sábado, 14 de janeiro de 2012

O Mal e o Medo


Brilhante. Genial. Palavras desta estirpe talvez não deem conta de sintetizar o sentimento após assistir esta obra-prima de Ingmar Bergman. Aliás, faltam palavras para definir o valor estético e moral da filmografia do cineasta sueco, mas sem dúvida elas estariam sempre no superlativo.
O Ovo da Serpente (1977) é um filme denso, com enredo intrincado e complexo para falar sobre um assunto não menos complexo e denso: o nascimento do totalitarismo nazista.
Liv Ullmann e David Carradine interpretam a angústia que Bergman conseguiu captar e refletir com maestria ímpar.
E no tempo e espaço em que o mostro se revela através da fina casca do ovo, uma cena em especial me chamou a atenção: Manuela (Liv Ullmann) vai até uma igreja para se confessar. O padre, apressado para a próxima missa, quase não dá atenção aos desabafos da moça - o suicídio do ex-marido, o fardo de cuidar do cunhado (Abel, interpretado por Carradine), a doença, a pobreza. E então ela grita pela atenção do padre, "Toda essa culpa é demais para mim (...) A única coisa de verdade é o medo". O padre olha para ela, pergunta se deseja que ele reze por ela.Com a afirmativa, eles se ajoelham e o padre afirma que, com um Deus tão distante, nós devemos pedir o perdão uns aos outros. Assim, ele - e não Deus -  a perdoa da culpa. Depois disso,  vira-se para ela, e suplica: "Imploro por seu perdão, por minha apatia e indiferença". Manuela põe as mãos sobre a cabeça dele, e o perdoa.
Se esse filme pudesse ser resumido em uma frase, seria aquela que se repete por duas vezes ao longo dele: A única coisa de verdade é o medo.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

Pondé entrevista Annette Kirk


ANNETTE KIRK, QUE FOI MULHER DE UM DOS MAIORES PENSADORES DO SÉC. 20, RUSSELL KIRK, FALA SOBRE O QUE É SER CONSERVADOR

Enfim, parece ter chegado a hora de começarmos a ter acesso ao debate conservador anglo-saxão para além do senso comum. Pouco ou nada se sabe acerca da tradição conservadora entre nós, devido, antes de tudo, à falta de bibliografia.

A editora É Realizações lançou neste mês "A Era de T. S. Eliot", obra capital de um dos maiores pensadores conservadores do século 20, o norte-americano Russell Kirk (1918-1994).

Annette Kirk, que foi mulher do autor de 1964 até sua morte, esteve no Brasil e conversou com a Folha sobre o que é ser conservador.

Folha - A definição do conservadorismo ocupou Russel Kirk. O que significa ser conservador hoje?

Annette Kirk - Conservadorismo é uma disposição para conservar com uma capacidade de reformar, portanto, ser conservador hoje é a mesma coisa que ser conservador em qualquer época.

Russell segue [o filósofo britânico Edmund] Burke na compreensão do conservadorismo como a negação da ideologia, que definia como fanatismo político.

Diferentemente dos que defendem que a autonomia individual e a liberdade sejam de importância primordial, os conservadores preocupam-se com a liberdade ordenada. Conservadores também aceitam a mudança como um meio de preservação, mas acreditam que deva ocorrer gradualmente, de forma orgânica, guiada com prudência baseada na cultura, nos costumes e nas convenções da sociedade.

Folha - Existe ainda pensamento conservador no Partido Republicano hoje em dia? Como a senhora vê a vida política americana sob Barack Obama?

O Partido Republicano é um conglomerado de diferentes tipos que se consideram conservadores. Alguns fundamentam o apoio aos candidatos no programa econômico, outros no programa social ou na política exterior. Convergem na preocupação com o crescimento exagerado do governo e na intromissão na vida das pessoas.

Durante o governo do presidente Obama houve, internamente, uma expansão nos programas governamentais, e todos sabíamos que isso iria acontecer, mas o que tem surpreendido é ele ter continuado quase todas as políticas externas da era Bush.

Obama desapontou alguns dos partidários na esquerda, pois não foi capaz de implementar todas as políticas esquerdistas. Como os Estados Unidos são essencialmente um país centralista, rejeitam as posições extremadas. No entanto, caso os republicanos não se unam com entusiasmo apoiando um candidato, Obama será reeleito.

Folha - Qual a herança de Russell Kirk na vida acadêmica dos EUA?

A coluna que ele publicou na "National Review" por 25 anos foi extremamente influente nos círculos acadêmicos. Russell também deu palestras em inúmeras faculdades e universidades e lecionou em diversas delas por um semestre ou mais. Muitos de seus livros são usados nas universidades até hoje.

Além disso, a revista "Modern Age", que fundou há mais de 50 anos, tornou-se um fórum para intelectuais apresentarem suas ideias sobre educação superior e reforma do ensino.

As ideias de Russell também estão surgindo em outros países.

Tal interesse pode ser visto no número crescente de artigos e teses a seu respeito, bem como várias traduções de artigos e livros em línguas estrangeiras -não só em alemão, espanhol, italiano ou português mas em búlgaro, polonês, russo e japonês.

Folha -  O que um pensador conservador teria para dizer a um país latino-americano imerso em injustiça social e corrupção?

Ao mesmo tempo em que afirma a imperfectibilidade da natureza humana e de qualquer sistema de governo e a impossibilidade de alcançar o paraíso na Terra, o conservadorismo acredita num eterno contrato que une os vivos, os que já morreram e os que ainda estão por nascer.

Defende ainda que há coisas permanentes passadas de uma geração para outra, dentre elas, percepções éticas e convicções, numa espécie de "aliança intergeracional".

Os vícios e a falta de apreço pela lei resultam diretamente do declínio da religiosidade e de laços familiares sólidos que ajudem a infundir respeito pelo ordenamento jurídico, pela moralidade pública e privada e o favorecimento de uma vida virtuosa.

Russell acreditava que para haver ordem na sociedade é necessário, primeiro, haver ordem nas almas e nas vidas dos cidadãos.

Para ele, a sociedade moderna necessita de uma verdadeira compreensão do sentido de comunidade, que é o oposto de coletivismo; este substitui a diversidade por uniformidade, e a colaboração voluntária pela força.

Folha -  O que é ser uma mulher conservadora hoje? Apenas ser submissa? Qual a resposta que uma pensadora conservadora daria para o feminismo hoje?

É difícil falar de feminismo hoje, pois existem muitos significados para essa palavra ao redor do mundo.

Curiosamente, Russell escreveu, em 1957, um livro chamado "O Guia do Conservadorismo para a Mulher Inteligente". Nele afirmava que as mulheres são conservadoras por natureza, pois ao vivenciarem realidades fatigantes percebem a necessidade real de segurança.

Como homens e mulheres são feitos segundo a imagem e semelhança de Deus, têm igual dignidade e direito à vida eterna. A vida na Terra deve permitir que se complementem, o que significa que a mulher deve acolher e nutrir os filhos com o apoio de um companheiro amoroso.

Quem fornece os meios materiais para a família pode ficar a critério do casal. Normalmente tem sido o homem aquele que trabalha fora, mas, como têm surgido oportunidades para as mulheres em campos anteriormente indisponíveis, pode ocorrer que, em algumas circunstâncias, o casal escolha que a mulher trabalhe fora ou meio-expediente e o homem tome conta das crianças.

Esse fator não deve ser decisivo para considerar um determinado casal conservador. Mais importante do que ganhar "o pão de cada dia" é o casal se manter unido nas questões espirituais, morais e sociais e no modo de educar os filhos.

segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Francesca



Lia eu o livro do marxista Terry Eagleton, "O Debate sobre Deus" (ed. Nova Fronteira, 232 págs., R$ 39,90), recém-publicado entre nós, quando topei com sua crítica ao cineasta Clint Eastwood.

Eagleton é um bom pensador, mas ninguém é perfeito. Seu livro é muito bom e merece ser lido, mas o que ele diz sobre Eastwood é uma grande bobagem.

Bobagem, aliás, comumente repetida por gente de bem, mas contaminada pelo que há de pior nos maus hábitos da esquerda: falar mal de algo que não conhece.

Eastwood não é um cineasta machão (como supõem Eagleton e quase toda a esquerda, que nada entende de ser humano, porque pensa o tempo todo na bobagem de luta de classes e oprimido x opressor). Pelo contrário, talvez ele seja um dos artistas que melhor entendem o desespero humano (masculino ou feminino), assim como suas virtudes mais sagradas, como a coragem, o autossacrifício e a generosidade.

Recentemente, revi seu maravilhoso filme "As Pontes de Madison" (1995), um longa feito para as mulheres, como muitos dizem.

Provavelmente ele pegou muita mulher por conta desse filme. Mulheres comumente não resistem a homens que parecem entendê-las. Uma das coisas mais lindas na mulher é a sua capacidade de erotizar o intelecto masculino.

Concordo que "As Pontes de Madison" seja um filme sobre o desejo feminino atado à rotina esmagadora de um casamento sem amor, mas nem tanto. Ele vai muito além de um drama especificamente feminino.

Sua personagem feminina principal, Francesca, vivida por Meryl Streep, não representa apenas as mulheres entediadas de casamentos conservadores (apesar de que sim, também as representa), mas sim todos os homens e mulheres que abrem mão de suas vidas afetivas em nome da família sem reclamar.

Se é verdade que Gustave Flaubert (1821-80), autor do clássico "Madame Bovary" (1857), disse um dia a famosa frase "Emma Bovary sou eu" (referindo-se à personagem principal de seu romance como representante universal da infelicidade humana), acho que muitos homens poderiam dizer, parafraseando esse grande romancista francês do século 19, "Francesca sou eu".

É um erro comum pensarmos que as angústias femininas não são universais. Tal erro é comum principalmente nas feministas, que, na realidade, não entendem nada de mulher nem de homem. Essa tendência a achar que os fantasmas femininos são "coisa de mulher", assim como menstruação e menopausa, é comum mesmo em gente capaz.

Vejamos. No filme em questão, ao final, Francesca (casada e mãe de dois filhos) abre mão de ir embora com Kinkaid, fotógrafo da "National Geographic", vivido pelo próprio Eastwood, e que se tornará seu amante por alguns dias, mas de quem ela jamais se esquecerá (nem ele se esquecerá dela).

No marasmo de uma vida interiorana americana, Francesca vive por poucos dias o pecado do adultério. Não se faz de vítima, mas sabe que peca. Peço aos inteligentinhos que nada entendem do conceito de pecado que vão brincar no parque.

O adultério é um pecado, principalmente quando há amor envolvido; talvez, somente quando há amor envolvido. E pecado aqui significa a consciência de que você não é dono de si mesmo. Suas reações, pensamentos e esquemas rotineiros de enfrentamento da vida entram em colapso. E dói.

E mais: é pecado porque o adultério faz você ver que existe alguém dentro de você que é despertado do sono por outra pessoa que não aquela que divide honestamente e cotidianamente o dia a dia da sua vida.

Aquela pessoa que envelhece com você ao longo de uma vida de "pequenos detalhes" (como diz nossa heroína Francesca) que, ao serem somados, representam uma parceria de confiança, retribuição e generosidade. A grandeza da pecadora Francesca só pode ser medida contra seu sacrifício em nome dos filhos e do fiel e dedicado marido.

A alma de um pecador é a sua consciência de que faz algo contra alguém que não merece. A pior tragédia do adultério se dá quando o traído é inocente.

Ao contrário do que muitas mulheres casadas pensam, muitos homens sacrificam suas vidas afetivas em nome delas e dos filhos, em silêncio. A virtude é sempre discreta.