terça-feira, 29 de julho de 2014

Carnes Vivas - Coutinho


Tive uma infância de príncipe. Passei longas horas na rua, sem supervisão parental, a fazer coisas que não lembram ao diabo. Isso na cidade.

No campo, o cardápio era melhor: torturava bichos, primos, vizinhos. Parti o braço (uma vez) e o pulso (idem). Tudo porque teimava em subir nas árvores, como um Tarzan de nove anos.

E, por falar em árvores, cheguei a construir uma casa rudimentar no cimo de uma oliveira -o supremo cliché, tirado de um romance de Mark Twain- que aguentou apenas duas horas. Findas as duas horas, já eu estava no chão, com os joelhos em carne viva.

Às vezes pergunto o que aconteceria aos meus pais se o pequeno selvagem que eu fui pudesse reaparecer agora, neste 2014, sem freio nem controle. Provavelmente, seria exibido em uma jaula, como um King Kong pré-púbere, só para horrorizar a burguesia.

"Minhas senhoras e meus senhores, vejam com os próprios olhos, uma criança que gosta de brincar!"

Imagino a plateia, horrorizada, tapando os olhos dos filhos -ou, melhor ainda, ligando os tablets e anestesiando-os com a dose apropriada de pixels.

E a minha mãe, a única sobrevivente da minha biografia juvenil, estaria obviamente presa. Exagero? Não creio. Conta a "Economist" dessa semana que Debra Harrell, da Carolina do Sul, foi detida por deixar a filha de nove anos brincar no parque sem vigilância apurada.

Engraçado. Na década de 1950, uma criança tinha cinco vezes mais possibilidades de morrer precocemente (por doença, acidente etc.) do que uma criança do século 21. Mas os pais da "baby-boom generation" deixavam as suas crianças à solta, talvez por entenderem que uma criança é uma criança. Esses pais não eram, como diz a revista, "pais-helicóptero".

Expressão feliz. Conheço vários: casais que devotam aos filhos a mesma atenção obsessiva que um pesquisador dedica aos seus ratinhos de laboratório. Gostam de saber onde estão os filhos. O que fazem. Em casa de quem. E com quem. Como os helicópteros, estão constantemente a planar sobre a existência dos petizes.

E quando finalmente descem à terra, é a desgraça: correm com eles para aulas de música, caratê, natação, matemática, talvez física quântica. No regresso à casa, é ver esses pequenos escravos arrumados a um canto, mortificados e exaustos, antes de se recolherem aos quartos e as luzes serem apagadas como nos presídios.

Não sei que tipo de crianças os "pais-helicóptero" estão a produzir. Deixo essas matérias para os especialistas. E, confesso, a minha selvageria juvenil não é exemplo para ninguém: também eu já estou corrompido pelos ares do tempo e um filho meu jamais subiria a uma árvore sem eu chamar de imediato a associação de bombeiros para o tirar de lá.

Digo apenas que a profusão de "pais-helicóptero" é uma brutal amputação da infância e da adolescência. Para além de corromper a relação entre pais e filhos.

Sobre a amputação, não sei que adulto eu seria se nesses primeiros anos não houvesse a sensação de liberdade, mas também de percepção do risco, que me acompanhava todos os dias. Apesar dos ossos que quebrei, dores foram compensadas pela confiança que ganhei e pela intuição de que o mundo não é uma ameaça constante, povoado por sequestradores, pedófilos ou extraterrestres.

Mas os "pais-helicóptero" corrompem a relação essencial entre eles e os filhos. Anos atrás, o filósofo Michael Sandel escreveu um magistral ensaio contra o uso da engenheria genética para produzir descendências perfeitas.

O ensaio intitula-se "The Case Against Perfection". Dizia Sandel que se os pais pudessem manipular os fetos para terem superfilhos, estaria quebrada a qualidade essencial da parentalidade: o fato de amarmos os filhos incondicionalmente. Sejam ou não perfeitos. Os filhos são "dádivas", escrevia Sandel; não são um produto que obedece aos nossos caprichos.

Igual raciocínio é aplicável aos "pais-helicóptero": é natural desejar o melhor para os filhos. E um professor particular de matemática nunca fez mal a ninguém.

Não é natural ter com os filhos a mesma relação que existe entre um treinador e o seu atleta, como se a vida -acadêmica, pessoal, emocional- fosse uma mini-Olimpíada permanente.

Na minha infância, as únicas medalhas que colecionei são as cicatrizes que trago no corpo. Não as troco por nada.

Frouxinhos contemporâneos - Pondé


O medo é uma emoção básica na vida. Pequenas e grandes frustrações nos assolam por todos os lados.

Mas, já disse isso antes, acho que nunca houve uma época tão medrosa como a nossa, com um dom tão grande para negar esse medo e negar a complexidade e frustração a que estamos todos submetidos. Associada a essa tendência, produzimos uma gama de "direitos" que mais parecem uma metafísica podre dos costumes para retardados.

Para cada frustração, alguém inventará uma derivação duvidosa da declaração dos direitos do homem. Aliás, vale lembrar que a famosa declaração dos direitos do homem foi cozida em muito sangue que correu pelas mãos dos jacobinos na Revolução Francesa. Imagino que se a revolução francesa fosse hoje, fotos nas redes sociais pedindo paz nas ruas de Paris encheriam os iPhones dos bonzinhos.

Outro dia, conversava eu com um amigo esquisito, historiador, portanto, esse tipo de pessoa que pensa "a longo prazo". Ele descreveu o que eu consideraria uma imagem de pura escatologia apocalíptica: um dia alguém vai declarar que ir ao banheiro é uma forma de repressão, e, portanto, vão inventar um movimento contra a opressão de ter que usar banheiros. "Que a rua seja o meu banheiro!"

A tipologia contemporânea de comportamentos tem crescido assustadoramente. O inteligentinho todo mundo conhece: é o tipo de pessoa que acha que problemas como o do Oriente Médio se resolveriam com um ciclo de cinema e debate sobre filmes que narram a vida de mulheres fazendo bolos ou crianças jogando futebol.

Na verdade, como sempre, a intenção "escondida" é projetar os bons sentimentos do inteligentinho para com o mundo e dizer que ele tem soluções criativas para uma humanidade que nunca foi tão inteligente como ele.

Outro tipo contemporâneo é o bonzinho. Este, com o coração ainda mais cheio de amor, costuma postar fotos dizendo "não" às guerras, de seu iPhone ou de seu MacBook Pro. Mas mais típico ainda é postar fotos de Aspen com camisetas do Che. Este tipo é normalmente teen, mesmo que já tenha passado dos quarenta. Seus pais dizem coisas como "comam menos carne vermelha para ficar menos agressivos".

Mas um novo tipo que logo estará presente nas colunas sociais em eventos culturais são os frouxinhos. Estes homens (gênero, não espécie) descobriram que é difícil ser homem, ainda mais numa época em que está na moda confessar traumas o tempo todo para garantir (supostamente) a simpatia de todos.

E, pior: vivemos numa época de mulheres que crescem profissionalmente, amadurecem publicamente e financeiramente e que, portanto, ainda metem mais medo do que sempre meteram nos homens.

Os homens não confessam, mas morrem de medo das mulheres, principalmente quando as desejam.

Façamos um breve exercício de antropologia contemporânea urbana para ver se conseguimos captar os próximos atos deste novo tipo.

Antes de tudo, um reparo técnico. Vale salientar que a descrição antropológica em questão não é financiada pelo Tea Party (como costumam dizer os bobos das redes sociais quando querem tirar o crédito de alguém que os considera ridículos), tampouco vem sustentada por uma metafísica machista fanática do tipo "homem não chora", ou "lugar de mulher é na cozinha". Risadas?

Vejo-os em passeatas, chorando, com cartazes escritos assim: "Pelo direito de brochar", "pelo direito de arrumar uma mulher que me sustente", "pelo direito de gritar quando aparecer uma barata na sala", "pelo direito de se negar a trocar o pneu", "pelo direito de ter tempo igual ao da mulher na frente do espelho", "pelo direito de ter TPM" (claro, a medicina é machista por isso nunca descreveu a TPM masculina), "pelo direito de colocar a mulher na frente do ladrão", "pelo direito de sair antes da mulher e das crianças numa situação de risco".

Meu Deus, coitadas das meninas, condenadas a ficar se virando em camas vazias com homens que não seguram o tranco da insustentável condição de insegurança, incerteza, contingência, dureza, mentira, frustração, e, finalmente, derrota, que nos assola todos a vida inteira.