terça-feira, 27 de maio de 2014

Tempo reencontrado - J.P. Coutinho


Envelhecer não é apenas um fato biológico. É também estético. Segundo os ensinamentos do dr. Coutinho, envelhecer significa rever certos filmes ou reler certos livros que a nossa ignorância juvenil considerava obras-primas —e depois pular do sofá, sustendo o vômito e gritando de pasmo: "Mas como foi possível eu ter gostado de uma bosta dessas?".

Recentemente, em mudanças, resolvi fazer uma tosquia na biblioteca. Mas, antes da tosquia, resolvi avaliar a qualidade do rebanho, começando pelos espécimes que ocupavam o panteão das paixões adolescentes.
Henry Miller estava no topo da lista, e a sua trilogia ("Sexus", "Plexus", "Nexus"), complementada pelos "Trópicos" (de Câncer e de Capricórnio), tinha deixado gratas memórias na memória da criança.

A criança, hoje a caminho da meia-idade, sentou e releu as páginas sublinhadas. E ficou abismada com a mediocridade da prosa e o priapismo repetitivo, sem sombra de humor, com que Miller polvilhava as suas fantasias parisienses. Como foi possível ter dado abrigo a Henry Miller durante tanto tempo?

Aliás, não apenas a ele: com os romances de Umberco Eco; a filosofia de Baudrillard; a poesia de Sylvia Plath foi precisamente a mesma coisa. Tudo para o balde.

E no cinema? Aqui, a minha vergonha é ainda maior: vinte anos atrás, eu acreditava genuinamente que Oliver Stone era um diretor de cinema. Fui acumulando os filmes do homem —"Nascido em 4 de Julho", "The Doors", o repelente "Assassinos por Natureza"— com gratidão cinéfila sincera.

Hoje, assistindo a qualquer um deles, é legítimo questionar que substâncias ilícitas eu consumia na década de 1990.

Pior: filmes declaradamente "sérios" e "dramáticos", como "Nascido em 4 de Julho", são impossíveis de engolir com cara séria. Acreditar em Tom Cruise como "marine" estropiado no Vietnã não é apenas "suspender a descrença". É suspender qualquer atividade cerebral significativa.

E quem fala em Stone, fala dos exercícios nulos de Jonathan Demme ("Filadélfia" em primeiro lugar); nos filmes de Mike Nichols (começando logo em "A Primeira Noite de um Homem"); e, obviamente, nesse caso perdido que dá pelo nome de Ridley Scott. Se "Thelma & Louise" não é o pior filme dos últimos largos anos, eu desafio o leitor a apresentar uma alternativa.

Mas nem tudo é necessariamente mau. O que jogamos no balde com alívio e repulsa é compensado por tudo o que resgatamos dele.

Falei de Ridley Scott. Mas, 20 anos depois, eu desconhecia que o talento da família estava com o irmão Tony. Sim, a filmografia do senhor é majoritariamente pavorosa. Mas depois existem uns milagres lá pelo meio -os filmes com Denzel Washington, como "Chamas da Vingança"- que redimem todas as falhas e todas as pirotecnias escusadas.

Ressurreições são também devidas a diretores entretanto desaparecidos em combate, como Steven Kloves (que nos deu "Susie e os Baker Boys", um filme etílico —em vários sentidos da palavra— e que envelheceu bem como os melhores vinhos) ou Lawrence Kasdan (que em "O Turista Acidental" dirigiu uma obra-prima do cinema americano moderno).

E, nos livros, uma confissão: a arte do conto foi destronando a ilusória grandiosidade do Romance (com maiúscula). Claro que os russos (como Dostoiévski), os ingleses (como Evelyn Waugh) ou os franceses (como Céline) permanecem intocáveis.

Mas sei hoje que, comparando colegas de geração, prefiro os contos de Richard Ford a qualquer romance de Don DeLillo; os contos de William Trevor a qualquer romance de Iris Murdoch; os contos de Hanif Kureishi a qualquer romance de Ian McEwan.

Lições para o futuro? Apenas uma: não confiar demasiado no passado. Como diria o velho Darwin, só sobrevive quem se adapta melhor aos desafios da evolução. O que significa que, evoluindo nós, os livros ou os filmes que ficam são aqueles que se adaptam aos dilemas, às alegrias e às tristezas que só chegam mais tarde nas nossas vidas.

O que jogamos no balde não é tempo perdido. É tempo reencontrado.

Jesus can't be boring - Pondé


Não, o título deste texto não é uma citação, apenas uma expressão que em inglês soa melhor. Se formos falar "Jesus não pode encher o saco" ou "Jesus não pode entediar", isso não capta o sentido contemporâneo de Jesus como "commodity".

Inglês é o idioma ideal para o mundo da mercadoria, porque vendemos tudo melhor em inglês. Imagine se fôssemos fazer um comercial sobre como Jesus tem que ser legal para você, se você for um jovem ou uma jovem de 20 anos? "Jesus can't be boring" soaria muito melhor... Ou seja: Jesus tem que ser legal... E somar à sua vida... (ou "agregar valor", expressão que eu pessoalmente detesto).

Estamos falando de mercado religioso. Sim, as religiões competem no mercado de "bens religiosos": festas, significados para vida e para o sofrimento, laços sociais e afetivos dentro das comunidades de fiéis, casamentos, educação de filhos, narrativas de fim de mundo, rituais mágicos ou não, ferramentas de comunicação espiritual ou similares como TV ou mídias sociais, enfim, tudo o que uma religião oferece em termos de "bens de consumo".

A vida não tem sentido aparente, é curta (só parece longa quando sua vida é muito péssima), precária, escassa, frustrante; logo, uma hora dessas, ou Jesus ou Frontal vai bater na sua porta. Se você for mais chique, um Buda light serve.

Vale lembrar que tudo o que falamos aqui sobre Jesus poderia ser falado sobre qualquer outra figura religiosa de peso. Não se trata de nenhuma forma de ironia ou sarro com o cristianismo especificamente. Como estamos numa sociedade majoritariamente cristã, nas suas diversas denominações, podemos falar em "Jesus como bem religioso" como símbolo de todo o processo de commoditização das religiões.

Commoditização das religiões significa a transformação das religiões em bens de consumo tratados via ferramentas de marketing, num mercado de comportamentos em que elas devem competir entre si e com as opções seculares.

Opções seculares são: ateísmo, quase ateísmo, agnosticismo ("não temos provas definitivas nem de que Deus existe nem de que não existe", afirmação que para os ateus é ateísmo que não saiu do armário), humanismo ateu como o do autor britânico A. C. Grayling em seu livro "The God Argument, The Case Against Religion and for Humanism", ou simplesmente, "bode dos deuses, e vamos viver o dia a dia para ver no que dá".

As religiões devem vencer umas às outras como produto, e aos seculares também. É briga de cachorro grande. Nesse processo, a Igreja Católica apanha dos protestantes que já nasceram com a vocação para o business. As afro-brasileiras têm a seu favor a coisa de que são religiões de vítimas sociais -e ,se você é branco e vai nelas, você é legal e sem preconceitos.

Como dizem os especialistas em religião e mídia Stewart M. Hoover e Lynn S. Clark, na coletânea organizada por eles, "Practicing Religion in the Age of the Media", da Columbia University Press, de 2002, ou Heidi A. Campbell, no recente, de 2013, "Digital Religion: Understanding Religious Practices in New Media Worlds", da editora inglesa Routledge: as religiões combatem o risco de invisibilidade num mundo veloz e pautado por projetos do self (já digo o que é isso), aprendendo a se tornarem commodities que circulam nas mídias falando a língua de pessoas voltadas para o consumo de bens de comportamento que tornem a vida mais fácil.

"Projetos do self", conceito discutido por Hoover e Clark, são modos de viver em que tudo deve ser ajustado a personalidades narcísicas (leia "Cultura do Narcisismo", de Christopher Lasch, clássico de 1979, sobre o que é ser um narcisista no mundo contemporâneo).

Essa personalidade "líquida", como diz o Bauman, não tolera nada que pese como uma mala sem alça.

Amores, viagens, trabalho (claro, se eles têm grana, se não todo esse papinho vira pó), sexo, deuses, Jesus, tudo deve nos ajudar a emagrecer, a ter uma vida saudável, a cuidar de nosso corpo, e a me ensinar que eu sou a coisa mais importante para mim mesmo.

Sério! Quem quer um Jesus "para baixo"? Logo Jesus terá que vir de bike para a missa, e nada de cruz nas costas.