terça-feira, 3 de junho de 2014
"Mapa Dibujado por un Espía" - Pondé
Literatura é um documento histórico? Para mim, a literatura é um documento antes de tudo porque "brota" do solo de uma época, dos modos de vida, das ansiedades, das práticas morais e políticas. Enfim, da "matéria social e psicológica" de quem escreve.
Entretanto, a verdade histórica é mesmo um drama. Existe "fato histórico"? Aliás, como nos ensinou George Orwell em seu brilhante "1984", podemos criar um passado (ou um presente) que não existe, a fim de fazer as pessoas esquecerem o que queremos que esqueçam ou acreditem no que queremos que elas acreditem. A nossa Comissão da Verdade está bem no olho do furacão deste debate. Professores de história ensinam o que querem, contanto que façam a cabeça dos alunos do jeito que querem.
Proponho que todo mundo que queira ter uma ideia do que foi e é Cuba, para além da propaganda ideológica ainda em curso em nossas terras neolíticas, leia Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), escritor cubano, mais tarde naturalizado e radicado na Inglaterra devido aos conflitos com a ditadura cubana, "nuestra camarada".
Entre vários títulos, leia "Mapa Dibujado por un Espía", da editora de Barcelona Galaxia Gutenberg, de 2013 ("mapa desenhado por um espião", numa tradução direta). Creio, ainda sem publicação no Brasil.
O livro, publicado postumamente por sua mulher Miriam Gómez, é um documento do ano de 1965 em Havana. Os especialistas discutem se teria sido escrito em 1973 ou antes. Antoni Munné, que faz o prefácio desta edição, suspeita, devido a inúmeros detalhes biográficos de Cabrera Infante, que é mais provável que tenha sido escrito antes de 1968.
O autor, que vivia então na Bélgica como funcionário diplomático, volta a Havana (cidade profundamente amada por ele) devido à morte de sua mãe. E aí começam suas agruras. O livro pode ser lido pelo viés de como Cabrera Infante passa esses quatro meses e pouco em Havana, sem conseguir sair, dormindo com inúmeras mulheres. Mas pode ser lido também como um documento do dia a dia de seus amigos, sua família e dele mesmo.
Uma coisa que chama atenção é o progressivo sistema de controle do comportamento que a ditadura cubana cria por meio de seu Ministério do Interior e seu departamento de "lacras sociales" (vícios sociais). Por exemplo, suspeitos de homossexualidade eram acompanhados diariamente porque eram considerados praticantes de vícios burgueses. Para os revolucionários, os gays eram uma doença social, não muito diferente do entendimento que alguns pentecostais famosos no Brasil têm dos gays.
Cabrera Infante é retirado do avião quando ia voltar para Bruxelas, sem que uma razão seja dada, apenas ordem do Ministério do Exterior (Minrex), no qual ele trabalhava.
Meses passam sem que tenha qualquer resposta da razão de ele ter sido tirado do avião. Ele vai inúmeras vezes ao ministério, mas sem que seja atendido pelas autoridades revolucionárias. Assim é sua aventura kafkiana. Regimes burocráticos movidos pela certeza de representar o "bem social" costumam ser inacessíveis.
Num diálogo especialmente elucidativo, o autor ouve de uma alta patente revolucionária, Haydée Santamaría, qual o entendimento da revolução com relação aos seus supostos 15 mil inimigos presos: "La Revolución no cuenta a sus enemigos sino que acaba con ellos". Todos os movimentos socialistas que começam dizendo que amam a liberdade, a democracia e a justiça social acabam matando todo mundo que discorda deles.
A comida era pobre (basicamente vegetais) e repetida. Todo dia a mesma coisa. Faltava água (banhos eram uma raridade) e apenas a aristocracia revolucionária tinha acesso a carne e luxos semelhantes. A medicina, um lixo, como é até hoje. Café, uma festa! "Radiolas" não funcionavam por falta de baterias (pilhas). Ninguém confiava em ninguém.
O regime chegou a pensar em retirar o pátrio poder das famílias e fazer das crianças "filhos da revolução". Enfim, o horror que quem conhece a história do século 20 sabe, mas que começa a ser omitido para os alunos em suas aulas de história no Brasil.
Fascismo light - J.P. Coutinho
Reinaldo Azevedo escreveu na "Veja" um texto sobre o tabaco. Corrijo. Sobre a autoritária intenção do governo federal de proibir o fumo em lugares fechados. Como já acontece em São Paulo.
Subscrevo cada linha do meu colega e aproveito para responder à pergunta de Reinaldo sobre o glorioso mundo que espera o Brasil: é o mundo da União Europeia, com seus regulamentos absurdos e suas absurdas intromissões na liberdade individual —a respeito de sal, gorduras, açúcares, bebidas energéticas, exercício físico, exposição solar e qualquer manifestação de vida que seja um desvio da cartilha dos fanáticos.
Mas, antes de passarmos a esse mundo, relembremos o básico: a luta contra o fumo é uma luta médica, não política.
Os médicos podem "desaconselhar" o tabaco. Os cientistas podem provar os malefícios do fumo para a saúde do fumante (ativo), embora ainda esteja por provar qualquer relação consequente entre fumo (passivo) e câncer, por exemplo. Depois, em liberdade, cada um escolhe o modo de vida que entende com a informação de que dispõe.
Coisa diferente é afirmar que o fumo também pertence ao mundo do poder político. Não pertence. Se, como escreve Reinaldo Azevedo, os cigarros não são ilegais, não compete ao governo tratá-los como substâncias ilícitas. Sobretudo quando esse governo cobra impostos sobre o consumo, beneficiando os cofres do Estado com um vício que publicamente condena.
A hipocrisia do gesto fura os olhos de qualquer um: sob a capa da virtude, o governo rejeita os pulmões dos fumantes mas não o dinheiro deles.
Além disso, e mesmo que as proibições sejam em nome da saúde, não compete ao governo ser o "babysitter" de ninguém. Tentar aprimorar a qualidade da raça é coisa de regimes totalitários, não de democracias pluralistas.
Em democracias pluralistas, os indivíduos têm todo o direito de arruinar a própria saúde. Fumando. Bebendo. Transando sem camisinha. Rejeitando o "jogging" e abraçando o "zapping".
Aliás, não é apenas o direito de cada um dispor da sua saúde que deve ser respeitado. Existe um direito ainda mais básico que a proibição do fumo em lugares fechados viola clamorosamente: é o direito à propriedade privada.
Como escrevi nesta Folha quando a proibição de fumar em lugares fechados se abateu sobre São Paulo, não compete ao governo indicar ao proprietário de um bar ou restaurante o tipo de clientela que ele pode, ou não pode, aceitar no seu espaço.
Essa decisão pertence ao proprietário: é tão legítimo aceitar fumantes como recusá-los. O mercado e a concorrência, depois, que façam o seu papel: se eu não desejo frequentar um restaurante para fumantes, posso perfeitamente escolher jantar no restaurante do lado onde circula o ar puro de vales e montanhas.
As leis antifumo, que são hoje dominantes em toda a Europa, fazem parte de um programa mais vasto de "reeducação" dos homens em nome da Saúde (a única divindade que restou no mundo pós-religioso). E como se procede a essa "reeducação"?
Claro: criando um estigma sobre fumantes, obesos ou sedentários. Não admira que a esmagadora maioria dos fumantes brasileiros lamente a sua própria "fraqueza". Reinaldo Azevedo fala em 90%. Por razões de saúde? Admito que sim.
Mas também admito que muitos deles se olhem no espelho e se vejam como o governo e os novos "engenheiros de almas humanas" os retratam: seres fracos e repelentes —"vermes", na carinhosa expressão do velho Adolfo— que só servem para "contaminar" a sociedade.
Essa "contaminação" não é mais a contaminação tosca dos delírios nazistas sobre a "praga" judaica. É uma "contaminação" mais subtil, que pretende espalhar na sociedade uma forma de "apartheid" com a pergunta: "Por que motivo eu devo pagar com os meus impostos o tratamento médico de gente que poderia ter cuidado melhor da sua saúde?"
Como é evidente, essa pergunta só faria sentido se fumantes ou glutões não pagassem também impostos. E, como pagadores de impostos, não tivessem os mesmos direitos que qualquer contribuinte vegetariano, praticante de ioga e abstêmio radical.
Os hospitais não existem para tratar gente saudável. Relembrar o óbvio é o melhor retrato do "fascismo light" em que vivemos.
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