sábado, 6 de abril de 2013
quinta-feira, 4 de abril de 2013
Viagem ao inferno - JP Coutinho
O MELHOR do mundo são as crianças, dizia Fernando Pessoa. Ainda bem que o poeta morreu em 1935. Hoje, na era da histeria, quando qualquer adulto é um agressor sexual em potencial, frases dessas poderiam alimentar equívocos.
Um filme dinamarquês, já estreado no Brasil, ajuda a entender por quê. Intitula-se "A Caça", foi dirigido por Thomas Vinterberg (um dos ideólogos estéticos do movimento Dogma 95, juntamente a Lars von Trier) e a história resume-se em breves linhas: Lucas, depois de um casamento desfeito, encontra trabalho como educador de infância.
Lentamente, a vida começa a reerguer-se: ele tem uma nova namorada; o filho reaproxima-se depois do afastamento; os amigos são exemplos de camaradagem "nórdica" em alegres caçadas e alegres bebedeiras.
Mas eis que surge em cena uma criança, Klara, pronta para estragar a festa com os equívocos próprios das crianças. Em casa, Klara encontra imagens pornô no iPad do irmão adolescente. Sinal dos tempos: onde estão as velhas revistas em papel da minha adolescência? Divago.
Certo é que esse encontro será a primeira fagulha do incêndio que virá a seguir. E que tem início na escola, depois de uma birra entre Klara e o professor Lucas, uma dessas birras em que as crianças são pródigas.
Questionada pela diretora da escola a respeito, Klara confessa um episódio "impróprio" que nunca aconteceu com o professor. Usando para o efeito os pormenores gráficos que vira nas fotos.
O incêndio começa e Vinterberg parece reatualizar no filme essa outra "caça" que Arthur Miller apresentou na peça "The Crucible" a respeito das "bruxas" de Salem.
Não apenas ao eleger como palco da tragédia uma pequena comunidade rural (e puritana) que inicia também a sua "caça" ao elemento demoníaco.
Mas ao filmar, com impressionante crueza, os mecanismos clássicos da "histeria contagiosa".
Primeiro, a histeria da diretora da escola, que passa rapidamente da incredulidade para a dúvida; e da dúvida para a certeza; e da certeza para a condenação pura e simples.
Tudo com a ajuda de um "especialista pedagógico" que, obviamente, não é especialista de coisa nenhuma, exceto das suas próprias taras e preconceitos: o interrogatório à criança, na sua aparente doçura, é um dos momentos mais aberrantes de todo o processo.
Quem diria que os velhos inquisidores de Salém regressariam hoje pela porta da "pedagogia" romântica? Ah, os discípulos de Rousseau nunca desiludem.
E, depois da histeria da diretora, o incêndio propaga-se aos pais das restantes crianças, alertados em reunião escolar para a existência de um lobo entre as ovelhas. O que significa que o incêndio também chega às ovelhas, que já apresentam sintomas possíveis/prováveis/óbvios de abuso sexual.
Exatamente como as donzelas falsamente possuídas da peça de Arthur Miller.
Lucas, o professor, não cometeu nenhum crime. Em poucos dias, cometeu vários crimes -e o incêndio atinge finalmente o seu círculo mais restrito. A namorada. O filho. Os amigos, os velhos amigos, que se afastam com o nojo próprio de quem sempre suspeitara de que ele era "diferente", ou seja, "tarado", ou seja, "pedófilo".
O incêndio da calúnia consumiu todos em volta, ou quase: há ainda um amigo que resiste; há ainda o filho que persiste na inocência do pai.
E quando essa inocência é provada e comprovada, nós, testemunhas da destruição metódica de um ser humano, acreditamos com Lucas que as chamas serão apagadas e o inferno chegará ao fim.
Mas essa é a principal e mais inquietante lição do filme de Thomas Vinterberg, um verdadeiro tratado sobre a natureza humana: as chamas da calúnia nunca se apagam. Elas permanecem como brasas dormentes, prontas para serem atiçadas pela mínima brisa.
A sequência final, que naturalmente não revelo aqui, é talvez o melhor momento do filme ao ilustrar de forma agônica como o inferno é a única eternidade garantida.
O melhor do mundo são as crianças? Acredito que sim. Mas o poeta poderia ter escrito antes que o pior do mundo são os adultos.
Ou, como Arthur Miller explica na sua peça, que não existe maior medo do que o ódio dos homens com medo.
Um filme dinamarquês, já estreado no Brasil, ajuda a entender por quê. Intitula-se "A Caça", foi dirigido por Thomas Vinterberg (um dos ideólogos estéticos do movimento Dogma 95, juntamente a Lars von Trier) e a história resume-se em breves linhas: Lucas, depois de um casamento desfeito, encontra trabalho como educador de infância.
Lentamente, a vida começa a reerguer-se: ele tem uma nova namorada; o filho reaproxima-se depois do afastamento; os amigos são exemplos de camaradagem "nórdica" em alegres caçadas e alegres bebedeiras.
Mas eis que surge em cena uma criança, Klara, pronta para estragar a festa com os equívocos próprios das crianças. Em casa, Klara encontra imagens pornô no iPad do irmão adolescente. Sinal dos tempos: onde estão as velhas revistas em papel da minha adolescência? Divago.
Certo é que esse encontro será a primeira fagulha do incêndio que virá a seguir. E que tem início na escola, depois de uma birra entre Klara e o professor Lucas, uma dessas birras em que as crianças são pródigas.
Questionada pela diretora da escola a respeito, Klara confessa um episódio "impróprio" que nunca aconteceu com o professor. Usando para o efeito os pormenores gráficos que vira nas fotos.
O incêndio começa e Vinterberg parece reatualizar no filme essa outra "caça" que Arthur Miller apresentou na peça "The Crucible" a respeito das "bruxas" de Salem.
Não apenas ao eleger como palco da tragédia uma pequena comunidade rural (e puritana) que inicia também a sua "caça" ao elemento demoníaco.
Mas ao filmar, com impressionante crueza, os mecanismos clássicos da "histeria contagiosa".
Primeiro, a histeria da diretora da escola, que passa rapidamente da incredulidade para a dúvida; e da dúvida para a certeza; e da certeza para a condenação pura e simples.
Tudo com a ajuda de um "especialista pedagógico" que, obviamente, não é especialista de coisa nenhuma, exceto das suas próprias taras e preconceitos: o interrogatório à criança, na sua aparente doçura, é um dos momentos mais aberrantes de todo o processo.
Quem diria que os velhos inquisidores de Salém regressariam hoje pela porta da "pedagogia" romântica? Ah, os discípulos de Rousseau nunca desiludem.
E, depois da histeria da diretora, o incêndio propaga-se aos pais das restantes crianças, alertados em reunião escolar para a existência de um lobo entre as ovelhas. O que significa que o incêndio também chega às ovelhas, que já apresentam sintomas possíveis/prováveis/óbvios de abuso sexual.
Exatamente como as donzelas falsamente possuídas da peça de Arthur Miller.
Lucas, o professor, não cometeu nenhum crime. Em poucos dias, cometeu vários crimes -e o incêndio atinge finalmente o seu círculo mais restrito. A namorada. O filho. Os amigos, os velhos amigos, que se afastam com o nojo próprio de quem sempre suspeitara de que ele era "diferente", ou seja, "tarado", ou seja, "pedófilo".
O incêndio da calúnia consumiu todos em volta, ou quase: há ainda um amigo que resiste; há ainda o filho que persiste na inocência do pai.
E quando essa inocência é provada e comprovada, nós, testemunhas da destruição metódica de um ser humano, acreditamos com Lucas que as chamas serão apagadas e o inferno chegará ao fim.
Mas essa é a principal e mais inquietante lição do filme de Thomas Vinterberg, um verdadeiro tratado sobre a natureza humana: as chamas da calúnia nunca se apagam. Elas permanecem como brasas dormentes, prontas para serem atiçadas pela mínima brisa.
A sequência final, que naturalmente não revelo aqui, é talvez o melhor momento do filme ao ilustrar de forma agônica como o inferno é a única eternidade garantida.
O melhor do mundo são as crianças? Acredito que sim. Mas o poeta poderia ter escrito antes que o pior do mundo são os adultos.
Ou, como Arthur Miller explica na sua peça, que não existe maior medo do que o ódio dos homens com medo.
segunda-feira, 1 de abril de 2013
O gozo da pulsão de morte - Pondé
Pense na Dinamarca. País perfeito, que, junto de Suécia, Noruega e Islândia (um dos lugares mais fascinantes em que já estive justamente porque é no fim do mundo e ninguém normal vai para lá), forma o paraíso na Terra para essa gente do "queremos um mundo melhor".
A chave para entender esses belos países não é o que gente mal informada acha que é, a saber, seu altíssimo grau de civilização e "consciência social" (em mil anos, termos como esse soarão como hoje soa "raça ariana superior"), mas, sim, seu altíssimo grau de prazer em reprimir tudo que não seja norma e de torturar todos que parecerem estar fora dela (dito de modo psicanalítico, um enorme gozo da pulsão de morte a serviço da repressão e humilhação moral).
O luteranismo puritano do passado escandinavo se transformou na repressão terrível em nome de "sua santidade" o politicamente correto, seja ele ecológico, social, sexual, cultural, ou que diabo for.
O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo da pureza moral. O cinema de Ingmar Bergman, Lars von Trier e Thomas Vinterberg, por exemplo, é um testemunho claro desse gozo mórbido pela hipocrisia do amor à norma.
Mas seria injusto passar a conta para os escandinavos. Nós todos gozamos em torturar quem cai na desgraça de ser um herege. O ódio nos move mais do que o amor, e, antes de tudo, odeio o racista mais do que amo sua vítima de racismo.
Adoramos humilhar, perseguir, destruir homens e mulheres, porque supostamente feriram códigos. Mas a maioria de nós não está nem aí para os códigos. Gosta, sim, de ver o desgraçado reduzido a lixo.
Somos inquisidores natos, prontos a babar em cima da primeira vítima que surgir, principalmente a "moçadinha" por um mundo melhor.
Por isso, na Idade Média levavam as crianças para o programa de domingo, que era ver infelizes arderem. E você, caro leitor, que talvez se ache o máximo, provavelmente levaria o seu filho também para cuspir no herege. Quer ver: o que você acha do pastor Feliciano? Ou de algum machista nojento?
Ou de padre pedófilo? Merecem um xingamento básico? Quem sabe, ovo podre? Bruxa e gay hoje não são mais hereges, são parte do status quo "cabecinha".
Por falar em Vinterberg, veja o maravilhoso "A Caça", com o excelente Mads Mikkelsen (o mesmo do "Amante da Rainha") no papel principal de um professor de jardim de infância injustamente acusado de pedofilia por uma aluna.
O filme deveria ser passado nas escolas de magistratura, nas faculdades de psicologia, pedagogia, serviço social e outros quebrantos.
Tudo nele é sofisticado e a serviço de desmascarar o inquisidor que existe em nós. O erro da "moçadinha" para um mundo melhor é não entender que, para descobrir o inquisidor babão em si mesmo, a chave não é pensar em "vítimas oficiais de preconceito", mas sim em quem você odeia por razões
que você considera justas.
A questão do filme não é negar o horror da pedofilia (vamos esclarecer antes que algum inquisidor comece a babar em cima de mim), mas, sim, mostrar como funciona nossa velha natureza humana em seus novos objetos de gozo mórbido moral.
A menina, Klara, tendo sido "recusada" em seu amor pelo professor Lucas (Mikkelsen) --ela o beija na boca--, vinga-se dizendo para a diretora da escola (esse ser quase sempre pronto para abraçar qualquer moda, mesmo as modas de horror como a pedofilia) que ele tinha mostrado seu órgão
sexual para ela.
Daí, claro, segue-se o "normal": um especialista acaba por dar a bênção "científica" para a acusação de pedofilia contra o inocente Lucas. Ele segue a cartilha de que as crianças nunca mentem e quando negam o suposto abuso é porque estão envergonhadas. De repente, todas as crianças dizem terem sido abusadas.
Por isso, de nada adianta o arrependimento de Klara, que tenta negar o que disse mil vezes (e ela o faz várias vezes, mas nenhum adulto acredita nela).
Todos "cospem" em Lucas: amigos e suas mulheres, colegas de trabalho, ex-mulher, quitandeiros.
Teste sua alma de inquisidor: o que você faria se acusassem o professor de sua filhinha de pedofilia?
A chave para entender esses belos países não é o que gente mal informada acha que é, a saber, seu altíssimo grau de civilização e "consciência social" (em mil anos, termos como esse soarão como hoje soa "raça ariana superior"), mas, sim, seu altíssimo grau de prazer em reprimir tudo que não seja norma e de torturar todos que parecerem estar fora dela (dito de modo psicanalítico, um enorme gozo da pulsão de morte a serviço da repressão e humilhação moral).
O luteranismo puritano do passado escandinavo se transformou na repressão terrível em nome de "sua santidade" o politicamente correto, seja ele ecológico, social, sexual, cultural, ou que diabo for.
O que está em jogo é torturar quem não parece estar enquadrado no jogo da pureza moral. O cinema de Ingmar Bergman, Lars von Trier e Thomas Vinterberg, por exemplo, é um testemunho claro desse gozo mórbido pela hipocrisia do amor à norma.
Mas seria injusto passar a conta para os escandinavos. Nós todos gozamos em torturar quem cai na desgraça de ser um herege. O ódio nos move mais do que o amor, e, antes de tudo, odeio o racista mais do que amo sua vítima de racismo.
Adoramos humilhar, perseguir, destruir homens e mulheres, porque supostamente feriram códigos. Mas a maioria de nós não está nem aí para os códigos. Gosta, sim, de ver o desgraçado reduzido a lixo.
Somos inquisidores natos, prontos a babar em cima da primeira vítima que surgir, principalmente a "moçadinha" por um mundo melhor.
Por isso, na Idade Média levavam as crianças para o programa de domingo, que era ver infelizes arderem. E você, caro leitor, que talvez se ache o máximo, provavelmente levaria o seu filho também para cuspir no herege. Quer ver: o que você acha do pastor Feliciano? Ou de algum machista nojento?
Ou de padre pedófilo? Merecem um xingamento básico? Quem sabe, ovo podre? Bruxa e gay hoje não são mais hereges, são parte do status quo "cabecinha".
Por falar em Vinterberg, veja o maravilhoso "A Caça", com o excelente Mads Mikkelsen (o mesmo do "Amante da Rainha") no papel principal de um professor de jardim de infância injustamente acusado de pedofilia por uma aluna.
O filme deveria ser passado nas escolas de magistratura, nas faculdades de psicologia, pedagogia, serviço social e outros quebrantos.
Tudo nele é sofisticado e a serviço de desmascarar o inquisidor que existe em nós. O erro da "moçadinha" para um mundo melhor é não entender que, para descobrir o inquisidor babão em si mesmo, a chave não é pensar em "vítimas oficiais de preconceito", mas sim em quem você odeia por razões
que você considera justas.
A questão do filme não é negar o horror da pedofilia (vamos esclarecer antes que algum inquisidor comece a babar em cima de mim), mas, sim, mostrar como funciona nossa velha natureza humana em seus novos objetos de gozo mórbido moral.
A menina, Klara, tendo sido "recusada" em seu amor pelo professor Lucas (Mikkelsen) --ela o beija na boca--, vinga-se dizendo para a diretora da escola (esse ser quase sempre pronto para abraçar qualquer moda, mesmo as modas de horror como a pedofilia) que ele tinha mostrado seu órgão
sexual para ela.
Daí, claro, segue-se o "normal": um especialista acaba por dar a bênção "científica" para a acusação de pedofilia contra o inocente Lucas. Ele segue a cartilha de que as crianças nunca mentem e quando negam o suposto abuso é porque estão envergonhadas. De repente, todas as crianças dizem terem sido abusadas.
Por isso, de nada adianta o arrependimento de Klara, que tenta negar o que disse mil vezes (e ela o faz várias vezes, mas nenhum adulto acredita nela).
Todos "cospem" em Lucas: amigos e suas mulheres, colegas de trabalho, ex-mulher, quitandeiros.
Teste sua alma de inquisidor: o que você faria se acusassem o professor de sua filhinha de pedofilia?
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