sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

Antropogênese

De pó e lágrimas foi feito o barro que nos criou. 

Aristóteles errou: somos animais sentimentais. 

terça-feira, 8 de janeiro de 2013

A decadência da França - J.P. Coutinho


Gérard Depardieu já é cidadão russo. Foi recebido pelo próprio Vladimir Putin, depois de polêmica feia com o governo de François Hollande.

Eis a questão: Depardieu está cansado de pagar impostos. Durante a sua longa carreira, já pagou mais de € 145 milhões (cerca de R$ 384 milhões). Chega. Sobretudo quando o governo de Hollande promete taxar com redobrada dureza os mais ricos do país.

Comento essa história com alguns amigos progressistas que não se conformam: se o Estado francês deseja aumentar para 75% o Imposto de Renda de quem ganha mais de € 1 milhão (R$ 2,6 milhões), como é possível que Depardieu se recuse a contribuir?

Claro que o verbo, na minha opinião, não é "contribuir". É "permitir". No caso, "permitir" ser roubado pelo Estado. Mas o problema, no fundo, é outro: quando Depardieu diz adeus à França e aceita um passaporte de Putin, talvez seja a França, e não Depardieu, que esteja com problemas sérios.

Aliás, bastaria perguntar aos meus amigos progressistas quando estiveram eles em Paris pela última vez. O silêncio seria geral. Paris é uma cidade que já não existe no radar deles.

Sem falar do óbvio: qual foi o último romancista francês que eles leram em 2012? Qual foi o filme a que assistiram? Que exposição os motivou ou encantou?

E, filosoficamente falando, quem é o grande pensador francês da atualidade? Melhor ainda: seriam eles capazes de ler esse pensador na língua original?

"É a economia, estúpido!", dizia um conhecido marqueteiro americano nas eleições presidenciais de 1992 entre Clinton e Bush (pai). No caso da França, a economia é apenas o começo do problema.

E esse começo é o mesmo dos países do sul da Europa: o euro, uma quase imposição gaulesa para que a União Europeia engolisse a temível reunificação da Alemanha, permitiu à França uma década de endividamento e gastos públicos como se não existisse amanhã.

Os resultados, que a revista "The Economist" resumiu recentemente, arrepiam qualquer cristão: o Estado consome 57% do PIB (a maior fatia de toda a zona do euro). A dívida pública saltou dos 22% do PIB (em 1981) para os 90% (em 2012). O desemprego atinge 25% da população jovem.

Perante tudo isso, a solução de François Hollande é taxar tudo que se mexe: trabalho, capitais, patrimônio. E depois? Quando não existir mais nada nem ninguém para "contribuir"?

Depois, a França chegará a duas conclusões dolorosas.

A primeira é que, ao adiar as reformas necessárias para que a sua economia seja minimamente competitiva, Paris capitulou perante a Alemanha: Angela Merkel é hoje a líder informal da Europa, não François Hollande.

E, segunda, que há um cheiro de declínio no território preferencial dos franceses: o da cultura.

Anos atrás, a revista "Time" provocou polêmica ao cartografar esse declínio com números. Na França, publica-se muito -mas os livros não sobrevivem fora das fronteiras francesas. Na França, filma-se muito -mas os filmes também não sobrevivem fora do país.

O mais celebrado artista plástico francês -Robert Combas- é personagem secundário nos circuitos artísticos internacionais (que estão em Londres, Nova York e até Berlim). A cultura pop francesa é uma piada (ou, no limite, uma imitação grotesca dos rappers americanos).

Se não fossem moda e gastronomia, que só com muita benevolência podem ser consideradas "alta cultura", o que seria da França, hoje?

Formulo essa questão e o leitor, conhecendo a minha costela anglófila, imagina um riso perverso.

Imagina mal. Em 2012, o melhor livro que li foi francês ("O Mapa e o Território", de Michel Houellebecq). Em 2012, o melhor filme a que assisti foi uma produção parcialmente francesa ("Amour", de Michael Haneke). E, para ficar na filosofia, o melhor tratado de política que li no ano findo também foi francês (uma história do liberalismo de Pierre Manent).

Só que tudo isso são exceções que só confirmam o meu desgosto: eu gostaria de ter mais França, e não menos, nas estantes de minha casa. Isso só não é possível porque o declínio é real.

Sem enfrentar esse declínio, os meus amigos progressistas podem encontrar em Gérard Depardieu o bode expiatório. Infelizmente, não será o bode a ressuscitar o rebanho.

segunda-feira, 7 de janeiro de 2013

Intimidade - Pondé


Duas coisas me encantam: o amor e a intimidade. Sou daquele tipo de pessoa que tem preconceito contra quem não é capaz de se sujar de intimidade.

Sou um homem de obsessões. Uma delas é que não controlamos a vida. Mas, mesmo assim, devemos tentar ter algum controle sobre ela. Ao final, sempre somos derrotados. Se pensarmos nisso, nada vale a pena. Mas, antes da morte, tudo vale a pena justamente porque nunca venceremos a batalha. Não há qualquer outra dignidade na vida além da do herói épico que combate 1 milhão de inimigos.

Revi o maravilhoso "Revelações", com Anthony Hopkins (Coleman Silk) e a bela Nicole Kidman (Faunia Farley). O filme é baseado no romance de Philip Roth "A Marca Humana".

Este romance guarda um segredo que não deve ser revelado, sob pena de destruir seu impacto. Ele devia ser lido por todo mundo acometido da doença do século: a superficialidade de alma. Não se combate essa doença com alguma teoria sobre a vida (como pensam os superficiais ilustrados), mas unicamente com o mais puro
impasse.

Silk é um "scholar" de literatura que tem sua vida destruída porque usa a palavra "spook" ("fantasma", mas que tem um segundo possível significado, "negro", no sentido pejorativo) para dois alunos que nunca iam à aula.

Apesar de que ele não os conhecia, e, portanto, não sabia que eram negros, os dois alunos "se ofendem" mortalmente e, por isso, Silk sofre um processo na universidade por racismo. É humilhado por seus colegas. Pede demissão. Sua mulher morre do coração de desespero. Ele tem sua vida arruinada. A universidade, como sempre, quanto se trata de política, é o pior antro de canalhas da face da Terra.

Intelectuais são os "comissários do povo" mais temíveis da história. Comissários do povo eram canalhas comunistas que serviam a ideologia do partido. Intelectual com ideologia deve ser evitado como uma praga.

Sou um vocacionado à tristeza, mas resisto bem. As pessoas a minha volta sempre me salvam, mesmo que sem querer. Livros e filmes como esses me deixam felizes porque vejo neles o que vejo em mim: o sentido da vida que brota do fracasso, do impasse.

Roth sempre narra como indivíduos são esmagados por processos históricos. Neste caso, a hipocrisia neopuritana que se alimenta do antirracismo, fruto imundo da luta pelos direitos civis nos EUA, e que corrói a universidade como uma "peste do bem". Todos devem provar que não têm preconceitos (como em outros tempos teriam que provar a fidelidade ao partido ou a pureza racial) e, por isso, as palavras e os gestos são controlados no detalhe.

Coleman e Faunia se apaixonam. Ele, um velho deprimido ("Graças a Deus inventaram o Viagra"), ela, uma jovem pobre desgraçada, faxineira, com três empregos, que "matou seus filhos" num incêndio, espancada pelo marido, abusada pelo padrasto, abandonada pelos pais.

Todos são contra. Seus amigos, ex-amigos, inimigos, advogado. Ele é acusado de abusar de uma mulher jovem e pobre. Mulheres mais velhas odeiam quando mulheres mais jovens se apaixonam por homens mais velhos. Ela é acusada de querer dar o golpe da barriga. Ele é culto e sofisticado, ela fala "to fuck" ao invés de "fazer amor". Vulgar, se veste mal e limpa a merda dos outros o dia todo, todos os dias.

Mas eles têm aquele tipo de amor que brota dos restos do gozo e da intimidade suja, do afeto úmido que mora entre as pernas das mulheres. Um microcosmo no qual o materialismo vence sua pobreza. Uma vitória do corpo sobre o medo.

O filme é uma profunda prova do fracasso do sentido das coisas. Tudo na narrativa constrói a destruição do sentido da vida. O único lugar onde Coleman e Faunia existem é na solidão gloriosa do sexo.

Num dado momento ela chama a atenção dele para que tudo que existe entre eles é sexo. Ele insiste que não. Ela diz para ele que ele pensa assim porque não faz sexo há muito tempo.

A intimidade física entre uma mulher e um homem é de fato uma das maiores experiência da vida. Em meio aos restos dela, no encontro entre a saliva e o sexo, podemos encontrar alguma alma que valha a pena.