"Você veio da casa da vida.
Você veio: o que trouxe para nós?
Eu trago que vocês nao devem morrer,
que suas almas não devem ser restringidas.
Eu lhes trago a vida para o dia da morte
E alegria par ao dia de melancolia.
Eu lhes trago repouso,
o qual na inquietação das nações não pode ser encontrado."
Liturgia de Mandeão.
quarta-feira, 20 de fevereiro de 2013
Ester - J. P. Coutinho
Disse um dia em entrevista televisiva que, sempre que tinha dúvidas sobre um assunto sobre o qual precisava escrever, telefonava imediatamente à minha avó. Ela resolvia qualquer bloqueio criativo.
A entrevistadora entendeu a frase como "boutade" --a atitude típica de um "dândi", para citar uma crítica altamente elogiosa que um editorialista do "Valor Econômico" atirou sobre mim.
Mas não era "boutade" (nem eu, "hélas!", sou o sr. Beau Brummel). Contaminado por matérias mil e deformado pelo chicote da universidade, que às vezes atrapalha mais do que ajuda, a minha avó tinha aquela "disposição conservadora" de que falava Michael Oakeshott. Uma disposição que era natural, sem carimbo acadêmico, feita de prudência, ceticismo, humor. E de um arrasador bom senso perante os dilemas da vida.
Razão tinha um autor célebre quando afirmava que entregaria mais depressa os destinos de uma nação ao primeiro nome que encontrasse na lista telefônica do que ao departamento de humanidades da Universidade Harvard. A minha avó era o nome da minha lista telefônica. Metafórica e literalmente.
Não, para ela os homens não tinham nascido livres nem se encontravam aprisionados em toda parte. Mas a minha avó também não subscrevia a fantasia contrária: os homens não eram matéria irremediavelmente corrompida.
Da espécie Homo sapiens, devemos esperar grandes coisas e miseráveis coisas. Uma vez mais, prudência e ceticismo.
São incontáveis as crônicas em que plagiei a minha avó --os únicos plágios premeditados e conscientes que cometi na vida, sempre com uma mistura de prazer e culpa que nunca me abandonava.
A responsabilidade era inteiramente dela: aos sete anos, ofereceu-me a primeira máquina de escrever --uma monstruosidade metálica e cor de laranja, trazida de Andorra, e que ainda existe (e funciona) no escritório de casa.
Recebi o presente próximo da apoplexia e, nos dias seguintes, ela desafiava-me a escrever-lhe cartas imaginárias, algures no ano 2020. Para lhe contar as minhas viagens pelo mundo.
Isso, claro, até iniciar as viagens reais. Com ela ou por causa dela. Aos nove anos, sei lá como ou por que, comecei a alimentar uma paixão séria pelo Egito Antigo. Eram as pirâmides, os faraós, as múmias e, melhor ainda, o próprio processo de mumificação (aula breve para principiantes: os miolos são removidos pelas narinas).
A paixão era de tal ordem que só se curou quando, no ano seguinte, ela me levou ao Egito real. Pela sua mão, acampei no museu do Cairo; e nas pirâmides de Gizé; e nas ruínas de Luxor e Alexandria.
E, depois do Egito, por que não atravessar o deserto e chegar a Jerusalém?
Dito e feito: a primeira vez que estive em Israel também foi com ela. Tudo com narração personalizada sobre as desventuras dos judeus antigos, que ela lera na Bíblia, sem esquecer os modernos, que ela acolhera em casa durante a Segunda Guerra. Como católica que era.
E foi sempre com ela, nessa fase de encantamentos que costuma acompanhar o fim da infância e os primórdios de toda adolescência, que conheci as cidades restantes que me ficaram para a vida. Paris. Roma. Veneza. E, claro, Londres, sempre Londres, talvez a sua maior herança.
Porque vivemos um tempo de heranças --não as materiais, que são parcas e finitas. Mas as outras. As intangíveis.
E hoje, fazendo uma pausa nas loucuras do mundo, dedico esta crônica à minha irmã, que a partir de agora continuará o seu nome. Para que tu, querida Ester, possas ter as virtudes da tua homônima. Como eu sei que tens. Vejo-as quando te vejo: o mesmo porte elegante; a mesma coragem no momento das quedas e ascensões; e essa raríssima arte de saber equilibrar a inteligência com a simples bondade humana. Não te rias. Porque até teu riso tem direitos autorais.
Para o respeitável leitor, prometo que as loucuras do mundo voltam na próxima semana. Mas não posso prometer mais que isso. Porque, daqui para a frente, quando tiver dúvidas sobre os assuntos do momento, a minha lista telefônica estará vazia.
segunda-feira, 18 de fevereiro de 2013
Nem o papa aguentou! - Pondé
No dia da renúncia do papa, uma amiga minha querida, portadora de uma personalidade difícil (acha quase todo mundo bobo), mandou-me uma mensagem assim: "Nem o papa aguentou!".
Afinal, o que ele não teria aguentado? Peço licença à minha amiga nojenta para tomar sua exclamação e fazer um pouco de filosofia selvagem a partir dela.
Antes, esclareço que não sofro do comum preconceito de pessoas inteligentinhas contra a Igreja Católica. Qual é esse preconceito? Hoje em dia, num mundo em que todo o mundo diz que não tem preconceito, o único preconceito aceito pelos inteligentinhos é contra a igreja: opressora, machista, medieval...
Estudei anos num colégio jesuíta. Graças aos padres aprendi a coragem intelectual, o gosto pelas letras, o valor da liberdade religiosa, o esforço de pensar de modo claro e distinto, o respeito pelas meninas, ao mesmo tempo em que crescíamos num ambiente no qual Eros nunca foi demonizado; enfim, só tenho coisas boas para dizer sobre meus anos de escola jesuíta.
Cresci numa escola na qual, durante a semana, discutíamos como um "mundo mau" pode ter sido criado por um Deus bom. No final de semana, íamos à praia todos juntos, dormíamos lá, meninos e meninas, em paz, namorando, e enchíamos a cara. Noutro final de semana, o mesmo grupo ia a favelas ajudar doentes.
Tive, numa pequena amostra, uma prova do enorme papel civilizador da igreja e do cristianismo como um todo no mundo.
Dizer que a igreja padece de males humanos e que compartilhou de violência de todos os tipos é óbvio demais para valer a pena um minuto de reflexão.
Em jargão teológico, essa "dupla personalidade de bem x mal" não é bipolaridade moral, mas uma dupla identidade: a igreja teria um corpo mundano (pecador como o de todo o mundo) e um corpo místico (voltado a Deus, à eternidade, inserido no mundo assim como Deus encarnou num homem, Jesus).
Portanto, não sou um desses ateuzinhos que, no fundo, não passam de "teenager" bravo porque o pai não existe. Parafraseando o grande Beckett, "God does not exist -that bastard!" (Deus não existe -aquele bastardo!).
Joseph Ratzinger (Bento 16) é um homem inteligente que quis levantar o nível do debate dentro da igreja e na sociedade como um todo. Um filósofo. Resistiu bravamente à contaminação por uma teologia populista e marqueteira, mas sucumbiu à ancestral vocação humana para a mentira e para a vida burocrática.
Hoje, quase tudo no mundo é populista e marqueteiro; lembremos da máxima da grande escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís: hoje todo mundo quer agradar, até o metafísico.
Foi isso que o papa não aguentou: ele esbarrou no diagnóstico da contemporaneidade feito pela Agustina Bessa-Luís. Todo o mundo só quer agradar "seu eleitorado" e Bento 16 quis tratar seu eleitorado como gente grande.
Resultado: angariou inimigos em toda parte porque rompeu o jogo comum de "falar muito e dizer nada", típico da sensibilidade democrática em que vivemos e também da igreja na "sua base popular".
Num mundo de sensibilidade democrática, ninguém quer saber de nada a sério. A "afetação infantil" (Bessa-Luís, de novo) nos define. O "povo é sempre lindo e certo!".
Na democracia, a soberania do governo emana do povo; daí que achar que o "povo é sempre lindo" é um efeito colateral deste modo da soberania. Logo, todo o mundo só quer agradar, e Bento 16 não quis agradar, quis falar a sério.
Sucumbiu às intrigas palacianas, à inércia da estupidez do mundo de ruídos e baladas metafísicas.
As pessoas odeiam quem quer falar a sério. Não querem mais um papa, e sim um consultor de sucesso espiritual e Ratzinger não tem vocação para isso.
A maioria das pessoas quer apenas comprar, divertir-se, ter uma autoestima alta, gozar livremente, não sentir culpa alguma; enfim, ter uma vida moral de criança de dez anos de idade.
Nem o papa aguentou. Preferiu "fracassar como Sócrates" a vencer como um demagogo feliz. No início da quaresma (período em que devemos refletir sobre nossos demônios), denunciou com sua renúncia o mais velho demônio da igreja: a política.
Afinal, o que ele não teria aguentado? Peço licença à minha amiga nojenta para tomar sua exclamação e fazer um pouco de filosofia selvagem a partir dela.
Antes, esclareço que não sofro do comum preconceito de pessoas inteligentinhas contra a Igreja Católica. Qual é esse preconceito? Hoje em dia, num mundo em que todo o mundo diz que não tem preconceito, o único preconceito aceito pelos inteligentinhos é contra a igreja: opressora, machista, medieval...
Estudei anos num colégio jesuíta. Graças aos padres aprendi a coragem intelectual, o gosto pelas letras, o valor da liberdade religiosa, o esforço de pensar de modo claro e distinto, o respeito pelas meninas, ao mesmo tempo em que crescíamos num ambiente no qual Eros nunca foi demonizado; enfim, só tenho coisas boas para dizer sobre meus anos de escola jesuíta.
Cresci numa escola na qual, durante a semana, discutíamos como um "mundo mau" pode ter sido criado por um Deus bom. No final de semana, íamos à praia todos juntos, dormíamos lá, meninos e meninas, em paz, namorando, e enchíamos a cara. Noutro final de semana, o mesmo grupo ia a favelas ajudar doentes.
Tive, numa pequena amostra, uma prova do enorme papel civilizador da igreja e do cristianismo como um todo no mundo.
Dizer que a igreja padece de males humanos e que compartilhou de violência de todos os tipos é óbvio demais para valer a pena um minuto de reflexão.
Em jargão teológico, essa "dupla personalidade de bem x mal" não é bipolaridade moral, mas uma dupla identidade: a igreja teria um corpo mundano (pecador como o de todo o mundo) e um corpo místico (voltado a Deus, à eternidade, inserido no mundo assim como Deus encarnou num homem, Jesus).
Portanto, não sou um desses ateuzinhos que, no fundo, não passam de "teenager" bravo porque o pai não existe. Parafraseando o grande Beckett, "God does not exist -that bastard!" (Deus não existe -aquele bastardo!).
Joseph Ratzinger (Bento 16) é um homem inteligente que quis levantar o nível do debate dentro da igreja e na sociedade como um todo. Um filósofo. Resistiu bravamente à contaminação por uma teologia populista e marqueteira, mas sucumbiu à ancestral vocação humana para a mentira e para a vida burocrática.
Hoje, quase tudo no mundo é populista e marqueteiro; lembremos da máxima da grande escritora portuguesa Agustina Bessa-Luís: hoje todo mundo quer agradar, até o metafísico.
Foi isso que o papa não aguentou: ele esbarrou no diagnóstico da contemporaneidade feito pela Agustina Bessa-Luís. Todo o mundo só quer agradar "seu eleitorado" e Bento 16 quis tratar seu eleitorado como gente grande.
Resultado: angariou inimigos em toda parte porque rompeu o jogo comum de "falar muito e dizer nada", típico da sensibilidade democrática em que vivemos e também da igreja na "sua base popular".
Num mundo de sensibilidade democrática, ninguém quer saber de nada a sério. A "afetação infantil" (Bessa-Luís, de novo) nos define. O "povo é sempre lindo e certo!".
Na democracia, a soberania do governo emana do povo; daí que achar que o "povo é sempre lindo" é um efeito colateral deste modo da soberania. Logo, todo o mundo só quer agradar, e Bento 16 não quis agradar, quis falar a sério.
Sucumbiu às intrigas palacianas, à inércia da estupidez do mundo de ruídos e baladas metafísicas.
As pessoas odeiam quem quer falar a sério. Não querem mais um papa, e sim um consultor de sucesso espiritual e Ratzinger não tem vocação para isso.
A maioria das pessoas quer apenas comprar, divertir-se, ter uma autoestima alta, gozar livremente, não sentir culpa alguma; enfim, ter uma vida moral de criança de dez anos de idade.
Nem o papa aguentou. Preferiu "fracassar como Sócrates" a vencer como um demagogo feliz. No início da quaresma (período em que devemos refletir sobre nossos demônios), denunciou com sua renúncia o mais velho demônio da igreja: a política.
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