terça-feira, 7 de janeiro de 2014

Alma reptiliana em 2014 - Pondé

Por que, depois de tantas provas de que muitas religiões são uma farsa e alguns de seus ministros são uns picaretas, elas ainda dominam a vida da maioria dos seres humanos? Uma resposta possível está na Pré-História e em nossa "alma reptiliana".

Sou daquele tipo de pessoa que não acredita que mudamos muito nos últimos tempos; para dizer a verdade, acho que, quando pensamos na humanidade, a Pré-História deveria ser mais levada a sério do que surtos como a Revolução Francesa ou coisas passageiras como eleições democráticas.

Ou melhor, a Revolução Francesa deveria ser lida como mais um surto da violência natural que caracteriza toda manifestação de multidões desde o Paleolítico. Gostamos de matar e pronto. E a ideia de "um mundo melhor" é tão metafisica quanto os milenarismos medievais ou o monte Olimpo de Zeus.

Voltemos às religiões. Fenômeno mais essencial do que a política (aliás, só quando vira religião a política reúne multidões, como os fanáticos que creem na política como salvação), e, mais determinante, a religião deita raízes, como tudo mais de humano, na força que de fato nos forma, o desejo, que em nós é atávico como nosso cérebro réptil. E o réptil em nós goza no desejo.

Em nós, o desejo é metafísico, isto é, desejamos um mundo imaterial e eterno, no qual a força dos deuses é nossa, e nela não somos os miseráveis que somos. E para ter esse mundo nos fazemos ainda mais miseráveis, porque nosso pensamento e nossas ideias servem a esse desejo, e não o contrário. Por isso, seguimos picaretas de todos os tipos, que dizem representar os deuses, os santos, os espíritos que controlariam nossos destinos, fracassos e sucessos. No fundo, querem dinheiro, sempre dinheiro.

Não somos seres de razão, somos seres de desejo. É na Pré-História que encontramos a melhor compreensão de nossa "natureza", e não em teorias escritas em gabinetes sofisticados. Em cada um de nós vive um Australopithecus pronto a romper seu exílio em nossas maneiras afetadas de civilizados.

A religião, em grande parte, "organiza os delírios" de nossa mente animal e irracional. Em nós, a razão é superficial como espuma. Mas, diga-se, uma espuma que deve ser cultivada a todo custo.

Para além da chamada "escolha racional" (teoria muito comum hoje em estudos das religiões), teoria esta baseada no utilitarismo inglês que afirma que os seres humanos escolhem racionalmente buscando a redução do mal-estar e a otimização do bem-estar (por isso a religião, na sua hegemonia, seria um modo de escolha que diminui nosso mal-estar), a "inconsciência religiosa" se mantém, em grande parte, graças à estrutura mental pré-histórica.

É fácil imaginar nossos ancestrais apavorados sob o domínio de figuras xamânicas que cuspiam fogo enquanto afirmavam que pragas, doenças e guerras assolariam a vida do bando — o óbvio e ululante, claro. Ou, no caso de desejarem combater essas maldições, eles deveriam matar bichos, matar pessoas, comer comidas sagradas, entoar sons repetitivos, dançar ritmos extáticos, fazer sexo com o sacerdote. Enfim, há um risco de reptilização da fé.

Quando passo diante de um desses templos nos quais as pessoas erguem as mãos e gritam pelo Espírito Santo ou qualquer outra entidade suposta, ouço nossa ancestralidade berrando em plena luz do dia. Pensar que há algo de diferente entre o pré-histórico e nós nisso é confundir o cenário com a dramaturgia que na realidade define os personagens e sua ação.

Claro, hoje, afetados de todos os tipos se dizem contra sacrifícios animais e contra guerras, mas, em dois minutos, pulariam na jugular de quem fosse contra suas pautas de santidade. A verdade do homem não está no que ele diz, mas no que ele faz em nome do que ele diz.

As religiões evoluíram, como tudo mais em nós. Produziram grandes e belos sistemas teológicos e morais. Não nego. Mas o número de pessoas que se submetem a reptilização da fé é enorme, pouco importa o quão inteligentes sejam em outras áreas, ainda creem, em 2014, na capacidade de interpretação desses picaretas do mundo dos espíritos.

Retratos de família - J. P. Coutinho


1. Fotografias: haverá coisa mais preciosa? Em tempos arcaicos, talvez. A minha avó costumava contar que o maior tesouro que trouxe da casa dos pais eram as fotos de família. Álbuns e álbuns com fotos em preto e branco, algumas coloridas (manualmente, claro) e impressas em cartão grosso. Todas elas insubstituíveis. Estranho tempo, esse, em que os retratos valiam tanto como ouro. Ou até mais que ouro.

Hoje vivemos o supremo paradoxo: nunca se tiraram tantas fotos; nunca elas tiveram tão pouco valor.

O jornal "Guardian" avisa que 2014 será o ano em que o mundo vai bater recordes no número de fotos tiradas: qualquer coisa como 3 trilhões. Esse excesso não pode ser coisa boa: a facilidade com que hoje se tiram fotos é diretamente proporcional à facilidade com que nos esquecemos delas.

Uma amiga, aliás, contava-me há tempos uma história instrutiva: em três anos de maternidade, ela acumulara mais de mil fotos do primogênito. Até descobrir que não tinha nenhuma para mostrar em papel ou em moldura -permaneciam todas na memória do laptop, ou na câmera, ou no celular. À espera de melhores dias.

Três trilhões de fotos para 2014, diz o "Guardian". E, no fim de contas, é como se o mundo não tirasse uma única foto que realmente importe.

2. Só existem dois tipos de pessoas que se preocupam genuinamente com Deus: os crentes e os ateus. Os primeiros por razões óbvias. E os segundos por razões ainda mais óbvias: a não crença, sobretudo quando levada a excessos de negação, converte-se sempre numa forma de crença e até de afirmação.

O escritor Kingsley Amis é um bom exemplo. Um dia perguntaram-lhe por que motivo ele não acreditava em Deus. Amis corrigiu a pergunta e ripostou: "Não é bem não acreditar; é mais detestá-lo". Haverá forma mais sofisticada de fé na transcendência?

Não admira por isso que já existam igrejas ateias nos quatro cantos do mundo ocidental. Leio que a moda começou em Londres, com a Assembleia de Domingo. A autora do artigo publicado no site Salon, Katie Engelhart, foi assistir a uma "celebração". E encontrou um mimetismo perfeito das celebrações religiosas tradicionais, com um "pastor", um "sermão", momentos de "oração" -no fundo, a busca de um sentido de "comunhão" para o rebanho ateu.

A coisa fez sucesso em Londres, espalhou-se pelo Reino Unido, emigrou para os Estados Unidos (e para a Austrália) e, palavra de honra, até já teve a sua primeira "reforma protestante": em Nova York, dissidentes da Assembleia de Domingo resolveram fundar a sua própria "igreja" por entenderem que a original não era suficientemente ateia.

Imagino que, no futuro, outras "igrejas" se seguirão, dispostas a espalhar a "palavra" (mas qual "palavra"?) em adoração ao "não-deus". O fenômeno é interessante e só confirma o que os clássicos da ciência política sempre escreveram sobre o assunto: a negação da religião estabelecida não liberta os homens da sua condição de "animais religiosos".

Que o diga o filósofo Raymond Aron, por exemplo, para quem o nazismo e o comunismo não eram mais do que "religiões seculares", dispostas a oferecer aos seus "fiéis" o Reino da Raça (ou do Proletariado) em substituição do Reino dos Céus.

As igrejas ateias, pelo menos, sempre me parecem mais inofensivas e até divertem na sua óbvia palhaçada.

3. Antes de Saramago ou de Cristiano Ronaldo, e sabendo-se que Fernando Pessoa foi uma descoberta tardia da década de 1980, Portugal tinha dois nomes para oferecer ao século 20: Amália Rodrigues e Eusébio.

Amália, a única fadista que verdadeiramente transcende o fado, morreu em 1999. Não deixou herdeiros, apesar de talentos maiores como Carminho ou Camané.

Eusébio morreu agora, aos 71, e o país perdeu o segundo rosto que iluminava a vida dos lusos nos tristes anos da ditadura salazarista.

Logicamente, nunca vi Eusébio jogar. Mas recordo as lágrimas do meu pai sempre que ele relatava as lágrimas do próprio Eusébio depois da eliminação de Portugal nas semifinais da Copa de 1966 pela Inglaterra.

Pergunto honestamente se, hoje, existe algum jogador profissional que, perante uma eliminação idêntica, chore copiosa e sinceramente como Eusébio no Estádio de Wembley. Duvido.