segunda-feira, 31 de maio de 2010

L. F. Pondé de hoje!

 Heloísa - 31/05

MUITAS LEITORAS me perguntam se acredito no amor romântico. Sim, e vou dizer como. Adianto uma diferença: uma coisa é o amor no sentido do que dá “liga” no convívio de longa duração e outra coisa é o amor romântico (pathos), e os dois não são “parentes”.
O amor no sentido de “liga” é cristão: doação, esforço cotidiano, construção de vínculos. O amor romântico é da ordem da tragédia.
Não farei uso de nenhuma pretensa sociologia do amor ou história do beijo. Essa afetação científica não me interessa. A minha descrença nas ciências humanas está além da possibilidade de cura. Parafraseando Pascal (séc. 17), quando se refere a Descartes (séc. 17): acho as ciências humanas incertas e inúteis.
Tampouco sofro da afetação das neurociências. Aqui, o amor seria apenas uma sopa com mais ou menos serotonina. Pouco me importa qual lado do cérebro acende quando amo. Ambas nos levariam a conclusões do tipo: o amor romântico seria uma invenção a serviço da ideologia burguesa e patriarcal ou alguma miserável conjunção de neurônios, como num tipo de demência senil.
Falo como medieval extemporâneo que sou. Acho a literatura medieval melhor para falar do amor romântico (como achava o mexicano Otavio Paz). Em matéria de ser humano, confio mais nos medievais do que nos homens modernos.
Segundo André Capelão (séc. 12) em seu “Tratado do Amor Cortês”, o amor é uma doença que acomete o pensamento de uma pessoa e a torna obcecada por outra pessoa, criando um vício incontrolável que busca penetrar em todos os mistérios da pessoa amada: suas formas, seu corpo, seus hábitos.
Trata-se de um anseio desmedido, uma visão perturbada que invade o coração dos infelizes. Tornam-se ineficazes e dispersos. Esses infelizes deliram em abraçar, conversar, beijar e deitar-se com o ser amado, mas jamais conseguem fazê-lo plenamente (por várias razões), e essa impossibilidade é essencial na dinâmica do desejo perturbado. Corpo e alma estremecem anunciando a febre da distância.
O amor romântico é uma doença. Nada tem a ver com felicidade. Por isso sua tendência a destruir o cotidiano, estremecendo-o.
Ou o cotidiano o submeterá ao serviço das instituições sociais como família, casamento e herança patrimonial, matando-o.
Por isso, os medievais diziam que o amor não sobrevive ao cotidiano. O cotidiano respira banalidade e aspira à segurança (irmã gêmea da monotonia, mas que a teme ferozmente), e a paixão se move em sobressaltos e abismos. Uma pessoa afetada pela paixão não pensa bem.
Nem todo mundo sofrerá da “maldição de amor”, como diziam os medievais. Muita gente morre sem saber o que é essa doença.
Um dos males da época brega em que vivemos é achar que todo mundo seja capaz de amar como se este fora um direito do cidadão. Com a idade e o estrago que o cotidiano faz sobre nossas vidas e suas demandas de acomodação dos afetos (e a instrumentalização a serviço do sucesso material), a tendência é nos tornarmos imunes ao “vírus”.
O século 12 conheceu a triste história do filósofo Abelardo e sua amada Heloisa. As semelhanças dessa história com os contos de amor cortês como Tristão e Isolda ou Lancelot e Guinevere é grande. Nesses contos, há sempre um impeditivo ético à paixão.
Um dos amantes é sempre casado com alguém virtuoso ou um porá em risco a vida do outro devido ao ódio ou a inveja de um terceiro (por isso, se forem virtuosos, devem abrir mão do amor). O desejo se despedaça contra o fogo da virtude, mas não morre, apenas arde em agonia.
Daí a grande sacada dos medievais: quando desejo e virtude se contrapõe, a “maldição de amor” assalta a alma. Sentir-se pecador (e por isso não merecedor da beleza do amor) destrói a alegria, atiça o desejo e piora a doença. A melhor rota é fugir do amor, porque uma vez ele instalado, a regra é a dor.
Abelardo morreu castrado pelo tio da Heloisa. Ela, triste, foi trancada num convento. Na idade média, a Igreja recebeu muitas mulheres desesperadas, vítimas dessa doença, muitas vezes, fatal. Como diz o livro Cântico dos Cânticos na Bíblia, texto inspirador da literatura cortês: “Não despertem o amor de seu sono…, pois ele é um inferno”.