quarta-feira, 30 de abril de 2014

O roubo do futuro - J.P. Coutinho


O sempre instigante Hélio Schwartsman escreveu nesta Folha um artigo importante sobre o aborto ("Aborto, eleição e violinistas", 23/4/2014). Schwartsman tem razão: não há nada mais lamentável do que ver assuntos éticos importantes transformados em circo eleitoral.

Só não concordo com ele quando, a respeito de Eduardo Campos, o colunista não concebe que um socialista possa ser contra o aborto. Hélio Schwartsman ficaria espantado com a quantidade de "regimes socialistas" que tinham legislações antiaborto incomparavelmente mais "conservadoras" do que o Brasil.

E o inverso também é válido: basta conhecer os conservadores libertários dos Estados Unidos para encontrar posições radicalmente "progressistas" sobre o assunto. Em rigor, não existe "esquerda" e "direita". Existem apenas "esquerdas" e "direitas". No plural.

E depois existe o texto clássico de Judith Jarvis Thomson, que fez pelo aborto o mesmo que Henry Shue pela tortura: iniciou um debate ético que se prolonga até hoje.

Desde logo porque Thomson evita as discussões bizantinas sobre a "humanidade" do feto. O feto é um ser humano, admite ela. Mas isso não significa que todos os seres humanos têm igual direito à vida. Ou, como a própria escreve, o direito à vida não significa o direito de não ser morto. Significa, pormenor importante, o direito de não ser morto injustamente.

É no seguimento desse raciocínio que Thomson apresenta o famoso "violinista". Certo dia, acordamos ligados a ele. O violinista precisa dos nossos rins durante nove meses e uma sociedade musical, consciente da nossa compatibilidade renal, sequestrou-nos, sedou-nos e acoplou-nos o violinista. Será que temos o dever de ficar nove meses ligados a ele?

A essa pergunta eu respondo já: não temos. E, que se saiba, não existe nenhuma legislação equilibrada sobre o aborto que, em caso de violação ou de perigo para a saúde física ou psíquica da mãe, a obrigue a ficar nove meses ligada ao seu "violinista".

O problema com o ensaio de Thomson é que ele parte de um caso excepcional e até criminal —alguém me sequestrou para ligar um violinista aos meus rins— para chegar a uma conclusão dogmática: nós só temos responsabilidades especiais por alguém se tivermos assumido tais responsabilidades.

Eis a fundamental fraqueza do ensaio: a sua insuficiente compreensão sobre a "ética da responsabilidade". Os filósofos Patrick Lee e Robert P. George, respondendo a Judith Thomson, sublinham precisamente esse ponto: nós temos certos deveres existenciais -para com os nossos pais, os nossos irmãos, os nossos amigos etc.- que existem independentemente de os termos escolhido ou assumido.

Claro que podemos recusar tais deveres. Mas isso não apaga a existência desses deveres.

No caso do feto, e excetuando os casos radicais já referidos, a situação é ainda mais complexa tendo em conta a ligação biológica entre a mãe e o feto. O "violinista" é um estranho que abusa e parasita o corpo de outro estranho.

Mas será que Hélio Schwartsman poderá afirmar seriamente que o feto abusa e parasita o corpo de uma mulher? Será que o feto é assim tão criminoso como o violinista e a sociedade musical que sequestrou alguém para usar os seus rins?
É por isso que, na discussão sobre o aborto, existe um autor ainda mais estimulante do que Judith Thomson. O seu nome é Don Marquis.

Tal como a prof. Thomson, Marquis também não perde tempo com as discussões habituais sobre o estatuto do feto (é um ser humano? não é?).

Don Marquis prefere relembrar o básico: o feto é apenas o que fomos antes da nossa configuração presente. Ou, dito de outra forma, o feto será uma criança, um adolescente, um adulto —se não existir nenhum obstáculo terminal pelo caminho.

A questão fundamental está em saber que direito tem um adulto de ser esse obstáculo.

Ou, para usar a linguagem de Marquis, como justificar um ato que, ao terminar com uma vida, termina também com "todas as experiências, atividades, projetos e fruições que de outra forma seriam parte do futuro de alguém"?

O debate sobre o aborto é, em suma, o debate sobre o roubo de um futuro. Pessoalmente, confesso que ainda não encontrei nenhuma resposta convincente para justificar esse roubo.

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Eu quero ser um gigolô de Woody Allen.

Amantes a Domicílio (2013) Poster

Onde está Woody Allen não há espaço para mais ninguém. John Turturro assina a direção de Fading Gigolo  - com o horrível título "Amantes a Domicílio" em português - mas quem realmente toma a cena e incorpora o filme é Allen. A história por trás do filme é mais interessante: Turturro comentou com seu barbeiro que adoraria dirigir Woody um dia. Eis que o linguarudo do barbeiro, que também corta as madeixas de Allen revela o segredo. Woody liga no mesmo instante para Turturro, aceitando a proposta. Eis um belo filme. 
Leve, delicado, nada pretensioso. Turturro quase desaparece como ator interpretando Fioravante, o amante gerenciado por Allen. Fioravante sabe do que uma mulher gosta e precisa: uma boa conversa pra curar a solidão da vida monótona do casamento ou da viuvez. 

O que mais me espantou no cinema não foi o filme em si, mas sim a reação da plateia que lotava a sessão de domingo a noite, ao se deparar com os judeus ortodoxos do filme. Por menos corriqueiro que seja se deparar com os ortodoxos aqui no interior de São Paulo, a perplexidade dos espectadores era tamanha que senti vergonha alheia. Não sabiam nem sequer qual religião era aquela ali exposta. A ignorância se completou quando ao meu lado, a mais indignadas das pessoas, ria dos cachos de cabelo dos meninos judeus, e de repente gritou de alegria ao ler a marca "Dior" em uma das vitrines pela qual passeava o personagem. E o pior: a decepção da maioria com o desfecho final do filme, que não revelarei, obvio. Quem assistir saberá. Em se tratando de Allen e Turturro, não poderia e não deveria ser diferente. Ainda bem. 


Eu quero ser um gigolô de Woody Allen. 
Quero dar vida às pessoas solitárias. 
Quero fazer sorrir aqueles que já haviam desistido da vida. 
Quero rir da cara da tradição. 
Quero virar tradição. 

Beleza roubada - Pondé


Há muito suspeitava que um dia as mulheres mais bonitas iam ser de alguma forma castigadas por nossa sociedade. Meu temor, em parte, se confirmou. Incluindo aí também um castigo para os homens mais bonitos. E por quê? Porque pesquisas recentes parecem provar que homens mais bonitos e mulheres mais bonitas têm mais sucesso profissional, e isso é "imperdoável" num mundo em que a inveja e o ressentimento fazem a política das nações. Vivemos numa era do ressentimento.

Claro, dirão que critérios de beleza variam. Sim, numa certa medida mais gordinhas hoje parecem estar em baixa. As magrelinhas podem fazer sucesso em passarelas e nos espelhos de lojas, mas nem sempre encantam o desejo de todos os homens. E mais: não creio que as figuras das "bruxas" deixem alguma dúvida sobre o que era "feio" (não me refiro às mulheres, muitas delas bonitas, que hoje se dedicam a cultos da Europa pré-cristã).

De qualquer forma, o livro "Beauty Pays: Why Attractive People Are More Successful" (A beleza paga: por que as pessoas mais atraentes são mais bem-sucedidas), de Daniel Hamermesh (indicado pelo excelente artigo do "Valor Econômico"), aprofunda o que é essa beleza que paga bem no mercado profissional. O artigo parte da bela Marissa Meyer, CEO do Yahoo!, para discutir o novo problema a ser enfrentado pelos mais bem-sucedidos que forem mais belos.

Os burocratas dos tributos (em países como os EUA), parasitas que passam o dia pensando em como tirar dinheiro de quem produz dinheiro, já tiveram uma ideia incrível: taxar quem tiver mais sucesso profissional e for bonito.
Como será que esse personagem de Kafka (vejo-o como um rato cheio de formulários na mão) vai fazer para identificar a beleza como parte da razão de uma pessoa ser ainda mais achacada pelo fisco? Testemunhos dos "prejudicados" na carreira pela "injusta" beleza dos outros? O livro em questão, no seu capítulo oito, discute as possíveis "proteções legais para os feios"!

Difícil dizer, mas sem dúvida vão descobrir uma forma, porque o Estado está sempre aquém na "ponta da entrega", mas sempre além da imaginação em competência na "ponta da arrecadação".

A base do ódio organizado à beleza e à riqueza (travestido de taxação em nome da justiça "sócio-estética") é o velho ressentimento. Nietzsche é um analista social e político muito mais sofisticado do que o guru Marx. Luta de classes é o "nome fantasia" do ressentimento que se tem contra os mais afortunados e mais competentes. É difícil aceitar que algumas pessoas sejam mais capazes e mais afortunadas (a velha Fortuna de Maquiavel, que, como toda mulher, ama a ousadia e a coragem) do que outras.

Adam Smith, pai da noção de sociedade comercial (ou sociedade de mercado), sabia que havia um risco de crescimento da "frouxidão" generalizada com o enriquecimento. Mas a contingência (ou acaso ou fortuna) que está na base da visão de mundo de Smith fere nossa sensibilidade de carentes.

Sua "cosmologia" não parece reconhecer uma ordem inteligente superior que equilibre de modo "justo" as diferentes capacidades pessoais. A famosa "mão invisível" equilibraria apenas os resultados totais da riqueza, mas não a inveja de quem é menos capaz.

A sociedade de mercado é uma ferida narcísica incurável para quem nela fracassa. E é difícil não ser, uma vez que todos somos infelizes e carentes em algum nível. Os "marcadores" dessas diferenças que ninguém quer dizer o nome (beleza, riqueza, inteligência, originalidade), acolhidas pela sociedade de mercado, são detestados pelo narcisismo carente, fonte inesgotável de ressentimento.

Portanto, a psicologia nietzschiana do ressentimento deveria ser mais levada a sério quando se discute política no mundo contemporâneo.

Dica: o ódio às belas, rancor atávico das feias, o ódio aos mais capazes, rancor atávico dos menos capazes, nunca foi descrito de modo tão claro como pela filósofa Ayn Rand em seu "Revolta de Atlas" (uma das referências bibliográficas que nossa universidade nega a seus alunos), livro antídoto às mentiras do ressentimento. Leia.