quarta-feira, 7 de setembro de 2016

"A Morte de Ivan Ilitch"de Tolstói, revela as mentiras da existência - J.P. Coutinho

Amigo leitor: peço desculpa pelo uso abusivo da palavra. Eu não sou seu amigo. Nem você é meu. Não nos conhecemos e, francamente, melhor assim. Eu escrevo e, com sorte, alguém lê desse lado. É uma troca justa. E basta.

Aliás, por falar em amigos, quantos você tem? Cinco? Dez? Vinte? Melhor cortar o número para metade. Tempos atrás, li um estudo sobre as nossas falsas percepções sobre os amigos. E parece que só metade das amizades que julgamos sólidas são recíprocas. Na outra metade estão pessoas que não pensam em nós, pensam pouco ou até pensam mal.

Essas conclusões não me espantam. Experiência cotidiana: alguém fala que encontrou o personagem X e ele, eufórico, falou de mim como "grande amigo".
Disfarço, por gentileza. Mas, se fizesse uma lista com as cem pessoas que passaram pela minha vida –da família mais próxima ao homem que me vendeu os jornais meia hora atrás–, o personagem X não estaria presente.

Aqui entre nós, quem é o personagem X? E, já agora, por que motivo tendemos a inflacionar o número de amigos que julgamos ter?

Fato: o conceito de "amizade" tornou-se uma caricatura, sobretudo quando é possível colecionar centenas ou milhares de "amigos virtuais" no mundo virtual. O pessoal confunde as coisas e julga que um "like" é uma jura de amor eterno.

Mas as conclusões do estudo também não me espantam por causa de um livro publicado há precisamente 130 anos. O autor é Lev Tolstói (1828-1910) e o título é "A Morte de Ivan Ilitch".

Primeira confissão: "A Morte de Ivan Ilitch" sempre me pareceu um erro. "A Vida de Ivan Ilitch" seria a titulatura mais apropriada porque é de vida, e não de morte, que Tolstói nos fala.

Sim, superficialmente, temos um homem que adoece com gravidade e que caminha para o seu cadafalso com a angústia e o ressentimento dos condenados.

Mas a novela de Tolstói é uma meditação avassaladora sobre as mentiras da existência "comme il faut".

A expressão francesa é usada e abusada pelo narrador com propósitos irônicos, mas também descritivos. Ivan Ilitch era a promessa da família –e a promessa se cumpriu.

Estudou, formou-se, tornou-se funcionário judicial de sucesso. E procurou sempre uma vida "comme il faut" que estivesse à altura dos gostos da plateia. Teve um casamento "comme il faut"; uma casa "comme il faut"; uma carreira de magistrado "comme il faut".

E, quando a harmonia doméstica começou a ruir, Ivan Ilitch resolveu o assunto "comme il faut": casou-se com o trabalho e transformou a mulher em "hobby" suportável.

É perante esta gloriosa encenação que a morte surge como elemento dissonante –ou, se preferirmos, "pas comme il faut". Ivan analisa a dor da enfermidade como se aquilo fosse um elemento estranho, injusto, "fora do lugar". Nega a sua condição (morrer, eu?) e, quando a enfrenta, é devorado por um terror gélido ("sim, eu").

Nas mãos de um escritor banal, a doença serviria para mostrar a Ivan Ilitch que as medalhas que ostentamos ao peito não nos protegem do fim inevitável e blá-blá-blá.

Para um monstro como Tolstói, a morte de Ivan Ilitch é a "via dolorosa" da sua salvação. Porque é a morte que permitirá ao personagem olhar para os outros e para ele próprio sem viciar "o fundo insubornável do ser" de que falava o filósofo Ortega y Gasset.

É, enfim, uma visão límpida e aterradora. A mulher e a filha, cansadas da agonia de Ivan, consideram-no um estorvo, um repulsivo estorvo que a morte tarda em levar.

E, quando recorda a sua vida, é na infância, e apenas na infância, que Ivan Ilitch encontra uma felicidade autêntica e sem sombra. A conclusão é trágica e, ao mesmo tempo, libertadora: enquanto subia aos olhos dos outros ("comme il faut"), Ivan Ilitch descia rumo ao naufrágio.

É esse naufrágio, essa falsificação espiritual que encontramos nos "amigos" de Ivan quando sabem da notícia da morte. Uns pensam nas suas carreiras (quem ocupará o lugar do defunto? haverá promoções?). Outros sentem alívio ("foi ele, não fui eu"). E todos suspiram com as obrigações sociais entediantes (ir ao funeral, consolar a viúva etc.). "The show must go on."

Amigos? Temos dezenas, centenas, milhares. E assim continuaremos –autoiludidos e autocentrados– até chegarmos ao leito derradeiro onde estarão poucos ou ninguém

Uma coisa me chama a atenção nos tais jovens críticos: sua intolerância - Pondé


Nosso mundo contemporâneo é cheio de fetiches sobre seu próprio avanço em relação ao passado. Hoje vou dar dois exemplos de fetiches típicos. O primeiro a ver com a ideia de crítica e de pessoas críticas. O segundo a ver com a ideia de revolução, mais precisamente a revolução sexual.

O primeiro fetiche proponho chamarmos de fetiche da crítica. Este é um dos mais comuns e mais bobos do mundo contemporâneo. Nunca vi gente mais longe de qualquer pensamento que valha a pena do que gente "crítica". Não conheço gente mais chata do que gente "crítica".
O fetiche da crítica aparece muito associado à educação, à arte e à cultura. Você pode ouvir gente falando dele em todo lugar em que muita gente se reúna para pensar a educação, a arte e a cultura.

Como fazer um aluno crítico? Como criar uma arte crítica? Como produzir uma cultura crítica? Minha primeira aposta é que, se você perguntar diretamente para um desses defensores de uma educação crítica, de uma arte crítica e de uma cultura crítica o que é ser crítico, ele vai responder mostrando uma selfie dele numa manifestação na Paulista.

Eu vou dizer para você uma coisa: não conheço aluno mais fechado ao diálogo do que alunos que se consideram críticos. Ser "crítico" nesse caso, basicamente, significa falar mal do capitalismo, do patriarcalismo e dos EUA. Uma banalidade que se ensina em qualquer aula barata de filosofia e sociologia.

Mas uma coisa me chama a atenção nos tais jovens críticos: sua intolerância. Torquemada ficaria com complexo de inferioridade. Não conte com nenhuma autocrítica em gente crítica. Normalmente lê pouco, é afogado em certeza banais do tipo "o mundo seria melhor se fosse como eu descrevi em minha tese", e tem pouco afeto pelo estudo profundo de qualquer coisa.

Aí vai uma característica chocante em gente crítica: não gosta de estudar de fato. Quando fala, fala a partir de uma posição inquestionável. Acho que o motivo dessa atitude é justamente aquele tipo de ignorância marcante em quem conhece pouco de qualquer coisa. Por isso, acho mais importante procurarmos levar um aluno a entender o que um texto quer dizer simplesmente e não levá-lo a ser "crítico". Antes de tudo, podemos perguntar: crítico do que, se, normalmente, mesmo os professores não são críticos de nada a não ser daquilo de que não gostam?

Portanto temo pela educação, pela arte e pela cultura quando se busca formar críticos. O fetiche os leva ao gozo porque, usando essa palavra "crítica", você pode dizer qualquer banalidade que ela soa ungida pelo véu da inteligência.

De minha parte, acho que devemos evitar a palavra "crítica" da mesma forma que devemos evitar palavras como "cabala" ou "energia". Em si, as duas são coisas sérias, mas, no mundo do fetiche da informação como o nosso, as duas não significam muito mais do que palavras vazias de sentido.

Outro fetiche é o da revolução. Toda pessoa crítica faz uma revolução por fim de semana. Mas, entre todas, a mais ridícula é a revolução sexual, aquela que matou o desejo e o afeto entre homens e mulheres. Quando, no futuro, estudarem nossa época, perceberão que, entre as baixas causadas pela gente crítica, estarão o afeto e o desejo. Nunca ambos foram tão falados e tão combatidos a pauladas. Afogados na banalidade das quantidades.

Vejo mesmo uma manifestação de gente crítica e revolucionária na Paulista no futuro. Essa manifestação que tenho na cabeça acontecerá em poucos anos. Se focarmos melhor nossas câmeras, veremos alguns cartazes, claro, todos revolucionários. Perguntará o leitor ingênuo: "A favor do que ou contra o quê?" Gente crítica e revolucionária sempre é a favor de algo ou contra algo.

Alguns desses cartazes dirão frases assim: "Pelo incesto como forma de crítica sexual!", "Por que não posso amar a minha mãe sexualmente?", "Freud morreu: viva o incesto como forma plena do desejo antiedípico!". Teses pelo mundo afora discutirão a nova forma de amor livre: o direito ao incesto.

E, no meio dos cartazes, um outro: "Pelo direito de casar com o meu dobermann!".