segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

A beleza salvará o mundo - Pondé

Caro leitor, cara leitora, que sua semana se abra com tamanha beleza: "Meu único amor, nascido de meu único ódio! Cedo demais o vi, ignorando-lhe o nome, e tarde demais fiquei sabendo quem é. Monstruoso para mim é o nascedouro desse amor, que me faz amar tão odiado inimigo". É uma fala de Julieta, na peça "Romeu e Julieta" de William Shakespeare.
E mais: "Tarde te amei, ó beleza tão antiga e tão nova! Tarde demais eu te amei! Eis que habitavas dentro de mim e eu te procurava do lado de fora! Eu, disforme, lançava-me sobre as belas formas das tuas criaturas.
Estavas comigo, mas eu não estava contigo. Retinham-me longe de ti as tuas criaturas, que não existiriam se em ti não existissem. Tu me chamaste, e teu grito rompeu a minha surdez. Fulguraste e brilhaste e tua luz afugentou a minha cegueira. Espargistes tua fragrância e, respirando-a, suspirei por ti. Eu te saboreei, e agora tenho fome e sede de ti. Tu me tocaste, e agora estou ardendo do desejo da tua paz".
O trecho é de "Confissões", de Santo Agostinho, capítulo dez.
O grande autor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) dizia que a beleza salvaria o mundo. Conhecendo o abismo do desespero e do niilismo, ele profetizou a força da beleza como restauradora do espírito.
Para ele, habitaríamos um futuro em que a verdade desapareceria por força de nossa própria dúvida e razão, e que, talvez, apenas a beleza poderia recuperar a forma do mundo.
Mundo este feito para acolher a misericórdia, já que habitado por solitários como nós. A esperança, para o nosso russo, é flor que brota dos escombros. Visões de um romântico, claro. Romântico como a jovem Julieta.
Mesmo que presos ao tempo -que nos assola a cada dia com o desespero que parece brotar do vazio das horas e lentamente nos revela o destino que nos espera-, é este mesmo tempo que ambos, Shakespeare e Santo Agostinho, chamam à cena para marcar o momento da descoberta da beleza.
Sempre tarde demais ou cedo demais, ela chega. E nós, com nossas palavras e gestos, corremos atrás pra dar-lhe nome. Romeu e Deus. É pelo esforço de dar nome à doce fúria que ela nos incita, que recuperamos o gosto pelas coisas.
Mesmo que seja, como diz o príncipe no final de "Romeu e Julieta", para nos mostrar como nosso mundo não suporta a beleza de dois jovens que se amam, sem perceberem que o mundo não é lugar para tamanha monstruosidade de um amor fora do lugar.
A beleza que Agostinho tarda a amar, na história de Cristo, é esta beleza mesma, despedaçada pela incapacidade humana de sair da cela da humilhação para a leveza da humildade -única virtude indestrutível, como diria outro grande artista, Georges Bernanos.
Sem a humildade, nos sentimos humilhados pela beleza de Deus. O desejo enlouquecido de Agostinho no texto é lugar comum na literatura mística, tradição marcada pelo encontro com esta beleza.
No texto de Shakespeare, Romeu é o objeto de amor avassalador da jovem de 13 anos conhecida como Julieta, da nobre família dos Capuleto, representante aqui de todo homem e toda mulher que um dia enlouqueceu de amor.
No texto de Santo Agostinho, Deus é o objeto. Aquele que sustenta tudo que existe e que é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo. Conhecer Deus exige de nós um autoconhecimento desconhecido para quem nunca se descobriu cego.
Beleza esta que nasce das profundezas da cegueira de quem se sabe incapaz de criá-la, mas pressente sua presença nalgum lugar que não sou eu.
Uma ciência do mistério, que encanta todos que um dia escreveram sobre ela. Ridícula, como diria o profeta russo Dostoiévski em seu maravilhoso conto tardio, "Sonho de um homem ridículo", porque inacessível para quem nunca se viu disforme.
Se lembrarmos o que dizia outro grande artista, Nelson Rodrigues, que escrevia contos de amor e morte, assistiríamos à peça "Romeu e Julieta" de joelhos.
Logo o amor será objeto de algum psicofármaco. Trataremos Julieta com calmantes, como já tratamos Santo Agostinho. Eis o inferno para um romântico: a vida "bem" resolvida.

quinta-feira, 20 de novembro de 2014

A ratazana com PhD - Pondé


Imagine que você está numa reunião de colegiado de qualquer universidade brasileira. Desafio você a contar quantas vezes ouvirá a palavra "alunos" ao longo da reunião. Provavelmente, nenhuma ou quase nenhuma. Refiro-me aqui especificamente ao universo do mestrado e do doutorado.

Perguntará o leitor assustado: "Como assim? A universidade não foi feita para os alunos??!!". Responderá o professor: "Coitadinho dele, ingênuo. Não: a universidade existe para fazer relatórios burocráticos que supostamente medem a qualidade da pós-graduação. Servimos a burocracia da produtividade e só isso".

Se Kafka vivesse hoje, escreveria um conto no qual nós, acadêmicos, seríamos representados como ratos aterrorizados pela grande ratazana "empoderada" (essa palavra horrível que alguém inventou em alguma noite em que vomitava continuamente...), rainha de todos os burocratas, seres nascidos para tornar qualquer criatividade real inviável. A originalidade é perseguida a pauladas nos corredores das universidades.

O aluno é a variável menor porque ele não "conta" ponto nenhum para a Capes (Coordenação de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), apenas como médias quantitativas que medem a rapidez com a qual mestrados e doutorados são concluídos.

Se for uma universidade pública, então, em que o salário não depende do número de orientandos e de alunos em sua disciplina, o aluno é menos importante do que banheiros limpos. Se for numa privada, ele contará, é claro, nos contratos dos professores como números que garantem salários. E só.

E o aluno, como todo miserável numa cadeia alimentar em que é a parte mais fraca, sonha virar predador: submete-se ao matadouro porque quer passar em algum concurso. Mas, se quiser, trate de arranjar alguém que manipule uma banca a seu favor. Além, claro, de atender às exigências da ratazana rainha.

Todo professor sabe que deve correr atrás de pontuar nos relatórios porque, inclusive, se não o fizer, derruba a nota do seu departamento, e isso será punido das mais diversas formas. Você até pode dar uma aula medíocre, repetindo conteúdos ou fazendo o aluno dar seminários no seu lugar. Isso em nada impacta a "produtividade". A ratazana rainha só enxerga números.

Mas ainda é possível pensar a educação a sério. Livros como o da jornalista Amanda Ripley "As Crianças Mais Inteligentes do Mundo e como Elas Chegaram Lá", do selo editorial Três Estrelas, do Grupo Folha, mostra que, no ensino médio, nem sempre quantidades implicam qualidades (vale muito a pena ler esse livro se você está interessado em superar as bobagens de autoajuda e as tecnobobagens aplicadas à educação, na moda aqui no Brasil). Ainda que o livro se ocupe do ensino médio, ele pode servir de luz para o tema em geral.

Espero que um dia superemos esse paradigma vazio das "listas qualis" que, na realidade, aferem nada, em termos de conteúdo, do que significa a relação com a formação do aluno. Por quê? Simples: porque, mesmo que publiquemos muito segundo parâmetros qualis', a qualidade do ensino de pós-graduação no Brasil é cada vez mais burocrática.

O problema é que ficamos tão atolados com medo dos relatórios contínuos (todas as plataformas X, Y e Z) que pouco importa o desejo de conhecimento dos alunos. Sei: cometi um pecado romântico ao dizer isso. A produção na universidade é industrial do tipo salsichas. Puro capitalismo chinês. E capitalismo chinês é assim: TVs, carros baratos e gente estúpida, correndo da ratazana devoradora de almas.

P.S.: na semana passada, como disse, suspeitava de que o nome da entrevista de Freud sobre seu desinteresse acerca da vida após a morte não fosse "A Transitoriedade" –que é, na verdade, um texto dele mesmo sobre a impermanência das coisas (que era o tema mesmo de que tratava a coluna).

Uma amiga psicanalista me mandou a referência precisa: "O valor da vida. Uma entrevista rara de Freud". Nessa entrevista, dada em 1926 ao jornalista George Sylvester Viereck, ele diz precisamente o seguinte: "Estou muito mais interessado neste botão do que no que possa me acontecer depois que estiver morto". Amém, digo eu.

segunda-feira, 10 de novembro de 2014

Metafísica - Pondé

Imagine, caro leitor, se você pegasse uma nave espacial e viajasse pelo universo na certeza de que não existe qualquer outra vida inteligente nele?

Imagine que ninguém existisse no Universo que pudesse trocar uma única palavra com você? Agora pense, em seguida, que quando você morresse, só restaria pedra, areia e estrelas (feitas de pedra e areia), em todo o Universo, coberto pela mais fina indiferença e silêncio.

Agora pense que você representa aqui, neste pequeno experimento cósmico, a humanidade. Esta possibilidade causa em você angústia? Tristeza? Solidão? Vazio? Indiferença? Uma sensação de beleza?

Confesso que estou mais próximo da última hipótese acima: a ideia de que somos a única espécie inteligente no universo me causa uma estranha sensação de beleza. Pensar que em nenhum outro recanto do universo exista alguém semelhante a nós, inteligentes, indagadores e desgraçados, pode ser uma experiência muito arrasadora daquilo que Kant chamava de sublime. A mais vasta solidão consciente jamais imaginada. E o mais avassalador desespero por isso mesmo.

Mas, sei que, normalmente, buscamos outras inteligências no Universo. Preferivelmente, mais avançadas e capazes de dar respostas esclarecedoras para perguntas do tipo "por que estamos aqui?", "de onde viemos?", "para onde vamos?", "vale a pena fazer o bem?" (sei que o filósofo relativista perguntaria "o que é o bem?", mas hoje não vou responder essa pergunta para ele).

Muita gente espera que essa inteligência seja algo divina. Sei mesmo que alguns aceitam que esse divino pode ser um astronauta, seguindo os delírios do velho livro de Erich Von Däniken, dos anos 60, "Eram os Deuses Astronautas?".

Sei que muita gente crê mesmo que exista vida inteligente fora da Terra. Num universo deste tamanho, só haver vida na Terra, como dizia o cientista Carl Sagan (que não acreditava em nenhum relato de contato com vida extraterrestre), seria "um enorme desperdício de espaço".

Mas, ainda assim, após ler a obra de Carl Sagan, em especial, "O Mundo Assombrado pelos Demônios", tendo a crer que todos os relatos de contatos com vida extraterrestre são alguma forma de combate à solidão e à terrível insignificância que nos assola.

Da cama vazia, mergulhada na solidão de vidas fracassadas afetivamente, ao dia a dia mergulhado na banalidade da vida do dinheiro, tocando mesmo as raias do desespero por saber se existe ou não vida após a morte, suspeito que a crença em vida inteligente fora da Terra seja feita da mesma substância da crença religiosa: busca de algum significado para a banalidade de nossas vidas anônimas. Não é à toa que todo mundo que diz ter um contato deste tipo se sente um tanto profeta ou vidente.

A Nasa, recentemente, disse que deverá preparar cientistas para este tipo de contato. Eu, pessoalmente, suspeito que a Nasa esteja fazendo um reposicionamento da marca porque a agência espacial americana não dá uma dentro há muito tempo. Resolveu concorrer com a Disney. Pra minha geração, que considerava um astronauta um herói absoluto, a ideia de que a Nasa "passou a acreditar em ET", é o fim do mundo.
Entendo que grande parte da humanidade se angustie com a questão metafísica se existe vida após a morte. Eu, sobre este assunto, estou mais próximo do que Freud disse numa entrevista cujo título, se não me engano, é "A Transitoriedade". Perguntado se ele não se preocupava com o que aconteceria com ele depois da morte, ele teria respondido: "Estou tão preocupado com isso quanto com o destino do botão do meu casaco".

Sei que uma resposta dessa parece blasé diante da suposta importância da questão em jogo. Mas, para mim, é a mesma coisa. Não me importa o que vai acontecer comigo depois da morte. Acho mesmo que este tipo de angústia é algo que se tem ou não se tem. Nunca penso na morte. Não porque, como todo mundo, não tenha medo dela, mas sim porque acabo me ocupando com alguma outra coisa mais urgente.

Suspeito, enfim, como o sábio poeta português Fernando Pessoa, que a metafísica seja uma forma de indisposição.

segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Política, corrupção e pizza - Pondé

Dito de forma direta, o que quero dizer hoje é: ninguém está nem aí para corrupção em política. Nenhum estrato social. Nem rico, nem pobre, nem culto, nem artista, nem inteligentinho. Pega bem dizer que se está, mas é pura afetação de salão. Coisa de burguês. A prova é que com ou sem Petrobras, no final, será servida uma grande pizza.

Escândalos se acumulam (e não me refiro apenas aos bolivarianos atualmente no poder), mas ninguém está nem aí. Justificativas sustentam toda e qualquer defesa de políticos ou partidos corruptos ou suspeitos de corrupção. A democracia tem uma dimensão circense e as eleições são seu clímax.

Sim, são afirmações céticas. O senso comum pensa que ser cético é duvidar da existência de Deus. Isso é ceticismo de criança. Qualquer um duvida da existência de Deus. Quem se leva muito a sério por isso é que é meio bobo.

E a razão pra ninguém estar nem aí para corrupção é que nossa relação com a política não é racional, como dizem que é. Somos mais facilmente racionais quando compramos pão francês do que quando pensamos em política. "Consciência política" é tão fetiche quanto "carma".

Não existe essa tal de consciência política, mas sim simpatias, empatias, interesses, taras, fanatismo que travestimos de "consciência política".

A única racionalidade possível na política é a de Maquiavel, que continua sendo o filósofo da política mais sério até hoje: a razão da política é a conquista e manutenção do poder a qualquer custo.

Desde o século 18 e a falsa afirmação de que a política redimirá o mundo (pecado do suíço Rousseau), abriu-se um novo "mercado" das mentiras políticas: aquele que diz que a política pode ser "ética".
A democracia tem uma vocação para a retórica, já dizia Platão. Mas, reconheçamos, não há regime melhor. Nela, o circo das "escolhas éticas" se acumulam ao sabor do marketing e das justificativas do que preferimos.

Não votamos racionalmente. Votamos porque (na melhor das hipóteses) algum candidato ou partido concorda, mais ou menos, com a "pequena" teoria de mundo que temos.

Alguns de nós tem mais tempo e condição de trabalhar suas "pequenas" teorias. Outros vão a seco e votam em quem eles acham que vai aumentar o poder de compra deles (dane-se a corrupção) ou quem mais se encaixa na visão de "um mundo melhor" (maior fetiche da política dos últimos 250 anos) deles (dane-se a corrupção).


Se acreditamos que a economia seja uma ciência do comportamento humano que deve levar em conta coisas como "quem tem o que todo mundo quer ganha mais" tendemos a crer que devemos levar em conta as "leis de mercado". Quem crê que devemos "buscar formas mais humanas de produção e igualdade" não crê nas "leis de mercado", mas sim que elas foram inventadas pelos que gostam de explorar os mais fracos.

Mas, como a democracia é um regime baseado numa economia do ressentimento, quem crê em "leis de mercado" é malvado e quem afirma que elas podem ser negadas se quisermos fazer o mundo melhor é visto como gente legal.

Se acho um candidato "fodão", arrumo razões pra votar nele. Se acho que o Brasil precisa de um modo de vida "x", arrumo alguém que pareça concordar comigo. Se acho o candidato alguém comprometido com a "justiça social", ele pode até roubar. Se busco santos, direi: o Brasil precisa de um choque de sinceridade na política.

A crença de que exista racionalidade na política é tão necessária para a maioria das pessoas hoje quanto Deus é necessário para uma porrada de gente. Os não-religiosos creem que olham o mundo de modo mais racional porque não acreditam num ser invisível entre tantos outros. Mas, acreditar que exista uma coisa chamada "consciência política" é também um ato de fé.

Suecos votam para garantir seu tempo livre. Americanos para defender seu quintal. Argentinos por masoquismo. Franceses para garantir a aposentadoria. Ingleses já não sabem se são pós-cristãos ou neomuçulmanos.

E brasileiros votam porque querem mais Estado nas suas vidas. Mais Bolsa Família e mais bolsa empresário. Em mil anos rirão de nossa fé na democracia.'

quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Relógio do Rosário - Drummond

Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.

A arte da fuga - J. P. Coutinho


Quem leva a sério a opinião política dos artistas? Eu não. Deixei de o fazer com a ruína dos regimes totalitários.

Nas pinturas de Isaak Brodsky (sobre Lênin); nos filmes de Leni Riefenstahl (sobre Hitler); e nas telas de Alessandro Bruschetti (sobre Mussolini), a "arte política" deixou um testamento vergonhoso, que passou pela legitimação –melhor: pela exaltação das virtudes de psicopatas.

Exceções, sempre houve. Mas o casamento entre arte e política normalmente deu maus resultados. A "arte pela arte" não é apenas um bordão do século 19. É um conselho prudente para quem tem pretensões de se dedicar a ela.

Por isso ri alto com a carta aberta que 55 artistas enviaram à Fundação Bienal de São Paulo.

Ponto prévio: nenhuma pessoa adulta escreve cartas abertas em manada; quando falamos de artistas, ou pretensos artistas, a coisa ainda soa pior. Ou a arte vive da autonomia individual, ou não vive. Só covardes assinam em manada.

Mas os 55 revoltaram-se com o apoio financeiro que Israel concedeu à Bienal. Não querem dinheiro judeu porque acreditam que esse dinheiro, depois da guerra em Gaza, conspurca as suas integridades estéticas.

Se o dinheiro fosse da Autoridade Palestina, ou até do Hamas, talvez a conversa fosse outra. Não é. É de Israel.

Não vou regressar ao conflito entre Israel e o Hamas, que vive agora a sua trégua clássica antes do próximo confronto. Enquanto o mundo não entender direito a natureza islamita e jihadista do Hamas, não vale a pena gastar latim com o assunto.

Mas talvez não seja inútil fazer uma pergunta meramente teórica: de que vive a arte, afinal?
Arrisco uma resposta: a arte vive da liberdade. Um clichê sem grande importância?

Errado. Parafraseando Saul Bellow, eu gostaria de conhecer o Balzac dos zulus. Não conheço. Se Nova York, Londres ou Berlim são centros de excelência estética, isso deve-se à estabilidade política e à riqueza material de tais cidades.

E mesmo que a arte seja "engajada", o que já me parece uma corruptela da sua vocação, convém que o "engajamento" seja direcionado para os alvos certos.

Os 55 artistas da Bienal falham nos dois planos.

Começando pela liberdade, basta consultar os rankings da ONG Freedom House para 2014. Não vou cansar o leitor com números e mais números. Resumindo, digo apenas: Israel é o único país do Oriente Médio e do norte de África considerado "livre". O resto oscila entre "parcialmente livres" (Tunísia, Líbia, Kuait) e "não livres" (Iraque, Irã, Arábia Saudita).

E, para ficarmos na vizinhança de Israel, é a desgraça: Jordânia, Egito ou Síria continuam antros de repressão. Os 55 artistas, que deveriam defender a liberdade de expressão como quem defende o oxigênio, assinam uma carta contra o único país que respeita essa liberdade em todo o Oriente Médio.

E sobre os direitos humanos? Fato: Israel merece várias linhas de condenação nos relatórios anuais da Human Rights Watch, outra ONG independente. Mas nada que se compare ao comportamento dos mesmos países do Oriente Médio, para não falar da vizinhança em volta.

Um bom indicador do respeito pelos direitos humanos está no tema clássico da pena de morte. Israel aboliu-a para crimes civis. Do Egito à Jordânia, do Líbano à Autoridade Palestina, a execução judicial continua a verificar-se.

Digo "judicial" porque o Hamas, todos o sabemos, prefere fazer as coisas de forma "extrajudicial", fuzilando traidores no meio da rua.

De resto, será preciso dissertar sobre a diferença entre os "direitos" das mulheres ou dos homossexuais em Israel e nos países em volta? Será preciso recordar o histórico de amputações de membros e lapidações de adúlteras que existe por aquelas bandas?

E será preciso acrescentar alguma coisa à selvageria do Estado Islâmico do Iraque e do Levante, que pelo visto não incomoda os 55 artistas da Bienal de São Paulo?

Criticar Israel é legítimo. Nenhum governo está acima da crítica. Transformar Israel em pária internacional é uma forma de cegueira antissemita.

Eu só respeitarei a "coragem" dos 55 artistas no dia em que eles viajarem para Bagdá, Riad ou Gaza e escreverem uma carta contra os governos locais. Em defesa da liberdade e dos "direitos humanos".

Isso, claro, se ainda tiverem mãos para escrever.

O homem não tem salvação - Pondé


O homem não tem salvação. O que viria a ser essa "salvação"?

Para muitos, falar de "salvação" implicaria em supor alguma forma de "maldição".

Claro, no âmbito de muitas religiões, uma coisa implica na outra: pecado, desequilíbrio energético (isso eu não levo muito a sério, principalmente quando envolve posições de sofás na sala e de espelhos no hall de entrada), carma, destruição da mãe natureza, Gaia, enfim, qualquer narrativa que justifique a fria em que estamos.

Não creio em nenhuma dessas "maldições". Mas acho sim que buscamos salvação de alguma forma. Talvez, pelo fato de que engordamos quando comemos, que adoecemos, que trabalhamos demais (porque queremos sucesso) e viramos "coisa" por isso, ou de menos (porque não rola trabalho) e ficamos pobres, porque somos feios ou porque a busca da beleza nos escraviza achando que os belos são mais amados (o que pode ser uma ilusão levando-se em conta o número de inimigas que as mais bonitas e gostosas têm e o tédio que escorre dos seus rostos).

Enfim, porque não somos plenos em nada. Sei que alguns gostam de dizer que a "imperfeição é em si uma beleza", mas não cola. Não cola não porque eu não ache que se faz necessário combater de alguma forma a mania de perfeição (pelo contrário, acho que sim, devemos resistir à ditadura da perfeição na vida, típica desse mundo brega que é o mundo contemporâneo).

A reação à ditadura da perfeição não é um pseudoculto da imperfeição porque a imperfeição dói muito na realidade.

A imperfeição é falta de beleza, rugas, medo, morte, doença, pobreza, frustração, fraqueza, traição. É o simples fato de que conviver com alguém melhor do que você é sempre insuportável. Imagine se ela for mais inteligente, mais bonita, mais gostosa, mais rica, mais humilde, mais generosa! O rosto de Caim brotará em sua face.

Eu sei que está na moda dizer que todos somos iguais, mas isso é conversa para boi dormir, ou filosofia barata, ou marketing político "solidário". A tentativa de dizer que a imperfeição seja uma solução é coisa de medroso, ingênuo ou mentiroso.

Nos últimos 300 anos padecemos de outro tipo de culto salvacionista: a fé na política como redenção da vida e do mundo, graças a gente como Rousseau, Marx e Foucault.
Quando ouço a propaganda política (sempre sem querer, claro, porque a lei da propaganda política no Brasil é uma das maiores provas de "democracia autoritária" em que vivemos, esculhambando a grade da TV e do rádio ao bel prazer da "festa da democracia") e escuto alguém falar em "alternativa socialista" sinto algo como "alguém está falando em alternativa neandertal?"

Talvez seja justamente esta "falta ontológica" (falta ser em nós, somos mortais em todos os sentidos, como estava escrito no oráculo de Apolo), como dizia o historiador romeno de religiões Mircea Eliade (século 20). Esta falta gera contínua busca de soluções por parte dos humanos.

E as religiões são o melhor produto no mercado para isso. E depois da Revolução Francesa temos que aturar os tarados da "justiça social".

Sei que muitos pensam que, porque acreditam na ciência ou na política, o tema está resolvido, mas nunca está. A prova é a autoajuda corporativa e individual, a "fé na nutricionista", a crença no sexo como salvação (coisa de gente que faz pouco sexo).

Penso aqui no grande Freud e seu "Mal-Estar na Civilização" e no sofisticado sociólogo Norbert Elias e seu grandioso "Processo Civilizador".

Devido à balada brega em que o mundo virou, saiu de moda lembrar que para sair da pré-história tivemos que ficar neuróticos, obcecados pelo que pensam de nós, comendo com garfos por vergonha de sujar os dedinhos e de que achem que somos pobres e sem educação. Fazendo cursos de vinhos pra fingir que somos gente fina. O custo da repressão da pré-história em nós implicou um mal-estar contínuo e sem solução.

Gente "bem resolvida" gosta de fingir que não teme o mal-estar na civilização, vivem como se Freud não tivesse existido. Tudo se resolveria numa dieta com bike e numa espiritualidade que uiva pra lua

quarta-feira, 27 de agosto de 2014

Por que a religião não é a saída?


Por que a religião não é mais uma saída? Afirmei há algumas semanas nesta coluna ("O Impasse Conservador", de 11 de agosto) que a religião não era mais saída. Muitos leitores me perguntaram o que eu queria dizer com isso.

No contexto do pensamento conservador é muito comum associar tradições religiosas à defesa do hábito como instrumento contra os excessos do "racionalismo político" herdeiro da Revolução Francesa e sua "engenharia social".

Muitos conservadores (mas, evidentemente, não todos) são religiosos ou defendem uma adesão religiosa de alguma forma. Entendem que a vida pautada por alguma tradição religiosa responde a uma necessidade profunda do ser humano e que, portanto, o anticlericalismo iluminista francês atrapalha o homem quando o faz pensar que a religião seria atraso de vida ou coisa de gente estúpida ou ignorante.

Voltaire, por exemplo, típico iluminista do século 18 francês, via a religião como uma superstição das trevas. A crítica de Voltaire se aplicaria bem ao caso do Estado Islâmico no Iraque e seus horrores como cortar cabeças e clitóris.

Sei que muitas pessoas inteligentes são religiosas e que não se pode afirmar definitivamente nada sobre a existência de figuras como o Deus israelita, que o cristianismo abraçou na figura de Cristo. Vejo muitas das tradições religiosas do mundo como grandes exemplos de sabedoria. Nem tudo é o Estado Islâmico em religião.

Como dizia Chesterton, autor inglês do início do século 20, não há problema em deixar de acreditar em Deus; o problema é que normalmente passa-se a acreditar em qualquer bobagem como história, política, ciência, ou, pior, em si mesmo, como forma de salvação. Eu acho que não há salvação para o homem.

Existe também a literatura mística que descreve experiências diretas de Deus e que é marcada por grandes transformações na vida dessas pessoas, muitas vezes de modo enriquecedor. Sou um leitor apaixonado dessa tradição.

Mas, então, por que digo que a religião não é saída? Antes de tudo para mim, pessoalmente. Não nasci com o órgão da fé, como dizia o filósofo Cioran no século 20. Mas, de modo mais amplo, entendo que as religiões no mundo contemporâneo ou se acomodam aos ditames da sociedade de mercado e viram mais ou menos produtos dela (e acabam ficando meio inócuas), ou entram em choque com o mundo contemporâneo e caem na tentação fundamentalista.

Existem tipos de religião. Um deles é a "nova era", forma de espiritualidade ao portador, com alto poder de consumo e baixíssimo comprometimento, do tipo "budismo light". Vai bem com vinho branco no calor. Também há o tipo de religião nas redes sociais -vai bem com Coca Zero.

Outro é a adesão "dura", que muitos chamam de fundamentalismos. Podem ter viés político, como no Oriente Médio, ou os católicos comunistas da América Latina (que reclamam do capitalismo e viram MST), ou moral, como no caso dos evangélicos. Ou mesmo os católicos "praticantes".

Há também os sensíveis e cultos, que podem deixar qualquer ateu chocado com como são mais inteligentes do que os ateus militantes (um tipo basicamente chato).

Há também os que creem em "transes", do kardecismo doutrinário, meio sem graça, aos cultos afro-brasileiros, mais interessantes e "coloridos". Claro, há também os conversos às religiões orientais, que, na maioria das vezes, têm baixo comprometimento ou viram monges de adesão "dura".

Há também os que entendem que as religiões falam todas a mesma coisa: amor, generosidade, compreensão. A ideia é boa, mas não é verdade. Na prática, as religiões não falam a mesma coisa. Por exemplo, um judeu e um cristão podem concordar sobre como a guerra é ruim, mas é melhor que não discutam sobre se Jesus é ou não o messias.

No mundo contemporâneo, uma religião, para ser bem-comportada, tem que se submeter à lógica do Estado democrático laico, como diria John Stuart Mill no início do século 19. Por isso, deve "baixar a bola" e entrar na competição do "mercado de sentido da vida" e jamais questionar a sociedade laica. Se o fizer, cai na tentação fundamentalista. Um beco sem saída.

segunda-feira, 11 de agosto de 2014

O impasse conservador - Pondé


A pergunta que toda pessoa de sensibilidade conservadora se deve fazer hoje é: "conservar o quê?", uma vez que o mundo de Edmund Burke (século 18), pai do pensamento "liberal-conservative", não existe mais.

O americano Russel Kirk (século 20) se faz pergunta semelhante em sua obra. O mundo americano em que ele vivia, Mecosta, no estado de Michigan, sua pequena cidade, recolhida num paraíso longe da "rat race", também não existe mais. Ou, se existe, não suportaria o impacto de milhões de pessoas querendo viver assim. Ao final, uma vida "recolhida" como esta acaba por ser um artigo de luxo num mundo em que o comum é a "rat race". Tampouco a religião é solução.

Se acompanharmos Kirk, por exemplo, na sua defesa do "espírito conservador", veremos que ele entende o "contrato social" conservador como sendo o seguinte: "a sociedade é uma comunidade de almas que reúne os mortos, os vivos e os que ainda não nasceram", segundo Burke, claro.

Pessoalmente, não conheço forma mais poética de ver a vida social e histórica, e olha que já li, como diz um amigo meu jornalista, uns dois livros na minha vida.

Temo que esta linda imagem tenha perdido validade porque ela supõe outra ideia: a de que exista uma misteriosa sabedoria na heterogênea experiência humana (Kirk pensa assim), e que esta misteriosa sabedoria está "depositada" na continuidade quase inconsciente da vida. Será?

Temo que seja impossível qualquer "misteriosa heterogeneidade" num mundo como o nosso, afogado no corre-corre utilitarista e narcisista sempre igual. Não vejo retorno possível.

Além disso, o estrago causado pela vida moderna e sua tagarelice digital acaba por nos fazer questionar se há mesmo uma sabedoria na história ou no "povo".

Pelo contrário, e aqui sigo outro autor de sensibilidade conservadora, Nelson Rodrigues (século 20), o mundo moderno deu a vitória aos "idiotas". Acrescentaria, "tagarelas", fazendo uso de uma imagem de outro autor de sensibilidade conservadora, Alexis de Tocqueville (século 19).

Talvez o único argumento possível a favor ainda de alguma sabedoria fosse defender a ideia que a experiência pré-histórica (a violência que sempre retorna) em algum momento se imponha e nos cure dos delírios contemporâneos. Mas aí o remédio seria demasiado amargo, não sei se vale a pena.

Por outro lado, a ideia de "hábito", tão afeita a Michael Oakeshott (século 20), se perdeu, uma vez que os hábitos hoje são todos submetidos à lógica da desqualificação do passado. Mesmo a "espontaneidade" de Friedrich Hayek (século 20) não tem mais lugar num mundo que não crê mais na liberdade e autonomia, e prefere a mediocridade da igualdade imposta.

Isaiah Berlin (século 20), e sua defesa da "liberdade negativa" ("live and let live"), me parece também inviável no mundo em que vivemos, no qual, os mecanismos de controle da vida pelo Estado e pelo mercado assumem proporções antes impensáveis.

A ideia de que o Estado "nos deixe em paz" é inviável porque, associado ao mercado e seus mecanismos de produção de riqueza, sem os quais não sobrevivemos num mundo com bilhões de pessoas (muitas delas da tribo descrita pelo Nelson), não há saída a não ser racionalizando cada vez mais a vida cotidiana. Nós mesmos pedimos o controle para que a vida seja segura e "tiremos férias seguras".

O simples fato que optamos pela "felicidade" compreendida como otimização da vida (os utilitaristas como Jeremy Bentham e John Stuart Mill do século 19 venceram) implica um impasse: como resistir ao desejo por um "mundo melhor" pensado como uma sociedade "parque temático" de indivíduos que consomem matéria e espírito ao sabor da moda?

Todavia, não aceito as utopias da esquerda que continuam a prometer uma saída mentindo sobre o custo dela: o autoritarismo centralizado do Estado ou o populismo dos "idiotas" do Nelson mobilizados. Esconder-se na natureza tampouco é possível: todo lugar tem IPTU.

Resta-nos, talvez, a companhia de românticos como Friedrich Nietzsche (século 19) ou Albert Camus (século 20): diante do absurdo, mal-estar e revolta.

quarta-feira, 6 de agosto de 2014

Ela e a taça de vinho - Pondé


Ela parecia ansiosa em meio àquelas pessoas, mas era apenas desejo. Bebera muitas taças de vinho. Sabe-se, há milênios, que a virtude de uma mulher depende do número de taças de vinho que bebe.

Aliás, segundo relatos genealógicos, os antigos praticavam um ritual bastante comum e que, segundo alguns especialistas, ainda é praticado hoje em dia. O ritual, apesar de pouco sabermos de seus detalhes, implicava no uso da mulher como taça de vinho.

As mulheres quando tomam muitas taças de vinhos (não todas, como pessoa que sabe se comportar à mesa, sei que nem todas são iguais, algumas são diferentes) sonham em ser elas mesmas usadas como taça de vinho.

Alguns homens, pouco informados, se perguntam, afinal, como uma mulher poderia ser usada como uma taça de vinho. A dúvida, antes de tudo anatômica, revela uma profunda ignorância, antes de tudo, espiritual.
Perguntas assim são como aquelas que, normalmente, homens chatos fazem no final da noite, e que exigiriam respostas semelhantes a explicar a razão de Deus ter criado o universo, sendo Ele todo poderoso e vivendo Ele muito bem em Sua solidão perfeita.

Já elas, nascem sabendo. Mas, muitas vezes, esse "saber" (como dizem os afetados teóricos pós-modernos pra se referirem ao conhecimento) é mesmo da ordem inconsciente, não do inconsciente da mente, mas da pele. Esse "saber" é aquele que torna úmido o coração entre as pernas.

Outra forma de perceber esse desejo avassalador de ser usada como taça de vinho é pelo olfato. Ela, seguramente, em meio a todas as palavras ditas ao vento, como é comum em ambientes sociais cheios
de gente inteligente, exala o odor típico de quando se quer misturar pele, saliva e vinho.

Certa feita, quando eu disse que a virtude de uma mulher dependia do número de taças de vinho que ela bebia, um desses jovens trêmulos e muito magros, que gostam de pensar que superaram o machismo por alguma forma de desejo inofensivo (ela sempre sabe que todo desejo que importa é ofensivo de alguma forma), me acusou de ser niilista.

Por quê? Simples. Porque eu negava a existência da virtude "em si" já que eu a reduzia, segundo ele, ao efeito da presença ou ausência da quantidade de álcool no sangue.

Claro, poderia ter dito a ele que desde a filosofia grega cética, caras como Enesidemo (nascido em Creta no século 1º antes de Cristo) ou Sexto Empírico (médico e filósofo grego que viveu entre Atenas, Alexandria e Roma entre os séculos 2 e 3 depois de Cristo) afirmavam que o comportamento de alguém nunca pode ser tomado como "verdadeiro" porque se ele (ou ela) bebeu algo, o comportamento fica diferente.

terça-feira, 29 de julho de 2014

Carnes Vivas - Coutinho


Tive uma infância de príncipe. Passei longas horas na rua, sem supervisão parental, a fazer coisas que não lembram ao diabo. Isso na cidade.

No campo, o cardápio era melhor: torturava bichos, primos, vizinhos. Parti o braço (uma vez) e o pulso (idem). Tudo porque teimava em subir nas árvores, como um Tarzan de nove anos.

E, por falar em árvores, cheguei a construir uma casa rudimentar no cimo de uma oliveira -o supremo cliché, tirado de um romance de Mark Twain- que aguentou apenas duas horas. Findas as duas horas, já eu estava no chão, com os joelhos em carne viva.

Às vezes pergunto o que aconteceria aos meus pais se o pequeno selvagem que eu fui pudesse reaparecer agora, neste 2014, sem freio nem controle. Provavelmente, seria exibido em uma jaula, como um King Kong pré-púbere, só para horrorizar a burguesia.

"Minhas senhoras e meus senhores, vejam com os próprios olhos, uma criança que gosta de brincar!"

Imagino a plateia, horrorizada, tapando os olhos dos filhos -ou, melhor ainda, ligando os tablets e anestesiando-os com a dose apropriada de pixels.

E a minha mãe, a única sobrevivente da minha biografia juvenil, estaria obviamente presa. Exagero? Não creio. Conta a "Economist" dessa semana que Debra Harrell, da Carolina do Sul, foi detida por deixar a filha de nove anos brincar no parque sem vigilância apurada.

Engraçado. Na década de 1950, uma criança tinha cinco vezes mais possibilidades de morrer precocemente (por doença, acidente etc.) do que uma criança do século 21. Mas os pais da "baby-boom generation" deixavam as suas crianças à solta, talvez por entenderem que uma criança é uma criança. Esses pais não eram, como diz a revista, "pais-helicóptero".

Expressão feliz. Conheço vários: casais que devotam aos filhos a mesma atenção obsessiva que um pesquisador dedica aos seus ratinhos de laboratório. Gostam de saber onde estão os filhos. O que fazem. Em casa de quem. E com quem. Como os helicópteros, estão constantemente a planar sobre a existência dos petizes.

E quando finalmente descem à terra, é a desgraça: correm com eles para aulas de música, caratê, natação, matemática, talvez física quântica. No regresso à casa, é ver esses pequenos escravos arrumados a um canto, mortificados e exaustos, antes de se recolherem aos quartos e as luzes serem apagadas como nos presídios.

Não sei que tipo de crianças os "pais-helicóptero" estão a produzir. Deixo essas matérias para os especialistas. E, confesso, a minha selvageria juvenil não é exemplo para ninguém: também eu já estou corrompido pelos ares do tempo e um filho meu jamais subiria a uma árvore sem eu chamar de imediato a associação de bombeiros para o tirar de lá.

Digo apenas que a profusão de "pais-helicóptero" é uma brutal amputação da infância e da adolescência. Para além de corromper a relação entre pais e filhos.

Sobre a amputação, não sei que adulto eu seria se nesses primeiros anos não houvesse a sensação de liberdade, mas também de percepção do risco, que me acompanhava todos os dias. Apesar dos ossos que quebrei, dores foram compensadas pela confiança que ganhei e pela intuição de que o mundo não é uma ameaça constante, povoado por sequestradores, pedófilos ou extraterrestres.

Mas os "pais-helicóptero" corrompem a relação essencial entre eles e os filhos. Anos atrás, o filósofo Michael Sandel escreveu um magistral ensaio contra o uso da engenheria genética para produzir descendências perfeitas.

O ensaio intitula-se "The Case Against Perfection". Dizia Sandel que se os pais pudessem manipular os fetos para terem superfilhos, estaria quebrada a qualidade essencial da parentalidade: o fato de amarmos os filhos incondicionalmente. Sejam ou não perfeitos. Os filhos são "dádivas", escrevia Sandel; não são um produto que obedece aos nossos caprichos.

Igual raciocínio é aplicável aos "pais-helicóptero": é natural desejar o melhor para os filhos. E um professor particular de matemática nunca fez mal a ninguém.

Não é natural ter com os filhos a mesma relação que existe entre um treinador e o seu atleta, como se a vida -acadêmica, pessoal, emocional- fosse uma mini-Olimpíada permanente.

Na minha infância, as únicas medalhas que colecionei são as cicatrizes que trago no corpo. Não as troco por nada.

Frouxinhos contemporâneos - Pondé


O medo é uma emoção básica na vida. Pequenas e grandes frustrações nos assolam por todos os lados.

Mas, já disse isso antes, acho que nunca houve uma época tão medrosa como a nossa, com um dom tão grande para negar esse medo e negar a complexidade e frustração a que estamos todos submetidos. Associada a essa tendência, produzimos uma gama de "direitos" que mais parecem uma metafísica podre dos costumes para retardados.

Para cada frustração, alguém inventará uma derivação duvidosa da declaração dos direitos do homem. Aliás, vale lembrar que a famosa declaração dos direitos do homem foi cozida em muito sangue que correu pelas mãos dos jacobinos na Revolução Francesa. Imagino que se a revolução francesa fosse hoje, fotos nas redes sociais pedindo paz nas ruas de Paris encheriam os iPhones dos bonzinhos.

Outro dia, conversava eu com um amigo esquisito, historiador, portanto, esse tipo de pessoa que pensa "a longo prazo". Ele descreveu o que eu consideraria uma imagem de pura escatologia apocalíptica: um dia alguém vai declarar que ir ao banheiro é uma forma de repressão, e, portanto, vão inventar um movimento contra a opressão de ter que usar banheiros. "Que a rua seja o meu banheiro!"

A tipologia contemporânea de comportamentos tem crescido assustadoramente. O inteligentinho todo mundo conhece: é o tipo de pessoa que acha que problemas como o do Oriente Médio se resolveriam com um ciclo de cinema e debate sobre filmes que narram a vida de mulheres fazendo bolos ou crianças jogando futebol.

Na verdade, como sempre, a intenção "escondida" é projetar os bons sentimentos do inteligentinho para com o mundo e dizer que ele tem soluções criativas para uma humanidade que nunca foi tão inteligente como ele.

Outro tipo contemporâneo é o bonzinho. Este, com o coração ainda mais cheio de amor, costuma postar fotos dizendo "não" às guerras, de seu iPhone ou de seu MacBook Pro. Mas mais típico ainda é postar fotos de Aspen com camisetas do Che. Este tipo é normalmente teen, mesmo que já tenha passado dos quarenta. Seus pais dizem coisas como "comam menos carne vermelha para ficar menos agressivos".

Mas um novo tipo que logo estará presente nas colunas sociais em eventos culturais são os frouxinhos. Estes homens (gênero, não espécie) descobriram que é difícil ser homem, ainda mais numa época em que está na moda confessar traumas o tempo todo para garantir (supostamente) a simpatia de todos.

E, pior: vivemos numa época de mulheres que crescem profissionalmente, amadurecem publicamente e financeiramente e que, portanto, ainda metem mais medo do que sempre meteram nos homens.

Os homens não confessam, mas morrem de medo das mulheres, principalmente quando as desejam.

Façamos um breve exercício de antropologia contemporânea urbana para ver se conseguimos captar os próximos atos deste novo tipo.

Antes de tudo, um reparo técnico. Vale salientar que a descrição antropológica em questão não é financiada pelo Tea Party (como costumam dizer os bobos das redes sociais quando querem tirar o crédito de alguém que os considera ridículos), tampouco vem sustentada por uma metafísica machista fanática do tipo "homem não chora", ou "lugar de mulher é na cozinha". Risadas?

Vejo-os em passeatas, chorando, com cartazes escritos assim: "Pelo direito de brochar", "pelo direito de arrumar uma mulher que me sustente", "pelo direito de gritar quando aparecer uma barata na sala", "pelo direito de se negar a trocar o pneu", "pelo direito de ter tempo igual ao da mulher na frente do espelho", "pelo direito de ter TPM" (claro, a medicina é machista por isso nunca descreveu a TPM masculina), "pelo direito de colocar a mulher na frente do ladrão", "pelo direito de sair antes da mulher e das crianças numa situação de risco".

Meu Deus, coitadas das meninas, condenadas a ficar se virando em camas vazias com homens que não seguram o tranco da insustentável condição de insegurança, incerteza, contingência, dureza, mentira, frustração, e, finalmente, derrota, que nos assola todos a vida inteira.

terça-feira, 22 de julho de 2014

David e Golias - J.P. Coutinho


Sempre que escrevo sobre Israel, há um leitor que pergunta: você é judeu? A pergunta é reveladora. Significa que só um judeu pode ser suficientemente louco (ou sanguinário) para considerar que no conflito israelense-palestino é Israel quem tem razão.

Isso reflete o ar do tempo, devidamente criado pela mídia. É lógico que Israel não tem razão, dizem. É lógico que Israel sempre quis expulsar os palestinos do seu território. É lógico que Israel não quer a paz.

Infelizmente, nada disso é lógico e, pior ainda, nada disso sobrevive à história. Sim, a construção de assentamentos na Cisjordânia, pior que um crime, é um erro (obrigado, Talleyrand). Sim, Netanyahu é quase uma "pomba" no seu governo cada vez mais radicalizado.

E, sim, a direita israelense já não acredita na existência de dois Estados depois da retirada de Gaza (e dos foguetes que o Hamas passou a lançar contra Israel).

Mas antes de chegarmos a essas tristes conclusões, é preciso dizer três coisas que qualquer pessoa alfabetizada consegue entender.

Primeiro: o Hamas, que é tratado pelo jornalismo como uma mera "facção" (ou até como um interlocutor válido para a paz), é uma organização terrorista e islamita que nem sequer reconhece o direito à existência de Israel. Um pormenor?

Não. O essencial. O conflito de Israel com a Autoridade Palestina é um conflito territorial. É uma discussão sobre fronteiras; sobre a soberania de Jerusalém; sobre o destino dos refugiados palestinos; sobre o acesso à água -enfim, uma discussão racional.

O conflito com o Hamas é um problema ideológico. Basta ler a carta fundamental do grupo. Depois de prestar vassalagem à Irmandade Muçulmana (artigo 2) e de invocar os "Protocolos dos Sábios do Sião" (artigo 32) como argumento de autoridade (um documento forjado pela polícia czarista no século 19 para "provar" o conluio judaico para dominar o mundo), o Hamas não quer um Estado palestino junto a um Estado judaico.

Quer, sem compromissos de qualquer espécie, a destruição da "invasão sionista" (artigo 28) -do mar Mediterrâneo até o rio Jordão. Os foguetes que o Hamas lança não são formas de reivindicar nada: são a expressão da incapacidade de aceitar que judeus vivam no "waqf" (terra inalienável dos muçulmanos -artigo 11).

Acreditar no Hamas como "parceiro" para qualquer "processo de paz" é não entender a natureza jihadista do grupo. O Hamas não luta em nome da Palestina. Luta em nome de Alá.

Segundo: quando se fala nos "territórios ocupados", Gaza já não está no pacote. Israel se retirou de Gaza em 2005. O território -um antro de pobreza e corrupção- é governado pelo Hamas desde a vitória nas eleições parlamentares de 2006. A partir desse ano, o Hamas entendeu a retirada israelense como uma vitória do terrorismo -e não como o primeiro passo para criar as bases de um futuro Estado palestino.

Depois de Gaza, viria a Cisjordânia e finalmente a totalidade de Israel. Uma pretensão lunática que, sem surpresas, começou por embater frontalmente com a posição mais moderada da Autoridade Palestina. Resultado?

Em 2007, o Hamas e a Fatah (uma facção da OLP) viveram uma guerra civil "de fato" que teve de ser freada por Israel.

Por último, toda a gente sabe que a solução mais realista para o conflito passa pela existência de dois Estados com fronteiras seguras e reconhecidas.

Assim foi antes da partição da Palestina pela ONU (relembro a Comissão Peel de 1937). Assim foi com a Partição propriamente dita em 1947. E, para ficarmos nos últimos anos, assim foi em Camp David (2000). Foi o lado palestino que recusou essa divisão -o maior crime cometido por Yasser Arafat contra o seu próprio povo.

De tal forma que, hoje, já poucos acreditam em divisões. Os líricos falam de um Estado binacional para judeus e árabes (um delírio que ignora, por exemplo, o que se passou na antiga Iugoslávia). Os resignados falam de três Estados: o de Israel, o da Cisjordânia (talvez com ligação à Jordânia) e Gaza (o antro do Hamas).

Simples meditações de um judeu?

Não. Para começar, não sou judeu. E, para acabar, não é preciso ser judeu para compreender que, às vezes, e contra as nossas cegas emoções, Golias tem mais razão que David.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Não sou responsável por aquilo que cativo

Não, eu não sou eternamente responsável por aquilo que cativo.
Saint-Exupéry estava errado. 
Não é a toa que é a raposa quem fala. Animal astuto, sabe cortejar suas vítimas. Coitado do pequeno príncipe, ainda tão imaturo, não sabia que poderia contestá-la. 
Afirmar que se é responsável eternamente por aqueles que te amam é tragédia declarada. Não sou, não posso ser responsável por aqueles que cativei, afinal, para o ato de cativar são necessários dois seres, dois sentimentos recíprocos, duas almas desejantes de amor e carinho. 
Pequeno príncipe habitou toda minha infância e adolescência. Lia e relia o livro já todo desenhado e rasgado, mostras do tempo que me acompanhou. Eram tão lindos os diálogos. Melancolia sem fim. Imaginava passar os dedos pelos caracóis dourados dos cabelos do príncipe. Imaginava o deserto. Uma flor solitária. Um universo bastante pesado para o cotidiano de uma criança. E logo tomei por frase de cabeceira essa que hoje renego: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Virou marcador de livro. Escrito à mão, doei de presente à um amor pueril. Hoje nem sequer penso mais nesse amor. Desobedeci a raposa e fui irresponsável com meu cativo.
Hoje reafirmo: liberto todos meus cativos! Não quero mais responsabilidades dessa estatura. 
Estou, por fim, livre da sentença da raposa. 


Marketing geopolítico - Pondé


Uma das últimas modas da mídia foi a Primavera Árabe. Neste caso, quase um caso de estelionato geopolítico. O Egito voltou a ser o que era. A Líbia, terra de tribos, caiu no caos. A Síria estava melhor com o Assad mandando. As mentiras do Bush sobre "smoking guns" no Iraque foram também um estelionato geopolítico. Mas, este, todo mundo reconhece. Já a "primavera árabe", custa a ser vista como é: uma invenção do marketing geopolítico da esquerda de butique.

E este marketing serve para grupos como o Hamas fingirem que querem a paz, quando, na realidade, querem matar os israelenses. Não por acaso, o Hamas louvou o assassinato dos três adolescentes israelenses.

Não quero dizer que não exista uma dinâmica política e social no Oriente Médio, quero dizer que esta dinâmica (caótica, violenta, atávica, tribal, religiosa, racial, comercial) nada tem a ver com o que "filósofos queijos e vinhos" pensam que seja.

Vejamos o caso do Estado de Israel. Aliás, talvez este seja um dos assuntos onde o marketing geopolítico mais faz estrago à reflexão.

Israel é um "anacronismo" contemporâneo. Primeiro porque não faz marketing geopolítico e isso, aliado ao velho antissemitismo hoje travestido de crítica a Israel, cria o caldo no qual grande parte da mídia discute o conflito entre judeus e árabes no Oriente Médio. Os árabes investem pesado em marketing geopolítico. Israel, não.

Importante lembrar que os palestinos são uma cabeça de ponte dos países árabes e do Irã que continuam buscando a eliminação de Israel do mapa da região. O marketing geopolítico árabe oculta este fato. O Hamas não lança foguetes pela criação do Estado Palestino, lança pela destruição do Estado de Israel. Sabia disso?

Desde 1948 alguns países árabes tem uma política chamada "judeus ao mar", apesar de não se falar dela hoje porque pega mal para o marketing geopolítico dos árabes e do Irã. O mesmo marketing que alimenta ideias falsas como "primavera árabe". Muitas vezes temos a impressão de que este fator ("judeus ao mar" como política do Hamas inclusive) não existe.




O filósofo britânico, nascido em Riga, Isaiah Berlin (1909-1997), descreve Israel no artigo "The Origins of Israel" de 1953 (republicado no volume "The Power of Ideas", Princeton University Press, 2000) como um anacronismo porque fundado nos mais puros ideais da "intelligentsia" liberal russa do século 19: liberdade, igualdade, justiça, ciência, democracia, ou seja, a busca de assimilação dos judeus aos modos da vida moderna da Europa ocidental.




Para Berlin, se quisermos entender Israel devemos olhar pro século 19. Entretanto, há um outro componente neste processo: a influência das comunidades religiosas judaicas do Leste Europeu. Esta mistura cria um conflito interno no Estado judeu (identificado hoje no conflito seculares x ortodoxos), ainda que, na sua origem, o ideal era que os judeus das comunidades fechadas do Leste Europeu, em algum momento, seriam assimilados ao modo de vida secular. Isso não aconteceu. Ao contrário, as mulheres ortodoxas são três vezes mais férteis do que as seculares.




Como dizia antes, Israel não trabalha no plano da propaganda geopolítica como o Hamas. O Hamas se esconde atrás da população civil porque sabe que quando Israel é obrigado a revidar, muita gente morre e a mídia internacional embarca de novo no estelionato geopolítico.




Quer exemplos? 1. No dia 15 de julho, um hospital em Gaza foi danificado por mísseis. Por quê? Porque o Hamas colocou uma base de lançamento de foguetes contra Israel ao lado do hospital. 2. Você já se perguntou por que só aparece foto de criança chorando em Gaza? 3. Quando Israel lança panfletos dizendo para as famílias saírem de casa por conta de ataques na região, se você sair, o Hamas considerará você colaborador do sionismo.




Os defensores da política de "judeus ao mar" sabem que militarmente perderam todas as guerras, do contrário Israel não existiria mais. Por isso, investiram na mídia: esperam que muitos palestinos morram para dizer que Israel é mau e eles uns "docinhos de coco"

segunda-feira, 14 de julho de 2014

Amarelou - Pondé


Acho excessiva a ideia de que a derrota (merecida) do Brasil para a Alemanha demande cuidados especiais para com as crianças ou os adultos. Afinal, "é só futebol". Parece-me um tanto ridícula toda essa frescura com o "Mineiraço". Mas vivemos mesmo num mundo meio ridículo em que todo mundo precisa de "cuidados".

A inflação do afeto tornou-se valor. Esses exageros têm um valor evidente: escondem, como todo mundo sabe, o medo. Isso nunca dá certo na vida real. E a seleção amarelou mesmo. Não aguentou a pressão. E o povo esperava apenas uma coisa: sucesso. Não se perdoa o fracasso, ainda que um monte de gente diga o contrário, e diga isso por mau-caratismo ou porque quer vender autoestima.
Por outro lado, sim, precisamos de cuidados psicológicos para viver. A vida moderna nos brinda com incertezas, ambivalências, dúvidas quanto aos afetos, aos valores, aos horizontes, aos comportamentos. Os modos antigos de vida não servem mais porque (supostamente) não dão conta da complexidade da vida. Já disse nesta coluna algumas vezes que duvido dessa história de que o mundo mudou muito. Acho que tem muito papo furado nessa história de "as novas gerações têm uma outra cabeça" (a frase é ridícula por si só). Mudou o cenário, o enredo continua sendo escrito pelo bobo de "Macbeth".

Mas, sem dúvida, "futebol é mais do que apenas futebol". Não, não estou me contradizendo. O esporte é parte da cultura e, portanto, futebol é, num certo sentido, mais do que futebol. Mesmo que não tenha uma relação direta com o resultado das urnas ou com as decisões de consumo, a seleção é parte do universo de representações culturais que os brasileiros têm de si mesmos. E esse 7 X 1 é mais uma crise de representação num mar de crises de representações no Brasil desde o ano passado.

E nesse sentido, o futebol, como o grande Nelson Rodrigues dizia, é uma tragédia grega. Cai bem chamar os estádios de arenas, já que os jogares são um pouco como gladiadores. E o comportamento da torcida é um pouco como o da torcida que assistia aos gladiadores na antiga Roma: o povo podia passar do desprezo à misericórdia, ou o inverso, em segundos, caso julgasse que um gladiador ou outro merecia uma das duas atitudes. Um dia a seleção brasileira é inspiração para os jovens, outro dia é alvo de laranja podre. O fã é um infiel por excelência.

O povo, ao contrário do que a esquerda mentirosa e os marqueteiros dizem (ambos dizem isso por interesses comerciais, só que os marqueteiros são honestos e confessam), nunca foi de confiança.
Quer um exemplo de que, apesar de todo o blablabá emocional e "psi" ao redor do fracasso da seleção, o mundo não mudou? Vejamos:

Nas antigas arenas romanas, o povo podia ser misericordioso ou cruel segundo alguns critérios, um deles se o gladiador resistia ou não à pressão da luta. Uma velha virtude em jogo: a coragem.

Infelizmente, a seleção brasileira não resistiu à pressão. Amarelou. Claro, não jogava bem, bons jogares sem conjunto e tudo aquilo que os especialistas já falaram. Mas, além disso, ficou clara a dificuldade de suportar a enorme pressão de um povo com uma expectativa excessiva em relação à Copa em casa.

Podemos apontar a diferença entre, por exemplo, holandeses e alemães e seu futebol "científico", por oposição ao nosso latino-americano, o futebol-arte. Mas tudo isso é passado. Não existe futebol-arte, assim como não existem mais vovôs e vovós (estão todos na academia querendo se parecer com os netos). Mas temo que o problema foi além disso.

A seleção foi bem representativa da cultura brasileira dos últimos tempos. Chorona, ressentida, delirante, sem resultados.

Com a era Lula, muitos acreditaram mesmo que sairíamos do buraco com a "bolsa-voto", casas de graça, carros sem impostos e outras invenções baratas.

A palavra "autoestima" foi muito ouvida nos últimos tempos, principalmente na Copa. É comum hoje as pessoas acharem que todo mundo (e a mídia também) deve se preocupar antes de tudo com a autoestima das pessoas. Discordo. É este mundo da autoestima que forma os amarelões.

domingo, 13 de julho de 2014

Marcas

The Broken Circle Breakdown
2012
Felix van Groeningen
Bélgica

Inclassificável. Dolorido. Triste. Sim, acho que é essa a melhor definição de Alabama Monroe (The broken circle breakdown). 
Este é um daqueles filmes que me fez chorar, muito, copiosamente, compulsivamente, e que deixa meus olhos rasos d´água apenas ao lembrar.
Não consigo digerir filmes assim com facilidade. Na verdade tenho uma peculiaridade bastante incômoda para a convivência em grupo: não consigo conversar ou comentar qualquer coisa após assistir filmes que me tocam dessa forma. Todas as palavras me fogem ou soam ridículas. Perco a paciência ao me perguntarem "o que achei do filme". Sobre cinema pouco se "acha", muito se sente. É coisa de pathos, feeling, do mundo inatingível. Assim me senti após Alabama Monroe. Extasiada e triste ao mesmo tempo. Como é possível fazer um filme musical, dramático e crítico ao mesmo tempo? Temáticas opostas no mundo cinematográfico, mas não na vida. Talvez resida aí a beleza do filme. 
Num ritmo assimétrico, a história do casal formado por uma tatuadora e um músico de bluegrass na Bélgica (sim, há bluegrass fora do EUA!) se desenrola da paixão inicial ao desfecho trágico. A filha do casal, com apenas 6 anos, enfrenta o cancêr. A morte inevitável chega (lembrando se tratar do cinema belga e não americano, em outras palavras, não espere por piedade. Isso é cinema para gente grande.) e com ela a sombra do fim do casamento. O enredo aparenta ser dramalhão mexicano, mas se sustenta maravilhosamente entre cenas musicais deliciosas. Sim, é possível e apenas compreensível quando vivenciado. 
Didier conhece Elise ao admirá-la através da vitrine do ateliê de tatuagem "Nunca vi tatuagens tão belas". É para o corpo de Elise que ele olha. Ele diz não saber nada tão importante que merecesse ficar marcado no corpo para sempre. Elise então - em uma das cenas mais belas do filme - afirma que coisas que deixaram de ter importância foram recobertas por outras, mais belas. Diz isso apontando para suas próprias tatuagens, nomes de antigos amores, agora invisíveis sob as tintas coloridas de belos desenhos. 
E o círculo do título original, então quebrado com a morte precoce da filha do casal, se fecha perfeitamente ao final, na derradeira tatuagem escrita na virilha de Elise: Alabama Monroe. 
A discussão religiosa também está lá. A relação ética e moral da Bélgica e EUA também grita pela boca de Didier: células-tronco, eutanásia. Mas aqui nada disso me interessa. Ficarei apenas com as marcas do corpo, que inevitavelmente marcaram a alma, mas acima de tudo estão alí, expostas a olhos nú, recobertas por novos amores e novas dores. 




segunda-feira, 23 de junho de 2014

Afetações de um vira-lata - Pondé


A afetação com vinhos é um sintoma clássico. Chegamos ao ponto de ser melhor não falar sobre vinhos em jantares inteligentes para que não pensem que somos gente que faz curso de enologia. Na verdade, quem entende mesmo de vinhos deve ficar calado quando os outros começam a expor seus cursos feitos por aí. Nunca se deve usar expressões como "amadeirado".

Sim, falo das afetações típicas de brasileiros e paulistanos, mais especificamente. A burguesia sempre sofreu de um complexo de vira-lata em relação à aristocracia medieval, porque esta era o que era, enquanto a burguesia é o que tem, e nada mais.

Quando atravessamos o Atlântico e chegamos ao Brasil, a agonia da burguesia com sua condição vira-lata piora. Desesperados buscam passaportes italianos para poderem, num momento de glória, pegar a fila dos passaportes europeus ao entrar na Europa. O desespero fica maior se não tiver ninguém pra ver os 15 minutos de fama na fila dos passaportes europeus. Quem viaja sozinho busca com o coração na boca algum brasileiro coitado com passaporte brasileiro para que ele veja a glória do pseudo-italiano.

Outro sintoma da mesma patologia é a tentativa de encontrar nobreza na ancestralidade. Hipótese pouco provável porque normalmente quem está bem nunca imigra para lugar nenhum. Todo imigrante é um coitado, por definição.

Mas, talvez uma das afetações mais terríveis, e muito comum nesta época de Copa do Mundo, é ficar falando mal do Brasil. Claro, o Brasil é mesmo um problema. A Copa do Mundo trouxe à tona de forma evidente, sob os holofotes do mundo, nossa incompetência em infraestrutura. E, de fato, o Brasil é levado pouco a sério por aí. O jornalismo internacional está muito mais atento à África e à Ásia do que à América Latina. Somos um continente esquecido, para o bem e para o mal. Mas, a afetação vira-lata vai muito além da consciência de nossas mazelas.

Vejamos. Ela se manifesta na mania de usar expressões (hoje um pouco fora de moda) como "coisa de primeiro mundo". A tentação de comparar o Brasil com a Europa é a mais "chique", porque inclusive mostra que o fulano é "viajado" -expressão triste por definição. Os mais ingênuos comparam o Brasil com os EUA, os mais afetados comparam com a Europa ocidental porque os EUA "eram" capitalistas selvagens. Digo "eram" porque os EUA paulatinamente se transformam em um dos países de maior invasão da vida privada pelo governo federal.

Quer um exemplo banal? A vida real é mesmo banal, quem não sabe disso e imagina que existe uma "vida chique e especial" por aí é gente que sofre de bovarismo cultural. Sofrer de bovarismo cultural é achar que existe uma vida maravilhosa do outro lado do Atlântico que só gente inteligente conhece.

Mas, voltemos ao exemplo banal. Dizer que no Brasil não se respeita fila e que na Europa se respeita é coisa de quem nunca viajou muito mesmo. Muitos europeus furam a fila na maior cara de pau, dando as mais variadas razões. Às vezes, tenho a impressão que os brasileiros respeitam fila com muito mais frequência.

Outra afetação é querer ir a restaurantes "melhores do mundo". A fila de espera pode durar meses. Restaurantes assim são aquele tipo de lugar que você vai mais pra ser visto lá do que pela comida mesmo, que às vezes é tão chique que o gosto se perde na sofisticação fake.

Claro, bons restaurantes existem, mas nada tem a ver com excessos de propaganda.

No final das contas, como sempre, toda elegância é discreta, assim como toda virtude é silenciosa. Esta é, talvez, uma das maiores contradições do mundo contemporâneo pautado pelo ridículo das redes sociais: todo mundo tem que aparecer para existir. Esta contradição aparece, por exemplo, quando reclamamos de que as pessoas invadem nossa privacidade quando a maioria de nós "posta tudo" pra ser visto.

A propósito, a entrevista de Zygmunt Bauman, "Vigilância Líquida", recém-publicada no Brasil, é uma boa reflexão sobre este desejo infantil de ser visto, desejo este que faz de todos nós reféns das informações que nós mesmos "postamos".

quinta-feira, 19 de junho de 2014

Não é mais um filme gay.

"Eu, Mamãe e os meninos".

Assim define a sinopse do Festival de Cinema Varilux:

"A primeira lembrança que tenho da minha mãe foi quando tinha 4 ou 5 anos. Ela nos chamava, meus dois irmãos e eu, para o jantar dizendo : "Meninos e Guillaume, está na mesa !" e da última vez que falei com ela pelo telefone, ela desligou me dizendo: "Um beijo, minha querida"; pois é, digamos que entre essas duas frases, há alguns mal-entendidos".
Guillaume cresceu como menina: imitava a mãe - seu ídolo - e todas as mulheres à volta. O pai não aceita as frescuras de um filho que não serve par ao esporte. O envia para um reformatório católico. E para as férias merecidas na Espanha - no pior vilarejo do país - onde aprende a dançar a como uma espanhola. E por fim para um internato inglês, onde se apaixona por Jeremy. E então lhe chamaram de gay pela primeira vez. Guillaume contesta. Eis que seu mundo desmorona.
A vida de Guillaume se desenrola num palco de teatro, interpretadas por ele mesmo. Mesclam-se as cenas relatadas às cenas do monólogo de Guillaume. O menino se enxerga como um espelho da mãe - ambos interpretados pelo mesmo ator - Guillaume Gallienne, também diretor e roteirista. Isso mesmo: essa é uma história autobiográfica. Um acerto de contas com um passado mal resolvido e um bela descoberta.
Esqueça tudo que sabe sobre a "concepção de gênero" (ai, que horror!).
Esse não é mais um filme gay. Veja até o final - surpreendente, hilário, sensível e arrasador.

Les garçons et Guillaume, à table!
Gullaume Gallienne
2013



A segunda vez é sempre melhor

Fui rever "A Grande Beleza", dessa vez no cinema. 
Bauru não traz em sua disponibilidade cultural o gosto pelo cinema europeu. Como quase todo interior, aqui reinam os blockbusters e Hollywood shits. Mas às vezes escapam algumas pérolas, as quais recolho com carinho. 
Eis que o filme de Paolo Sorrentino caiu por aqui de paraquedas e, claro, durou menos que 15 dias. Fui com um amigo rever esse filme que julguei uma das poucas e boas homenagens ao cinema italiano - quase um plágio felliniano, e que fique claro, um excelente plágio. 
Péssima escolha do dia, fomos ao sábado a noite. Pensei comigo, "não terá público, ainda que sábado a noite, então estaremos livres da mastigação de pipocas e comentários imbecis". Logo me arrependi. A sala foi aos poucos se completando. Nem metade, mas além do esperado para um filme europeu. A cada casal que entrava, olhava para meu amigo e apontava, (com uma leve dose de veneno escorrendo da boca): "Aqueles alí não aguentarão nem metade do filme". Dos quatro casais apontados, nostradamicamente acertei três. Um casal miraculosamente resistiu. Para meu desespero, estavam eles numa diagonal perfeita entre a minha cabeça e o pé do macho alfa. 
E lá se foram 142 minutos de puras pérolas aos porcos - ou melhor dizendo, ao porco. O cidadão despejou um sem número de palavrões durante todo o filme. Não contente ao somente dizê-los à namorada, tinha o prazer em fazer com que todos da sala ouvissem. A cada comentário esdrúxulo dele, uma bufada minha. 
Quem me conhece sabe que fujo dos horários de pico do cinema exatamente para não viver esse tipo de experiência. Antes só do que mal acompanhada, como diria o sábio dito popular. 
O parvo falou durante as quase três horas de filme, incessantemente. Resistiu bravamente até o último minuto, quando bradou a última pérola: "que bosta foi essa?"
E lá se foi meu momento privilegiado de curtir o cinema europeu em minha cidade natal.  
Enfim, ainda com toda essa distração, minha primeira impressão se reafirmou: filme, lindo, sensível e genial. Apenas por ele (e não por Fellini!!!) tive vontade de visitar Roma pela primeira vez. 
Entrou para a lista de sets a serem visitados. 

quarta-feira, 18 de junho de 2014

Uma doença sem cura - J.P. Coutinho


Números aterradores no "The Wall Street Journal": nos primeiros três meses de 2014, o governo francês registrou 170 atos de violência antissemita no país. É muito?

Digamos apenas isso: com 650 mil judeus na França, os crimes racistas contra judeus constituem 50% de todos os ataques racistas. Repito: 50%. Como explicar essa cifra?

Sim, o ódio e a destruição de grupos islamitas que operam na Europa não favorecem o ecumenismo. Recentemente, na Bélgica, um jiadista matou quatro judeus no Museu Judaico de Bruxelas.

E, claro, a emergência da Frente Nacional, com a sua vetusta tradição de antissemitismo patriótico, não permite imaginar um futuro risonho para os judeus gauleses.

Mas a minha pergunta vai mais longe: como explicar a sobrevivência do antissemitismo na Europa quando todos sabemos que a Europa ofereceu ao mundo o capítulo antissemita mais grotesco de toda a história da humanidade?

Os débeis dirão que a culpa é de Israel. Se, por hipótese, Israel não existisse, não existiria antissemitismo. No limite, o antissemitismo seria uma curiosidade histórica, própria de Hitlers, Stálins ou de outras personagens sinistras.

Não pretendo perder muito tempo com os débeis. Até porque eles desconhecem a própria história do antissemitismo -que é anterior a Israel; anterior a Hitler; anterior à União Soviética; anterior às perseguições czaristas do século 19; anterior às perseguições na Península Ibérica nos séculos 15 e 16. A história do antissemitismo é, no essencial, a história da nossa civilização.

Foi Paul Johnson, curiosamente um historiador cristão, quem explicou esse fato com um simplicidade glacial.

Em ensaio antigo para a revista "Commentary" ("The Anti-Semitic Disease", 6/1/2005), Johnson definiu o antissemitismo exatamente como ele merece ser apresentado: como uma doença da mente, altamente infecciosa e destrutiva, que pode atacar indivíduos ou sociedades aparentemente "saudáveis".

E essa doença está documentada ao longo dos tempos e sempre com os mesmos sintomas paranoicos (e paradoxais).

Como escreve Paul Johnson, os judeus são apresentados como demasiado exibicionistas —ou demasiado reservados. Eles recusam assimilar-se —ou, então, assimilam-se bem demais. São excessivamente religiosos —ou excessivamente materialistas. Evitam o trabalho duro —ou trabalham mais do que os outros. São os agentes do capitalismo —ou os agentes do comunismo. São gente desconfiada —ou gente falsamente prestável. A lista não tem fim.

Mas se os sintomas são os mesmos —uma desconfiança alucinada que devora o cérebro do antissemita como um câncer intelectual —o antissemitismo foi ganhando diferentes vestimentas no tempo e no espaço.

Começou por ser um antissemitismo religioso (o judeu como assassino de Cristo) que banhou de sangue as páginas negras da Idade Média europeia.

Depois passou para um antissemitismo nacionalista (o judeu como traidor da pátria), acusação que teve o seu momento infame no julgamento de Alfred Dreyfus, o oficial francês (e judeu) acusado e condenado, injustamente, de passar informações militares secretas à Alemanha.

Ironicamente, foi a Alemanha que continuou a tocha olímpica do antissemitismo, exterminando 6 milhões com uma ferocidade nunca vista.

E a doença continua hoje, nas livrarias do Oriente Médio, onde os "Protocolos dos Sábios do Sião" (o documento forjado pela polícia czarista para justificar os "pogroms" antissemitas de finais do século 19) continuam a ser vendidos com sucesso. O que não admira: os "Protocolos" pretendem "provar" a conspiração judaica para dominar o mundo. Haverá coisa mais deliciosa para a cabeça doente de um antissemita?

Com as eleições europeias, a extrema-direita voltou a mostrar as suas garras. E o antissemitismo islamita, pelos vistos, gosta de mostrá-las com uma regularidade assombrosa.

Mas esses dois fenômenos são parte de um problema maior: os séculos passam, os cadáveres amontoam-se, o mundo jura que aprendeu a lição. Mas a doença antissemita continua latente. E sem perspectiva de cura.

U.B.S.S. - Pondé



União Brasileira Socialista Soviética. Piada de mau gosto mesmo, também acho, mas a pena mesmo é que a discussão política entre nós seja da idade da pedra e o socialismo ainda seja levado a sério. A piada de mau gosto mesmo é que estamos à beira de um golpe de Estado invisível no Brasil.

O leitor e a leitora já estão a par do decreto do governo que institui a Política Nacional de Participação Social e o Sistema Nacional de Participação Social? Trata-se de decreto para aparelhar movimentos como o MST (gente que quer tomar a terra alheia), o MTST (gente que discorda da ideia de que se deve pagar pelo teto em que mora) e outros movimentos que englobam gente "sem algo" e acham que a sociedade deve dar pra eles. Esses grupos darão um golpe de Estado invisível. Tudo fruto, é claro, de setores do PT radical e os raivosos ex-PT, hoje em pequenos partidos.

Esse decreto é um golpe de Estado sem dizer que é. Lentamente, os setores mais totalitários do país, amantes de ditaduras do proletariado (ou bolivarianas) voltam à cena no Brasil. Comitês como esses tornam os poderes da República reféns de gente que passa a vida sendo profissional militante. Quando você acordar, já era, leis serão passadas sem que você possa fazer algo porque estava ocupado ganhando a vida.

Pergunte a si mesmo uma coisa: você tem tempo de ficar parando a cidade todo dia, acampando em ruas todo dia, discutindo todo dia? Provavelmente não, porque tem que trabalhar, pagar contas, levar filhos na escola, no hospital, e, acima de tudo, pagar impostos que em parte vão para as mãos desses movimentos sociais que se dizem representantes da "sociedade".

Mas a verdade é que a maioria esmagadora de nós, a "sociedade", não pode participar desses comitês porque não é profissional da revolução.

Tais movimentos que se dizem sociais, que afirmam que as ruas são deles, mentem sobre representarem a sociedade. Mesmo greves como a do metrô, capitaneada por uma filial do PSTU, não visa apenas aumentar salários. Visa instaurar a desordem para que o Brasil vire o que eles acham que o Brasil deve ser.

Afinal, de onde vem a grana que sustenta essa moçada dos movimentos sociais? A dos sindicatos, sabemos, vem dos salários que são obrigatoriamente onerados para que quem trabalha sustente os profissionais dos sindicatos. Mas, até aí, estamos na legalidade de alguma forma. Mas e os "sem-Macs" ou "sem-iPhones", vivem do quê? Quando os vemos na rua, não parecem estar passando fome e frio como dizem que estão. Essa gente é motivada e sustentada de alguma forma.

Por que não se exige entrar nas contas do MST e MTST e descobrir de onde vem a grana deles? Quem banca toda essa estrutura militante? Temo, caro leitor e cara leitora, que sejamos nós, os mesmos que eles consideram inimigos, a menos que concordemos com eles.

Uma das grandes mentiras desses movimentos sociais é dizer que combatem a "elite econômica", que, aliás, em dia de greve, fica em casa porque não precisa de fato se virar pra ir trabalhar.

Quem sofre com esses movimentos que arrebentam o cotidiano é gente que perde o emprego, perde o negócio, perde a vida se fica parada no trânsito ou na fila. É gente que, quando muito, anda de carro 1.0, não gente que anda de helicóptero.

É diarista, empregada doméstica, porteiro de prédio, professor, estudante sem grana e que tem que pagar a faculdade, não riquinhos da zona oeste paulistana que fazem sociais para infernizar a vida dos colegas.

É médico que tem três empregos, é dona de casa que cuida de filhos e trabalha fora, é trabalhador da construção civil, é gente "mortal", comum, que não pode se defender dos caras que fecham a cidade dizendo que fazem isso em nome do "povo".

Os movimentos sociais têm demonstrado seu caráter autoritário. Pensam que as ruas são o quintal de seus comitês, que aparelharão os poderes da República.

Se não bastasse isso tudo, vem aí o controle social da mídia. Dizer que será apenas para evitar monopólios é achar que somos idiotas. Veja o que aconteceu na Argentina.

terça-feira, 3 de junho de 2014

"Mapa Dibujado por un Espía" - Pondé



Literatura é um documento histórico? Para mim, a literatura é um documento antes de tudo porque "brota" do solo de uma época, dos modos de vida, das ansiedades, das práticas morais e políticas. Enfim, da "matéria social e psicológica" de quem escreve.

Entretanto, a verdade histórica é mesmo um drama. Existe "fato histórico"? Aliás, como nos ensinou George Orwell em seu brilhante "1984", podemos criar um passado (ou um presente) que não existe, a fim de fazer as pessoas esquecerem o que queremos que esqueçam ou acreditem no que queremos que elas acreditem. A nossa Comissão da Verdade está bem no olho do furacão deste debate. Professores de história ensinam o que querem, contanto que façam a cabeça dos alunos do jeito que querem.

Proponho que todo mundo que queira ter uma ideia do que foi e é Cuba, para além da propaganda ideológica ainda em curso em nossas terras neolíticas, leia Guillermo Cabrera Infante (1929-2005), escritor cubano, mais tarde naturalizado e radicado na Inglaterra devido aos conflitos com a ditadura cubana, "nuestra camarada".

Entre vários títulos, leia "Mapa Dibujado por un Espía", da editora de Barcelona Galaxia Gutenberg, de 2013 ("mapa desenhado por um espião", numa tradução direta). Creio, ainda sem publicação no Brasil.

O livro, publicado postumamente por sua mulher Miriam Gómez, é um documento do ano de 1965 em Havana. Os especialistas discutem se teria sido escrito em 1973 ou antes. Antoni Munné, que faz o prefácio desta edição, suspeita, devido a inúmeros detalhes biográficos de Cabrera Infante, que é mais provável que tenha sido escrito antes de 1968.

O autor, que vivia então na Bélgica como funcionário diplomático, volta a Havana (cidade profundamente amada por ele) devido à morte de sua mãe. E aí começam suas agruras. O livro pode ser lido pelo viés de como Cabrera Infante passa esses quatro meses e pouco em Havana, sem conseguir sair, dormindo com inúmeras mulheres. Mas pode ser lido também como um documento do dia a dia de seus amigos, sua família e dele mesmo.

Uma coisa que chama atenção é o progressivo sistema de controle do comportamento que a ditadura cubana cria por meio de seu Ministério do Interior e seu departamento de "lacras sociales" (vícios sociais). Por exemplo, suspeitos de homossexualidade eram acompanhados diariamente porque eram considerados praticantes de vícios burgueses. Para os revolucionários, os gays eram uma doença social, não muito diferente do entendimento que alguns pentecostais famosos no Brasil têm dos gays.

Cabrera Infante é retirado do avião quando ia voltar para Bruxelas, sem que uma razão seja dada, apenas ordem do Ministério do Exterior (Minrex), no qual ele trabalhava.

Meses passam sem que tenha qualquer resposta da razão de ele ter sido tirado do avião. Ele vai inúmeras vezes ao ministério, mas sem que seja atendido pelas autoridades revolucionárias. Assim é sua aventura kafkiana. Regimes burocráticos movidos pela certeza de representar o "bem social" costumam ser inacessíveis.

Num diálogo especialmente elucidativo, o autor ouve de uma alta patente revolucionária, Haydée Santamaría, qual o entendimento da revolução com relação aos seus supostos 15 mil inimigos presos: "La Revolución no cuenta a sus enemigos sino que acaba con ellos". Todos os movimentos socialistas que começam dizendo que amam a liberdade, a democracia e a justiça social acabam matando todo mundo que discorda deles.

A comida era pobre (basicamente vegetais) e repetida. Todo dia a mesma coisa. Faltava água (banhos eram uma raridade) e apenas a aristocracia revolucionária tinha acesso a carne e luxos semelhantes. A medicina, um lixo, como é até hoje. Café, uma festa! "Radiolas" não funcionavam por falta de baterias (pilhas). Ninguém confiava em ninguém.

O regime chegou a pensar em retirar o pátrio poder das famílias e fazer das crianças "filhos da revolução". Enfim, o horror que quem conhece a história do século 20 sabe, mas que começa a ser omitido para os alunos em suas aulas de história no Brasil.

Fascismo light - J.P. Coutinho


Reinaldo Azevedo escreveu na "Veja" um texto sobre o tabaco. Corrijo. Sobre a autoritária intenção do governo federal de proibir o fumo em lugares fechados. Como já acontece em São Paulo.

Subscrevo cada linha do meu colega e aproveito para responder à pergunta de Reinaldo sobre o glorioso mundo que espera o Brasil: é o mundo da União Europeia, com seus regulamentos absurdos e suas absurdas intromissões na liberdade individual —a respeito de sal, gorduras, açúcares, bebidas energéticas, exercício físico, exposição solar e qualquer manifestação de vida que seja um desvio da cartilha dos fanáticos.

Mas, antes de passarmos a esse mundo, relembremos o básico: a luta contra o fumo é uma luta médica, não política.

Os médicos podem "desaconselhar" o tabaco. Os cientistas podem provar os malefícios do fumo para a saúde do fumante (ativo), embora ainda esteja por provar qualquer relação consequente entre fumo (passivo) e câncer, por exemplo. Depois, em liberdade, cada um escolhe o modo de vida que entende com a informação de que dispõe.

Coisa diferente é afirmar que o fumo também pertence ao mundo do poder político. Não pertence. Se, como escreve Reinaldo Azevedo, os cigarros não são ilegais, não compete ao governo tratá-los como substâncias ilícitas. Sobretudo quando esse governo cobra impostos sobre o consumo, beneficiando os cofres do Estado com um vício que publicamente condena.

A hipocrisia do gesto fura os olhos de qualquer um: sob a capa da virtude, o governo rejeita os pulmões dos fumantes mas não o dinheiro deles.

Além disso, e mesmo que as proibições sejam em nome da saúde, não compete ao governo ser o "babysitter" de ninguém. Tentar aprimorar a qualidade da raça é coisa de regimes totalitários, não de democracias pluralistas.

Em democracias pluralistas, os indivíduos têm todo o direito de arruinar a própria saúde. Fumando. Bebendo. Transando sem camisinha. Rejeitando o "jogging" e abraçando o "zapping".

Aliás, não é apenas o direito de cada um dispor da sua saúde que deve ser respeitado. Existe um direito ainda mais básico que a proibição do fumo em lugares fechados viola clamorosamente: é o direito à propriedade privada.

Como escrevi nesta Folha quando a proibição de fumar em lugares fechados se abateu sobre São Paulo, não compete ao governo indicar ao proprietário de um bar ou restaurante o tipo de clientela que ele pode, ou não pode, aceitar no seu espaço.
Essa decisão pertence ao proprietário: é tão legítimo aceitar fumantes como recusá-los. O mercado e a concorrência, depois, que façam o seu papel: se eu não desejo frequentar um restaurante para fumantes, posso perfeitamente escolher jantar no restaurante do lado onde circula o ar puro de vales e montanhas.

As leis antifumo, que são hoje dominantes em toda a Europa, fazem parte de um programa mais vasto de "reeducação" dos homens em nome da Saúde (a única divindade que restou no mundo pós-religioso). E como se procede a essa "reeducação"?

Claro: criando um estigma sobre fumantes, obesos ou sedentários. Não admira que a esmagadora maioria dos fumantes brasileiros lamente a sua própria "fraqueza". Reinaldo Azevedo fala em 90%. Por razões de saúde? Admito que sim.

Mas também admito que muitos deles se olhem no espelho e se vejam como o governo e os novos "engenheiros de almas humanas" os retratam: seres fracos e repelentes —"vermes", na carinhosa expressão do velho Adolfo— que só servem para "contaminar" a sociedade.

Essa "contaminação" não é mais a contaminação tosca dos delírios nazistas sobre a "praga" judaica. É uma "contaminação" mais subtil, que pretende espalhar na sociedade uma forma de "apartheid" com a pergunta: "Por que motivo eu devo pagar com os meus impostos o tratamento médico de gente que poderia ter cuidado melhor da sua saúde?"

Como é evidente, essa pergunta só faria sentido se fumantes ou glutões não pagassem também impostos. E, como pagadores de impostos, não tivessem os mesmos direitos que qualquer contribuinte vegetariano, praticante de ioga e abstêmio radical.

Os hospitais não existem para tratar gente saudável. Relembrar o óbvio é o melhor retrato do "fascismo light" em que vivemos.