não creio. Até porque o patrono da seita –Narciso "lui même"– já tinha conhecido igual fim: deslumbrado pelo reflexo da sua imagem nas águas do rio, Narciso foi ficando, ficando, ficando. Até que a morte chegou para levar o seu corpo definhado.
E quem fala dos narcisos da Índia, fala dos narcisos ocidentais. Uma amiga contava-me entre lágrimas que vivia situação delicada com a filha. Parece que o namoro da petiz terminara com estrondo e o rapaz ameaçava agora partilhar nas "redes sociais" as "selfies" que ambos tiraram em estado adâmico.
Sugeri denúncia às autoridades. E depois acrescentei que esses casos de "vingança pornográfica" não são apenas casos de polícia. São casos de educação: se o amor é sempre eterno enquanto dura, convém recordar mais vezes a segunda parte dessa frase, e não apenas a primeira. Há selvagens onde menos esperamos.
Ou, por outras palavras, a melhor forma de não ser atropelado por um trem é não tirar "selfies" na Índia.
A minha amiga, como convém, só escutou o que quis escutar. E depois perguntou, em jeito acusatório, se eu não estaria a confundir as coisas, desculpando o selvagem.
É nesses momentos que uma pessoa sente vontade de emigrar para Mumbai.
2. Haverá coisa pior do que ir ao cinema e ter o companheiro do lado a comer ruidosamente pipocas?
Ruy Castro diz que não. Escreve o emérito colunista desta Folha que, assistindo a "Um Corpo que Cai" (sim, é a obra-prima de Hitchcock), alguém abriu um Cheetos de queijo e estragou o momento épico do romance: quando James Stewart e Kim Novak se beijam, as ondas rebentam nos rochedos e a música acompanha a fúria do mar.
Durante uns tempos, também eu acreditei que não haveria coisa pior do que salas de cinema transformadas em manjedouras. Hoje sei que estou errado. Duplamente.
Primeiro, porque levar produtos gastronômicos para dentro de uma sala de espectáculos pode ter a sua utilidade (já lá vamos).
E, depois, porque a humanidade consegue sempre fazer pior –uma lei que deveria ser ensinada nas escolas desde a mais tenra idade. Exemplo?
Semanas atrás, saí de casa para assistir a "Sweeney Todd", um dos grandes musicais da Broadway "moderna", escrito e composto por Stephen Sondheim.
O programa prometia: Emma Thomson seria mrs. Lovett, o baixo-barítono Bryn Terfel seria o vingativo Todd, disposto a degolar a humanidade inteira por ofensas passadas.
Mas quando o espectáculo começou no Coliseum de Londres, apercebi-me que não seria apenas Thomson, Terfel ou outros membros da English National Opera a cantarem esta história.
Um fã de carteirinha, que decorou a obra do primeiro ao último verso, sentou-se ao meu lado e cantava todas as músicas com arrepiante devoção. Melhor: para dar maior realismo à sua interpretação, ele próprio mudava de voz (feminina-masculina-feminina) em caso de dueto.
Uma forma de acabar com aquilo seria fulminar o camarada com uma expressão assassina. Mas o camarada cantava tudo de olhos fechados, em atitude de transe, o que tornava igualmente inúteis os sons guturais da assistência circundante exigindo silêncio e até toques no ombro para que ele acordasse.
Perante o dilema, e sabendo que os teatros ingleses proíbem Cheetos, mas não álcool (um hábito civilizado), a solução foi radical: despejar nas calças do homem um copo de vinho, na impossibilidade de ser um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O nosso cantor despertou, olhou para as calças e então eu pedi as devidas desculpas pela imprudência: "Mil perdões. Quando você começou a cantar, eu me assustei".
Ele levantou-se para ir banheiro e, sem a pujança vocal de outros tempos, comentou apenas: "Bando de selvagens".
Inexplicavelmente, não retornou mais. 

Ovelhas negras, ovelhas brancas - Coutinho

Stálin era um visionário: na sua paranoia criminosa, ele conseguiu apagar de fotos "oficiais" os inimigos reais (ou imaginários) da sua estimável ditadura muitos anos antes do Photoshop ser inventado.

Mas não só: com igual engenho, ele próprio aparecia em fotos decisivas, sobretudo na companhia de Lênin, como forma de mostrar ao povo soviético quem era o verdadeiro herdeiro bolchevique (tradução: era ele, e não Trótski).

Passou quase um século. Mas a tentação de "apagar" o passado não larga certas cabeças com deficit de liberdade.

Um caso aparentemente menor mostra como: leio na virtualíssima "Slate" que Ben Affleck, um conhecido ator e "liberal" americano ("liberal" no sentido esquerdista do termo), pediu à PBS (televisão pública norte-americana) que um fato da sua família não fosse incluído no documentário "Finding Your Roots" ("encontrando suas raízes").

O referido documentário, da autoria de Henry Louis Gates Jr., procura revelar ao mundo quem eram os antepassados de várias figuras públicas. E um dos antepassados de Ben Affleck era –ó miséria das misérias!– um proprietário de escravos.

Affleck, depois de um presumível achaque nervoso, pediu à PBS para apagar essa nódoa. A PBS, em grande gesto deontológico que só honra o jornalismo, concordou. Primeiro, porque o antepassado escravocrata de Affleck "não era má pessoa", disse o autor do programa (sem rir).

E, depois, porque Affleck tinha nomes mais interessantes no cardápio –generais, ativistas dos direitos humanos etc.– que não comprometiam a canonização do ator. Para que sujar essa canonização com a ovelha negra, ou branca, da família?

O caso é primoroso porque mostra duas coisas sobre a cabeça de um ator que gosta de debitar grandes lições de moralidade sobre os outros –mas que abomina os espelhos que tem em casa.

A primeira lição é a incorrigível ignorância que existe nessa cabeça: qualquer cidadão de um país com passado escravocrata pode ter antepassados pouco recomendáveis. Os Estados Unidos são um caso.

Portugal seria outro: nunca fiz uma história genealógica da família. Falta de interesse, de tempo, ou ambos. Mas não me espantaria que, nos séculos 16 ou 17, houvesse por lá um Coutinho qualquer que, depois de comprar escravos na África (normalmente de um vendedor negro, que os capturava nas profundezas da selva para os vender na costa), os transportasse depois para as plantações do Novo Mundo.

A ideia de que eu, nascido em 1976, sou responsável por eventuais crimes cometidos por antepassados 300 ou 400 anos atrás só faz sentido na cabeça analfabeta de Ben Affleck.

Confrontado com um antepassado escravocrata, bastava que Affleck usasse algum humor ("felizmente, não o conheci") para que o assunto ficasse encerrado.

Só que "humor" é palavra interdita para um moralista. E esta é a segunda lição: se o caso não servisse para fazer piada, Affleck poderia sempre pedir "perdão" pelos crimes alheios, mantendo o seu halo de santidade.

Essa atitude, aliás, tem sido moda no Ocidente desde que Bill Clinton pediu desculpa pela escravatura; Tony Blair pelas fomes da Irlanda no século 19; ou até João Paulo 2º pelas Cruzadas.

As consciências progressistas sempre aplaudiram essas expiações anacrônicas, talvez por imaginarem que, hoje, ano da graça de 2015, a nossa imaculada conduta jamais será reprovada por quem viver em 2215.

O problema é que, nos Estados Unidos, pedir desculpas não chega. E o milionário Ben Affleck poderia ser confrontado com a indústria das reparações, que nos últimos anos tem exigido quantias exorbitantes à República americana pelos crimes da escravatura.

Perante todos esses dilemas, o que fez Affleck? Simples: para proteger a hipocrisia da imagem (e o recheio da carteira), pediu o exato tipo de censura que ele é sempre o primeiro a condenar. E como sabemos disso?

Ironia final: porque o pedido de censura de Affleck foi revelado pelo WikiLeaks, essa nobre instituição que é o sonho úmido de qualquer "liberal" que se preze.

Não há maior escravidão que esta: sermos vítimas da nossa própria vaidade e estupidez. 

O gosto do sangue - Coutinho

Cometer genocídios não é para qualquer um. Com a Segunda Guerra Mundial em marcha, as tropas nazistas eliminavam os judeus da Europa de forma manual, ou seja, fuzilando em massa para valas comuns.

Mas o procedimento, executado por jovens soldados com resistência psíquica normal, promovia distúrbios anormais. Era preciso encontrar uma forma mais "impessoal" e maquinal de tratar do assunto sem perturbar a saúde mental das tropas do Reich.

A Conferência de Wansee de 1942 deu uma ajuda para instituir essa matança "industrial". Sinistra ironia: não foi apenas o ódio antissemita que pôs as câmaras de gás e os fornos crematórios a fazer horas extra. Foi também a sanidade do soldado comum, que colapsava depois de dezenas, centenas de assassinatos a sangue frio.

Passaram 70 anos. E os jihadistas do (autointitulado) Estado Islâmico ainda estão no início das suas barbáries. É duvidoso que, no clima de fervor religioso e homicida em que vivem, os militantes tenham uma saúde mental tão frágil como as tropas de Hitler. Mas é impossível não detectar algumas semelhanças nos procedimentos gerais do grupo quando os comparamos com os totalitarismos europeus.

As semelhanças podem ser simbólicas: Hitler perseguiu e destruiu artistas "decadentes" que, pela criação modernista, se afastavam da utopia rácica germânica.

Os jihadistas entendem do assunto: não há semana em que não surjam notícias de museus, monumentos ou cidades inteiras devidamente destruídas na busca de uma nova utopia.

E, depois das ações simbólicas, temos as sangrentas propriamente ditas: em Fevereiro, mais de duas dezenas de cristãos coptas foram decapitados pelos jihadistas no Egito. Agora, é provável que 30 cristãos etíopes tenham sido executados na Líbia. Curioso: a "praga judaica" de ontem foi substituída pela "praga cristã" de hoje.

Curioso, sim, mas não original: a atitude faz parte do pensamento totalitário: encontrar um grupo - os judeus, para os nazistas; os "kulaks", para os bolcheviques; os cristãos, para os jihadistas - que passam a ocupar o altar sacrificial da loucura.

Enganam-se os que pensam que o (autointitulado) Estado Islâmico é um fenômeno "medieval". Isso é um insulto à Idade Média.

Pelo contrário: como John Gray sugere em livro que recomendo ("Al-Qaeda e o que Significa Ser Moderno", editora Record), o que define o islamismo radical é a vocação bem moderna de refazer o mundo (e os homens) à luz de uma concepção utópica de política.

Quando o leitor escutar algum sábio para quem a palavra "islamofascismo" é uma simplificação e um erro, por favor, não se admire: o seu interlocutor não faz a mais pálida ideia do que foi o fascismo. Ou o comunismo.

Eric Garner, Walter Scott, Michael Brown: o que têm esses nomes em comum? Respondo: todos eles foram vítimas de brutalidade policial nos Estados Unidos. Pormenor relevante: os três eram negros.

Qualquer pessoa racional, confrontada com os fatos e em caso de crime provado, só pode esperar que os policiais sejam punidos. Só pode esperar, no fundo, que o Estado de Direito seja cego e justo.

Infelizmente, a "escritora" Toni Morrison, 84, deseja mais: em entrevista ao "The Sunday Telegraph" a Nobel da Literatura disse que gostaria de ver um policial abater pelas costas um adolescente branco desarmado.

A frase arrepia por dois motivos.

O primeiro, óbvio, é que a violência policial também se exerce contra brancos - sobretudo contra brancos pobres ("white trash"), que vivem nas margens da sociedade americana.

Mas a frase revela mais: desejar a morte de um adolescente branco para compensar um crime sobre um adolescente negro só revela o exato tipo de racismo que a sra. Toni Morrison condena na polícia.

Falando de marionetes - Coutinho

Leio com prazer o último livro de John Gray, "The Soul of the Marionette" (Allen Lane, 179 págs.). É um ensaio sobre a liberdade humana —ou, dito de outra forma, uma explicação erudita sobre a limitada liberdade que temos quando comparados com as bestas.

Tese de Gray: uma besta cumpre os seus instintos. Não agoniza entre opções e não tem o fardo insuportável do pensamento reflexivo.

Nós, humanos, somos menos livres que as bestas. Julgamos que a nossa "autonomia" (para usar uma palavra erudita) é a forma suprema de sermos livres. Estamos dramaticamente equivocados: não passamos de almas torturadas entre a experiência do passado e as expectativas do futuro. O fato de estarmos condenados a escolher não deixa de ser uma condenação.

Concordar ou discordar de Gray é assunto secundário. Embora, aqui entre nós, a minha admiração pelo texto seja proporcional à discórdia perante ele. Sou um típico produto da modernidade (a exata modernidade que Gray rejeita enfaticamente). Só consigo pensar a liberdade com um mínimo de conhecimento.

A ausência de conhecimento pode tornar-nos livres no sentido "bestial" do termo. Mas, ao mesmo tempo, torna-nos prisioneiros da mais básica instintividade. Pena Gray não refletir sobre a servidão que existe nessa instintividade.

Mas repito: concordar ou discordar é assunto secundário. Até porque o primeiro pensamento que tive quando terminei o livro não lidava com o argumento propriamente dito. Lidava com Gray "lui-même": "Esse homem já não está na universidade".

Fui confirmar. Confirmei. Gray ensinou em Oxford, Harvard e Yale. Ainda passou uns anos na London School of Economics. Hoje, dedica-se exclusivamente à escrita.

Não é caso único. Quase por coincidência, leio na revista "The Spectator" uma entrevista com Roger Scruton. Não vale a pena apresentar Scruton ao auditório letrado: uma vez mais, concordar ou discordar do autor é assunto secundário.

O que ninguém pode contestar é a inteligência e a consistência de sua obra –uma inteligência e consistência que o afastaram da academia há, pelo menos, três décadas.

O próprio Scruton, na entrevista, reflete sobre isso. Para dizer, com serena naturalidade, que ser um filósofo por conta própria é a única forma de poder escrever a verdade.

Seria bom olhar para os casos de Gray ou Scruton como exceções da regra. Infelizmente, não são. E um conhecimento do debate universitário inglês ensina uma triste lição: muitos dos pensadores, presentes ou passados, que construíram obra legível e admirável, já não teriam espaço no sistema de agora.

Razões diversas. Para começar, o sentimento de inferioridade das "ciências humanas" em relação às "ciências naturais" (uma inferioridade que, segundo Isaiah Berlin, radica no século 18) obrigou as "humanidades" a uma produção insana, e por isso estéril, de ensaios que ninguém lê.

Desde logo porque os ensaios não são para serem lidos; são para serem publicados em revistas da especialidade que, em troca, concedem ao autor algumas medalhas para progressão na carreira.

Um ensaio filosófico de qualidade, como o de John Gray, demora anos a ser pensado e escrito. Um filósofo "acadêmico" que demore anos a escrever algo de relevante é devorado em pouco tempo por uma manada de nulidades que reciclam e publicam o mesmo pedaço de lixo vezes sem conta só para pontuarem no autódromo da academia.

Mas existe uma segunda razão: Gray ou Scruton, para ficarmos em autores contemporâneos, não escrevem o que as inquisições acadêmicas exigem. Pelo contrário: enfrentam algumas vacas sagradas – o apelo do multiculturalismo, a soberba do racionalismo humano, a superioridade moral do pensamento revolucionário e utópico– que acabaram por ocupar toda a paisagem das "humanidades".

Moral da história?

O debate está mais pobre, sim, mas convém não generalizar: ele está mais pobre no interior da universidade inglesa, que foi excluindo da arena as vozes dissonantes ou mesmo excêntricas que deveriam ser a alma de qualquer ensino verdadeiro.

Mas essas vozes existem e persistem "cá fora". O que permite concluir que a universidade será cada vez mais um laboratório de propaganda e uma repartição burocrática: depois da lavagem cerebral, haverá um carimbo no diploma que prepara o infeliz para rigorosamente nada. 

Viver para contar - Coutinho

Tenho um amigo paulistano, divertidíssimo, que tem medo de voar. Teoria dele: "Os pilotos são humanos, certo?". Certo, camarada. "Então eles não são diferentes de mim ou de você."

Tradução: eles bebem, ressacam; medicam-se, intoxicam-se; têm desgostos amorosos, pensamentos suicidas. Ou, para não sermos tão dramáticos, noites mal dormidas. "Como é possível entrar num avião quando o mestre de cerimônias é uma besta como eu?"

Durante uns tempos, tentei argumentar contra. Voar é seguro. O número de acidentes aéreos é diminuto. O fator humano não é tudo.

Sem sucesso. Ele prefere dirigir –ou viajar de barco– a furar a estratosfera com ataques de ansiedade que só horrorizam os passageiros. Eu?

Mantenho a minha posição a respeito e até gosto de planar sobre o mundo, pelos menos enquanto os celulares estiverem proibidos a bordo. O único problema é que o meu amigo, quando acerta, acerta barbaramente.

Leio os relatos sobre a tragédia do voo da Germanwings. E leio as informações disponíveis sobre a saúde mental do copiloto.

Alguns fatos: deprimido; fortemente medicado; com problemas de visão –orgânicos? psicossomáticos?– que seriam o fim de uma carreira tão intensamente desejada. E, perante essa certeza, ele próprio apressou o fim, levando 149 pessoas atrás.

O mundo está abismado. E pergunta como é possível a doença instalar-se tão completamente na cabeça de um sujeito, fazendo do suicídio e do homicídio uma combinação letal.

Um livro talvez ajude na discussão. Intitula-se "The Utopia Experiment" (Picador, 274 págs.), foi escrito por Dylan Evans e, sem exagero, é a melhor colheita que li neste inverno inglês.

Até porque as minhas expectativas eram outras: quando farejei as críticas, imaginei um livro cômico sobre um excêntrico que resolve fundar uma comunidade utópica na Escócia –e, "hélas", termina os dias no manicômio.

O enredo é precisamente esse. O tom, admito, tem momentos de comédia pura. Mas o livro é, sobretudo, a descrição pessoal, e verdadeira, e verdadeiramente pungente, de uma viagem à terra da loucura.

Tudo começa em 2005, quando Evans visita o México e as ruínas da civilização maia. Um pensamento melancólico estremece os seus neurônios, como um vento gélido vindo de lugar nenhum: e se um dia a nossa civilização também deixar de existir? Seremos capazes de sobreviver entregues ao nosso destino?

Escrevi "pensamento melancólico", mas a palavra "tumor" seria mais apropriada: a obsessão com o apocalipse começa a devorar a cabeça de Evans, um doutor em filosofia com carreira respeitável em empresa de robótica.

Nada mais parece interessar, exceto fazer a experiência utópica: publicar um anúncio virtual para chamar voluntários, partir para as terras desérticas da Escócia e viver 18 meses em estado pós-apocalítico.

Os voluntários aparecem –uma fauna que arranca as melhores gargalhadas da obra. E Evans, feliz como nunca, despede-se de tudo: da família, dos amigos, da carreira, da casa. Da civilização, enfim.

Não vou contar o que se passa na Escócia quando, afastado do mundo, Dylan Evans descobre que a sua utopia se transforma lentamente em distopia. O interesse do livro não está na decadência exterior. O fundamental está na desagregação interior do próprio Evans, que é salvo "in extremis" pela mesma civilização que ele desejou abandonar.

"The Utopia Experiment" não é apenas um testemunho de como Hobbes, na descrição dantesca do "estado da natureza", estava mais certo que Rousseau. O livro é também uma lição de sobrevivência: não da sobrevivência física em cenários pós-apocalíticos; mas da sobrevivência mental quando as nossas utopias, quaisquer que elas sejam, se convertem em ruínas.

Lendo sobre o copiloto alemão, entendemos que uma utopia nas nuvens era tudo que interessava. E que o fim dessa utopia, por doença ou coisa pior, despertou nele os instintos destrutivos e autodestrutivos que são típicos do pensamento utópico.

Tivesse Andreas Lubitz lido a experiência de Dylan Evans e –quem sabe?– talvez o infeliz tivesse aprendido que a única utopia que devemos ter é a ambição mais modesta de falhar e, apesar de tudo, viver ainda para contar. 

Eternos retornos - Coutinho

Assisti recentemente ao filme "Ida", dirigido por Pawel Pawlikowski e vencedor do Oscar de melhor filme estrangeiro. Gostei. Esteticamente deslumbrante, a obra apresenta-nos uma noviça que, antes de tomar votos no convento, conhece a história do seu passado. E descobre que, afinal, é judia. Mais ainda: a família morrera na Segunda Guerra Mundial e imediatamente depois de 1945.
Essa última afirmação é a mais polêmica de todas: depois de 1945? Precisamente. Na Polônia (mas não apenas na Polônia), os crimes antissemitas continuaram a ser praticados pelos nativos. Sobretudo quando os judeus sobreviventes tinham a ambição legítima de retornar às suas casas entretanto ocupadas.
O filme retrata isso quando Ida, na companhia de uma tia, visita a casa paterna –e os novos habitantes reagem com indisfarçável desconfiança e mesmo hostilidade. Não admira que o filme tenha provocado discussões mil na Polônia.
"Ida" transporta essa desconfortável verdade: o antissemitismo não terminou com a libertação de Auschwitz, tal como afirma Jeffrey Goldberg em artigo obrigatório para a revista "The Atlantic". A Polônia do pós-guerra é um exemplo. Mas a Europa atual é um exemplo ainda maior.
O primeiro mérito do artigo está no fato de Goldberg não se prender apenas aos crimes antissemitas mais recentes e midiáticos –a chacina de Paris, o tiroteio em Copenhague.
O problema é mais vasto e uma das formas de olhar para ele é com números: na França, a comunidade judaica representa 1% da população total (qualquer coisa como 475 mil pessoas). Em 2014, esse 1% foi vítima de mais de metade dos ataques racistas em todo país.
Será de espantar que 7.000 judeus franceses tenham decidido partir no mesmo ano para Israel –e que, em 2015, a cifra possa até dobrar?
Não há espanto. Jeffrey Goldberg defende que o "novo" antissemitismo, ao contrário do velho, é hoje uma combinação aparentemente bizarra –uma mistura de "judeofobia muçulmana" com "neonazismo" tradicional.
Não contesto essa mistura. Mas contesto a "novidade": um conhecimento da história do Oriente Médio, e em particular do Mandato Britânico para a Palestina entre as duas Guerras Mundiais, já apontava nesse sentido.
Amin al-Husseini, o famoso "mufti" de Jerusalém que os ingleses acreditavam ser o agente da paz na conflitualidade entre árabes e judeus, era pessoa íntima do Terceiro Reich.
Terminado o conflito em 1945, foi considerado criminoso de guerra. A fuga para o Egito salvou-o de um destino semelhante ao de muitos nazistas em Nuremberg. Histórias que parecem novas são, na verdade, bem antigas.
E o autor do artigo mostra-nos isso, sobretudo quando fala da Suécia. Desconhecia a vida negra, negríssima, que os judeus do país levavam. Mas o caso da cidade de Malmö, analisado por Goldberg, merece um capítulo à parte.
Com 300 mil habitantes, Malmö tem 50 mil muçulmanos –e uma comunidade judaica com 1.000 pessoas apenas. Mas nem essa insignificância demográfica impede que o rabino da sinagoga local, Shneur Kesselman, tenha sofrido 150 ataques nos últimos dez anos –verbais ou físicos. Fugir, para ele, está fora de questão. Isso seria uma vitória dos antissemitas.
Admiro a coragem do homem. Mas, aqui entre nós, quem, em juízo perfeito, toleraria 150 ataques em dez anos de existência?
É por isso que, na conclusão do artigo, Jeffrey Goldberg termina com um melancólico otimismo: se ele fosse judeu a viver na Europa, provavelmente pensaria em sair. Mas a grande vantagem dos judeus de 2015 sobre os antepassados de 1933 está na existência do Estado de Israel. Um "bote salva-vidas", como ele diz, e que teria mudado a história se já existisse em 1939.
Difícil negar. Mas também não deixa de ser arrepiante a forma como esse "bote salva-vidas", mais de meio século depois, nem a sua própria salvação tem garantida.
E se o leitor pensa que falo de um Irã com capacidade nuclear, garanto que não preciso ir tão longe. Aqui ao lado, a Universidade de Southampton (Reino Unido) prepara-se para organizar em abril uma "conferência" de três dias para questionar a "legitimidade" da existência de Israel.
É o eterno retorno: primeiro, questiona-se a existência; depois, alguém irá tratar dela por outros métodos.

O mundo nunca teve um rumo - Pondé

Muitas vezes escutamos frases como "o mundo está pegando fogo" ou "nunca houve tanta violência".

Outra vezes, algumas pessoas, querendo ser mais precisas, levantam questões como "não está pior, apenas tem mais mídia e, por isso, sabemos de tudo mais rápido".

Ou ainda: "agora tem mais gente no mundo, por isso, mais violência". Alguns, mais "místicos", arriscam ideias de que mesmo terremotos se acumulam na Terra agora.

Enfim, comparações assim tendem a ser inconsistentes porque simplesmente não temos como saber como era a violência há cem mil anos ou quantos terremotos aconteceram há 500 mil anos (provavelmente, bem mais do que agora, aliás).

Se contássemos as pessoas que os marxistas mataram no século 20 deixaríamos qualquer jihadista inseguro com relação a sua eficácia assassina. Quanto à fome, bem, sempre houve pobreza no mundo, porque a pobreza é como a gravidade –quem parar de bater as asas cai nela de volta. A riqueza é que é a coisa nova na face da Terra.

Mas, ainda assim, muitos continuam a ficar perplexos com o mundo contemporâneo. O número de mortes causadas pelo terrorismo! Africanos mortos tentando chegar a Europa! Fome na África! A Rússia engolindo a Ucrânia! Os Estados Unidos do Obama mais perdidos do que cego em tiroteio com o projeto nuclear do Irã! A Europa, coitada, se esforçando para manter a dignidade em cima do salto alto!

A China continua indiferente ao papo que Marx chamava de "humanismo burguês", ou seja, nossa hipocrisia ao fingirmos que nos preocupamos com o sofrimento alheio para jantarmos com a consciência limpa no sábado a noite com amigos.

Quer ver? Apesar de berrarmos "é proibido crianças trabalharem em condição de escravidão", continuamos a gostar de preços baixos no shopping.

No Oriente Médio, os países insistem em não dialogar e resistem à máxima "ame ao próximo como a ti mesmo" (como se ela tivesse algo de óbvio). O Islã continua a dividir o mundo entre "o reino do Islã" (ou da paz e da submissão) e "o reino da guerra" (todo o resto a ser combatido e convertido). Os israelenses continuam a fazer a conta e chegar à conclusão de que os árabes tem muito mais terra e, por isso, deveriam cuidar dos seus (os palestinos).

Afinal, o que toda essa gente tem na cabeça? "Como assim?!", grita o tolinho de plantão. O mundo continua deixando um rastro de sangue por onde passa? Afinal, o mundo teria perdido seu rumo?

Não, o mundo nunca teve rumo. E nunca terá. Mesmo quando vive séculos sob a força de um ou mais poderes "globais", toda ordem mundial é, no fim, uma forma de ilusão ou provincianismo geográfico.

A única coisa que permanece na "ordem global" é o processo interminável de povos devorando outros povos, como dizia o crítico americano Edmund Wilson.

Mas, por uns poucos séculos, achamos que tínhamos uma ordem global –pelo menos pensavam assim os europeus e os americanos.

Segundo o que nos diz Henry Kissinger (que ocupou cargos importantes em geopolítica nos governos de Richard Nixon e Gerald Ford nos anos 1970) no seu brilhante "Ordem Mundial" (ed. Objetiva, R$ 54,90, 432 págs.), do século 17 ao final do 20, vivemos mais ou menos sob a crença na existência de Estados independentes como unidade mínima geopolítica.

Essa ideia, herdada da Paz de Vestfália (1648), assinada entre católicos e protestantes para por fim à guerra dos trinta anos no que hoje chamamos de Alemanha, a grosso modo.
Segundo o tratado, pouco importa no que se acredita em cada Estado, contanto que a violência entre os Estados seja reduzida ao seu mínimo possível. Logo, ninguém se mete na vida interna do outro Estado e se respeita as fronteiras.

Essas unidades geopolíticas agiriam segundo o princípio de redução da violência entre todos, presumindo uma paz pragmática como o melhor dos mundos possível. E, neste mundo, os negócios progrediriam, assim como nos comerciais da CNN.

Infelizmente, o mundo nunca teve rumo. Um dos maiores equívocos de nós modernos, filhos da ordem burguesa de Vestfália, é pensarmos que todos "só querem ganhar dinheiro e viver na monotonia da paz.

Os limpinhos estão chegando - Pondé

O mundo contemporâneo é um parque temático de egos. Com a melhoria das condições materiais de vida, as pessoas ficaram cada vez mais bobas.

Quando uma universidade dá a bênção, então, ninguém segura o desfile de bobagens. Basta alguém escrever uma tese qualquer que o tema vira "científico".

Agora é a vez da "afetividade múltipla sem baixaria", conhecida como "poliamor" (mais uma modinha de comportamento típica de gente bem de vida), abençoada pela Universidade de Berkeley, nos Estados Unidos, e a indústria dos colóquios.

Só quem não é do ramo ainda leva as ciências humanas 100% a sério. E, pelo jeito, nem a biologia vai resistir à fúria da vontade humana de que tudo seja do jeito que queremos: você sabia que nem a biologia sabe mais o que é uma mulher? Coitadinha da biologia...

A humanidade sempre teve problemas com o afeto. Aliás, daí o nome: "afeto", descendente do latino "affectio", análogo ao grego "pathos". Todos significando afeto, paixão, doença (afecção cardíaca) desordem, sofrimento.

Temos medo da desordem que eles nos causam, porém, ao mesmo tempo, sem vínculos afetivos somos um zero a esquerda na vida.

Uma das coisas que o narcisismo (grande epidemia contemporânea) destrói é a capacidade de termos afetos verdadeiros com o mundo.

Pra ter afeto verdadeiro se faz necessária a energia pra investir no mundo, coisa difícil no mundo de narciso em que vivemos. Uma saída típica do narcisista é dizer que não padece de afetos tristes, só "sente" os afetos legais porque os tristes são coisa de gente insegura e eles são super bem resolvidos.

Os poliamoristas só tem afetos construtivos, ou seja, de plástico. Mostre-me uma pessoa que não tem ciúmes e te mostro um covarde. Mas, no parque temático em que vivemos, em que o Pateta é um gênio, a covardia assume ares de "evolução nos comportamentos".

A psicologia evolucionista (o darwinismo e não o oba-oba de pessoas que "superaram os afetos tristes"), –que muitos detestam porque se sentem tolhidos nos seus delírios de poder por conta dos limites que o darwinismo coloca na farra da "construção social de tudo" (hoje você é samambaia, amanhã girassol, basta "querer" e ninguém te "oprimir")– se refere a um dos centros da vida moral como "emotional bonds" (laços emocionais).

Sem eles, não ascendemos à vida moral porque não sofremos com nada. John Stuart Mill, utilitarista no início do século 19, também falava de "moral affection". Antes dele, Adam Smith, no século 18, falava de "moral sentiments".

Não é tão difícil deixar de sofrer na vida, pelo menos em parte. Basta não ligar pra ninguém e dar ares de publicidade dessas que juntam criança, parque, bike e banco pro seu "foda-se".

Tudo bem ligar o "foda-se", mas essa moçada quer ligá-lo e posar de "limpinha". O poliamor é o "Admirável Mundo Novo", do Aldous Huxley, transformado em game.

É claro que muita gente sempre gostou de "amar" muitos ao mesmo tempo. E que outras tantas inventaram relacionamentos abertos.
Os hippies, esses coitados que erraram porque não entenderam que a função deles era apenas criar um estilo de calça jeans, também tentaram criar suas formas de amor anti-sistema.

Em meio a isso, muitas mulheres apanharam, muitos se decepcionaram, muitos filhos se ferraram por serem vítimas da "experimentação nos afetos" de seus pais muito loucos.

Mas, pelo que andei ouvindo por ai, os poliamoristas estão distante dessa cambada de coitados ciumentos que os precederam na crítica da vida monogâmica.

Os novos defensores da vida "não monogâmica" (a moçadinha recusa o termo "poligamia", engraçado, né? Já digo o que penso disso) acham que estão adiante dessa cambada de ancestrais porque, além de serem "ciúmesfree", vivem o amor múltiplo sem incorrer no "pecado" da promiscuidade (por isso a recusa do termo "poligamia").

E então fica ainda mais clara a farsa: o ódio a promiscuidade sempre foi signo de nojo pelo que há de sombrio no ser humano. O poliamor é mais uma modinha pra gente mimadinha que quer transar limpinho por aí dizendo que tá tudo bem, viu? 

Da natureza das coisas - Pondé

Em nosso mundo, não há natureza das coisas, entende-se que tudo seja uma construção social.

Delírio puro. Prefiro os antigos, justamente por perceberem que são os limites que nos humanizam, e não o desejo sem limites.

Os inteligentinhos dirão coisas como "conservador!". Mas a vida segue, o mundo se acabará um dia, e os inteligentinhos dirão, em seu último grito de agonia, "opressão!".

Mas não quero falar de política, que trato apenas como quem lida com uma ferida para que ela não se infeccione em demasia.

Quero falar de epicurismo. Não a ideia banal de epicurista como alguém que vai muito ao shopping ou come todas as gostosas do mundo (o sonho de qualquer cara normal). Falo do epicurismo antigo, do filósofo grego Epicuro (341 a.C. - 270 a.C.). De Lucrécio (cerca de 96 a.C. - cerca de 55 a.C.), filósofo latino, autor do poema "Da Natureza das Coisas".

Para ambos, a natureza da realidade é ser contingente. Isso quer dizer que "o fundo da realidade" é o acaso (que é a mesma coisa que contingência em filosofia).

Esse acaso é o movimento livre e sem ordem dos átomos. Portanto, tanto Epicuro quanto Lucrécio eram atomistas, o que é a mesma coisa de dizer que eram materialistas. A alma, esse "ar", se perde no momento da morte.

Como dizia Epicuro, quando eu estou, a morte não está, quando ela está, não estou. Ou seja: não há o que temer na morte porque ela é uma libertação da eterna contingência que move um destino cego. E a melhor coisa nisso é que a "consciência" desaparece.

Essa ideia me parece insuperável como liberdade. Ter a pedra como destino é meu sonho de eternidade.

Sendo assim, morreu, acabou. Muita gente teme uma possibilidade como essa.

Eu tendo a achá-la sedutora principalmente quando suspeito que viver para sempre seria como ser obrigado a beber água para sempre, mesmo tendo passado a sede.

Vejo beleza nisso tudo. A contingência liberta, mas não no sentido moderninho de que por isso podemos nos "inventar" ao bel prazer. Isso é coisa de "teenager".
Mas, justamente o contrário: meu desejo também é contingente, como tudo mais. Dar asas a ele é ter fé de que eu, diferentemente do resto do universo, não sou também feito à semelhança do acaso.

Só os iniciantes confiam em si próprios. Meu desejo é a porta de entrada por onde a contingência se instala do seio da minha alma.

Não, a beleza está no que os antigos epicuristas viam nessa condição: sem deuses, sem eternidade, fruto do acaso, essa é a natureza das coisas, ser cega.

O prazer de Epicuro era justamente o de escapar da escravidão do desejo, não essa ideia contemporânea de que viver a realização contínua do desejo é a felicidade.

A concepção contemporânea de felicidade é brega, coisa de gente que se emociona quando um novo shopping é aberto na cidade.

Lucrécio entendia que a cegueira da natureza é a natureza das coisas.

É dela não carregar sentido em si mesma, e por isso é tão importante: porque me lembra continuamente que a vaidade e as expectativas, com o tempo, se tornam um tormento.

Não é totalmente absurdo escutarmos aqui o sábio israelita, também antigo, que escreveu o "Eclesiastes" (Velho Testamento): "vaidade, tudo é vaidade".

A grande questão é como se sustenta uma vida feliz decorrente dessa natureza das coisas. Podemos dizer que decorre, antes de tudo, do "relaxamento" do desejo que a consciência da contingência traz: a sabedoria da natureza é ela ser puro átomo e não uma lei.

Não há "missão" na vida. Viver segundo os prazeres do trabalho, da mesa e do corpo da mulher é tudo que podemos fazer. O puro prazer de existir.

Sem excessos, do contrário, nos tornamos escravos do trabalho, da mesa e do corpo da mulher.

Não porque uma danação eterna nos espera (ninguém nos vigia), mas porque o excesso do desejo destrói seu próprio usufruto na medida em que nos desesperamos com a possível falta do objeto desse desejo.

Dito de forma simples: não queira pegar todas as mulheres do mundo, mas cuide bem daquelas que, por graça da contingência, vierem a sua cama. 

A publicidade e o Neandertal - L. F. Pondé

A publicidade é a melhor ciência social contemporânea. Sei, dizer isso dessa forma é um exagero. Mas nem tanto. Em se tratando de exposição do comportamento contemporâneo, para além das bobagens corretinhas que animam as almas inteligentinhas, o cinema e a TV estão aquém da publicidade.

Muito do cinema, das telenovelas e dos "talk shows" hoje em dia é feito para agradar a sensibilidade brega do politicamente correto.

A publicidade revela (e, mesmo sem querer, ridiculariza) o fracasso de toda forma de "comportamento crítico". Tudo não passa de modinha para vender cartão de crédito para gente "crítica". Quer ver? Só mais um minutinho.

Antes, vejamos um autor que serve bem para iluminar o ridículo das "modinhas críticas".

Entre os autores da tradição marxista, Theodor Adorno (1903-69), me parece, sem dúvida, o maior. Talvez, antes de tudo, porque não embarcou nos delírios metafísicos rousseaunianos do velho Marx.

Sua "Dialética Negativa" mostra como qualquer forma de crítica ao sistema de produção de mercadorias se transforma num produto, mesmo que supostamente "crítico".

Delírios rousseaunianos, além de todos os defeitos de um delírio, trazem consigo outro dano: a vaidade de achar que encontramos a solução para o mundo.

Meu encontro com Adorno se deu no mestrado, através de seu conhecido "Minima Moralia", uma análise devastadora da alma americana.

Outro título, menos conhecido, mas que para mim foi essencial, é seu "Kierkegaard".

Claro que suas análises da indústria cultural, em parceria ou não com Max Horkheimer (1895-1973), são um clássico na formação de qualquer um que queira entender o mundo atual.

Seu "O Ensaio como Forma" marcou muito minha opção estilística, assim como sua análise da coluna de astrologia do "Los Angeles Times" ("The Stars Down to Earth" na edição da Routledge londrina) cunhou minha percepção da estupidez traduzida em pseudo-espiritualidade na cultura contemporânea.

Agora, imagine um cara com coque samurai e barba hipster num elevador indo para uma piscina de um hotel. Imagine uma mina gostosa com cabelo assanhado e look radical na mesma situação. Em seguida, imagine os dois, à noite, no mesmo elevador.

Ele agora com paletó social "casual" e ela com uma casaco chique descolado com cara de caro. Os dois sorriem um para o outro. Você pensa: ele vai pegar a mina.

O comercial fala de um site chamado Trivago, que te leva para hotéis que saem mais barato do que se você fizer a busca de outra forma.

A ferramenta faz comparações de preços e assim te dá mais informações sobre os diferentes preços e ofertas do mercado hoteleiro.

No comercial, ela pagou mais barato pelo mesmo hotel porque usou a Trivago. O negócio funciona, o que importa para quem quer consumir hotéis e pronto.

Mas o comportamento contemporâneo que ele revela vai além da intenção pura da venda.

Aqui está seu caráter de ferramenta de conhecimento do mundo da mercadoria disfarçado de revolucionário: eles são "radicais", mas, no fundo, não passam de um casal em busca de amor, sexo e preços mais em conta.

Ou seja, o que todo mundo quer, mesmo que brinque de "radical".
Esses radicais também têm um lugar ao sol que os acolhe. O look é apenas uma afetação de estilo para alguém que só quer pagar mais barato o hotel.

Num segundo comercial, o casal já está junto, e ela procura um hotel para eles irem. Na última cena, ele a carrega no colo andando pelo corredor de um hotel. E ela, em seu colo, parece se sentir a mulher mais bem cuidada do mundo.

Vendo uma "mina" dessa, você pode jurar que ela seria aquele tipo de garota que tem opiniões fortes sobre a opressão das mulheres e de como as gerações anteriores a ela eram caretas e dominadas.

Vendo um cara como esse, você imaginaria o tipo de frouxinho contemporâneo revolucionário sensível.

No fim, ela sonha com um cara "de verdade", que a proteja e seja seguro e forte (para carregá-la) e ele sonha com uma "mina" gostosa que goze com sua força. Um neandertal entenderia a mensagem.

Otelo - L. F. Pondé

A ópera "Otello", de Giuseppe Verdi, abriu a temporada lírica do Theatro Municipal deste ano. Ópera, como costumava dizer Charles Baudelaire, "entra nos ossos".

Essa peça lírica é baseada na obra de Shakespeare "Otelo", grande tragédia sobre amor, virtude, ciúmes e inveja. E a ópera de Verdi captura plenamente o drama clássico.

O crítico italiano Italo Calvino costumava dizer que um clássico é uma obra que nunca terminou de dizer o que tinha para dizer porque trata de temas que sempre assolam o humano.

Iago, invejoso do sucesso do mouro Otelo, chefe da armada de Veneza, trama sua destruição. Um detalhe, que pode escapar facilmente, é o de que no período renascentista italiano (em que se passa a tragédia), nos séculos 15 e 16, o mar Mediterrâneo está enterrado em sangue por conta da guerra entre os turcos otomanos e os cristãos.

Sendo Otelo um mouro, a chance de ser visto como estrangeiro pelos habitantes de Veneza é enorme -o que, na trama, serve para engrandecer sua glória, coragem e fidelidade à cidade.

O casal Otelo e Desdêmona é pura virtude. Ele, corajoso, ela, fiel. Virtudes clássicas do homem e da mulher. Sei que muita gente vai dizer que isso é bobagem, mas, diante de Shakespeare, o sábio se cala.

Pobre de espírito é aquele que diz que "Otelo" é "uma peça machista". Dá sono quem fala coisa assim.

Ela, rica e belíssima, filha de um senador, se apaixona pelo estrangeiro Otelo, muito mais velho.

Aliás, é essa diferença de idade que ajuda Otelo a sofrer de ciúmes, como é comum em homens que se casam com mulheres muito mais jovens. O fantasma de que ela, em algum momento, buscará um jovem como ela, é presente em muitos casais que vivem essa situação.

Mas é fato que as mulheres jovens encantam os homens mais velhos justamente pela beleza e doçura diante da vida.

Elas, por sua vez, encantam-se com homens mais velhos devido à experiência e à segurança que eles costumam passar principalmente quando tiveram sucesso na vida.

A tramoia de Iago é centrada na ideia de que um homem (ainda mais se for muito mais velho) é facilmente destruído pela insegurança sobre a fidelidade da mulher que ama.

Está na moda dizer que só homens inseguros com as mulheres que amam é que caem na condição de Otelo.
Mas a verdade é que apenas os mentirosos negam a síndrome de Otelo. E a mentira é a moda contemporânea por excelência quando falamos dos afetos e da condição humana.

Mentiras como essas fazem os mais jovens perderem muito tempo de suas vidas correndo atrás de modas que passam como o vento.

Iago monta uma situação em que Desdêmona, preocupada em fazer seu amor Otelo perdoar o melhor amigo, Cássio, é levada a interceder em favor deste.

Ela sabe que Otelo sofre porque castigou seu amigo. Não é uma idiota, apenas confia no amor de seu marido. E isso a destrói.

A inveja vence na peça, como costuma vencer muitas vezes na vida. Para Iago, conviver com um homem como Otelo é uma agonia.

Todos nós conhecemos pessoas melhores do que nós, e conviver com elas é um tormento. A história bíblica de Caim e Abel trata disso: Caim mata Abel por inveja.

"Meu veneno", como diz Iago, que se reconhece como "feito à semelhança de seu Deus cruel" e que "sente a lama originária" cobrir seu corpo e sua alma, contamina Otelo plenamente.

Este passa a se torturar de ciúmes e tortura a bela e inocente Desdêmona, até matá-la asfixiada, apenas para descobrir, um minuto depois, pelas palavras de Emília, mulher de Iago, que ela era inocente.

A belíssima cena em que o casal caminha em direção ao horizonte, contemplando a beleza do céu, movido pelo amor que os une, no início da peça lírica, exemplifica o que muitos entendem como a ascese que o amor verdadeiro entre duas pessoas pode causar.

O amor romântico, quando correspondido, faz com que vejamos a beleza em toda parte. E isso é mais um motivo para a inveja dos outros.

Mas, como toda paixão, o amor é loucura e, contra ele, a razão pode pouco, porque quando pode é porque o amor já não existe mais.