Outro dia, dirigindo pelo trânsito de São Paulo, ouvi uma música da Lana del Rey que me chamou atenção, pela ideia que nela se repetia: o medo sentido por uma mulher de ser abandonada por seu amado um dia, quando sua beleza e juventude acabassem e restasse apenas sua "aching soul" (sua alma em dor ou em agonia). Uma letra romântica banal, como todo clichê.
Mas quem em sã consciência negaria que essa mesma letra banal descreve a dor de todos nós, homens e mulheres que envelhecem e perdem a beleza dia após dia? Acredito mais nessa letra de música do que em inúmeros textos sofisticados sobre "relações entre sexo, afeto e poder".
Cada dia que passa, temo pela irrelevância dos estudos acadêmicos das chamadas ciências humanas, devido ao que o intelectual americano Thomas Sowell chama de alienação da classe "ungida" que somos nós, os intelectuais.
Essa música seria facilmente acusada de repetir a "ideologia dominante" (para mim, esse conceito tem a mesma validade de dizer que algo acontece porque Saturno está na casa sete...) e de que esse medo é simplesmente "culpa" da opressão do conceito de beleza capitalista ou sexista. Pensar que cultura pop seja simples sintoma da "ideologia dominante" é ser incapaz de enxergar o óbvio.
A vida é clichê, por isso, temo, revistas femininas logo serão mais relevantes no debate sobre comportamento e afetos contemporâneos do que estudos acadêmicos. Seria essa, afinal, a vingança do jornalismo, muitas vezes menosprezado por nós, intelectuais, contra a soberba dos ungidos que nada entendem das agonias de carne e osso? Talvez a condição de escrever sob o gosto de sangue e de saliva que tem a trincheira da vida real dê às revistas femininas mais consistência do que as elaborações sem corpo dos especialistas em afetos.
O filósofo Francis Bacon (séculos 16-17) tirava sarro da "baixa escolástica" e suas questões sobre quem puxava o burro, quando se puxava um burro com uma corda, se era a pessoa ou a corda que puxava o burro... (risadas?). Penso que, em 500 anos, rirão de nós da mesma forma quando se diz hoje em dia que o medo de uma mulher (ou de um homem) de ser abandonada é sintoma de "opressão social", e que pessoas emancipadas não sofrem com isso. O conceito de opressão virou um grande fetiche dos intelectuais.
Suponho que assim como os textos de Sade (considerado lixo no século 18) hoje são parte do cenário filosófico, em 500 anos as revistas femininas serão mais importantes para a compreensão do que pensamos hoje do que toda a parafernália de teorias sobre "relações de poder".
Um adendo: vale salientar que Sade não ficou importante porque é o ancestral de toda teoria que relaciona sexo à perversão, mas sim porque ele relaciona sexo, afeto e a crueldade de nossa natureza humana e da natureza biológica como um todo.
Talvez um dos maiores medos humanos e que move o mundo desde sempre seja justamente o medo de perder a beleza e a juventude, e se restará alguém ao nosso lado quando formos apenas uma alma em agonia. Já que as ciências humanas mentem, a esperança é que as revistas femininas falem a verdade que não quer calar: ao final, temos mesmo é medo de sermos feios e mal-amados.
Por fim, recomendo vivamente o livro "Não se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo" (Nova Fronteira), de Nelson Rodrigues, escrito sob o pseudônimo de Myrna, sua rápida coluna de 1949 no "Diário da Noite". Esta "mulher" Myrna é uma sábia. Falaremos dela em 500 anos.
Revistas femininas e autores como Nelson Rodrigues são acusados de moralismo. Antigamente o moralismo relacionava sexo, afeto e demônios. Incrível como não se vê que hoje o verdadeiro moralismo está nas teorias que relacionam as formas comuns (dos meros mortais) de afeto e sexo a "frutos da opressão da mulher".
Aprendemos a negar nosso medo com teorias sofisticadas, mas o medo sempre aparece. Ficou chique dizer que se é emancipado, quando na realidade nem só de liberdade vive o desejo, mas também de pecado, medo e vergonha. Como dizia Nelson, "o desejo também precisa de seu claustro".
terça-feira, 8 de outubro de 2013
Homens de bem - J.P. Coutinho
Você, leitor, é pessoa honesta e cumpridora. Trabalha. Paga as contas. É decente com a mulher e os filhos. Mas quando olha em volta, o cenário é selvagem. Os colegas usam e abusam da dissimulação e da mentira. Sem falar da corrupção de superiores hierárquicos ou de políticos nacionais, esse câncer que permite a muitos deles terem o carro, a casa, as férias, a vida que você nunca terá.
Para piorar as coisas, eles jamais serão punidos por suas viciosas condutas. A pergunta é inevitável: será que eu devo ser virtuoso? Será que eu devo educar os meus filhos para serem virtuosos?
Essas perguntas foram formuladas por Gustavo Ioschpe em excelente texto para a "Veja". De que vale uma vida ética se isso pode representar, digamos, uma "desvantagem competitiva"?
Boa pergunta. Clássica pergunta. Os gregos, que Ioschpe cita (e, de certa forma, rejeita), diziam que a prossecução do bem é condição necessária para uma vida feliz. Mas o que dizer de todas as criaturas que, praticando o mal, o fizeram de cabeça limpa por terem falsificado a sua própria consciência?
Apesar de tudo, Gustavo Ioschpe tenciona educar os filhos virtuosamente. Não por motivos religiosos, muito menos por temer as leis da sociedade. Mas porque assim dita a sua consciência. Um dia, quem sabe, talvez o Brasil acabe premiando essas virtudes.
A resposta é boa por seu otimismo melancólico. Mas, com a devida vênia ao autor, gostaria de deixar dois conselhos para acalmar tantas angústias éticas.
O primeiro conselho é para ele não jogar completamente fora as leis da sociedade na definição de boas condutas. Porque quando falamos de vidas éticas, falamos de duas dimensões distintas: uma dimensão pública, outra privada.
E, em termos públicos, acreditar que os homens podem ser anjos (para usar a célebre formulação do "Federalista") é o primeiro passo para uma sociedade de anarquia e violência.
Na esfera pública, eu gostaria que os homens fossem anjos; mas, conhecendo bem a espécie, talvez o mínimo a exigir é que eles sejam punidos quando se revelam diabos.
Se preferirmos, não são os homens públicos que têm de ser virtuosos; são as leis que devem ser implacáveis quando os homens públicos são viciosos.
Isso significa que a principal exigência ética na esfera pública não deve ser dirigida ao caráter dos homens --mas, antes, ao caráter das leis e à eficácia com que elas são aplicadas. No limite, é indiferente saber se os homens públicos são exemplos de retidão. O que importa saber é se a República o é.
Eis a primeira resposta para a pergunta fundamental de Gustavo Ioschpe: devemos educar os nossos filhos para a virtude? Afirmativo. Ninguém deseja para os filhos a punição exemplar das leis. E, como alguém dizia, é do temor das leis que nasce a conduta justa dos homens. Desde que, obviamente, as leis inspirem esse temor.
E em privado? Devemos ser virtuosos quando nem todos seguem a mesma cartilha e até parecem lucrar com isso?
Também aqui, novo conselho: não é boa ideia jogar fora os gregos. Sobretudo Aristóteles, que tinha sobre a matéria uma posição sofisticada e, opinião pessoal, amplamente comprovada.
Fato: não há uma relação imediata entre virtude e felicidade. Mas Aristóteles gostava pouco de resultados imediatos. O que conta na vida não são as vantagens que conseguimos no curto prazo. É, antes, o tipo de caráter que "floresce" (uma palavra cara a Aristóteles) no curso de uma vida.
E, para que esse caráter "floresça", as virtudes são como músculos que praticamos e desenvolvemos até ao ponto em que a "felicidade", na falta de melhor termo, se torna uma segunda natureza.
Caráter é destino, diria Aristóteles. O que permite concluir, inversamente, que a falta de caráter tende a conduzir a um triste destino. Exceções, sempre haverá. Mas, aqui entre nós, confesso que ainda não conheci nenhuma. Não conheço maus-caracteres que tiveram grandes destinos.
Sim, leitor, não é fácil olhar em volta e ver como a mesquinhez alheia triunfa e passa impune. Mas não confunda o transitório com o essencial.
E, sobretudo, nunca subestime a capacidade dos homens sem caráter para arruinarem suas próprias vidas.
Educar os filhos para serem "homens de bem" é também ajudá-los a evitar essa ruína.
Para piorar as coisas, eles jamais serão punidos por suas viciosas condutas. A pergunta é inevitável: será que eu devo ser virtuoso? Será que eu devo educar os meus filhos para serem virtuosos?
Essas perguntas foram formuladas por Gustavo Ioschpe em excelente texto para a "Veja". De que vale uma vida ética se isso pode representar, digamos, uma "desvantagem competitiva"?
Boa pergunta. Clássica pergunta. Os gregos, que Ioschpe cita (e, de certa forma, rejeita), diziam que a prossecução do bem é condição necessária para uma vida feliz. Mas o que dizer de todas as criaturas que, praticando o mal, o fizeram de cabeça limpa por terem falsificado a sua própria consciência?
Apesar de tudo, Gustavo Ioschpe tenciona educar os filhos virtuosamente. Não por motivos religiosos, muito menos por temer as leis da sociedade. Mas porque assim dita a sua consciência. Um dia, quem sabe, talvez o Brasil acabe premiando essas virtudes.
A resposta é boa por seu otimismo melancólico. Mas, com a devida vênia ao autor, gostaria de deixar dois conselhos para acalmar tantas angústias éticas.
O primeiro conselho é para ele não jogar completamente fora as leis da sociedade na definição de boas condutas. Porque quando falamos de vidas éticas, falamos de duas dimensões distintas: uma dimensão pública, outra privada.
E, em termos públicos, acreditar que os homens podem ser anjos (para usar a célebre formulação do "Federalista") é o primeiro passo para uma sociedade de anarquia e violência.
Na esfera pública, eu gostaria que os homens fossem anjos; mas, conhecendo bem a espécie, talvez o mínimo a exigir é que eles sejam punidos quando se revelam diabos.
Se preferirmos, não são os homens públicos que têm de ser virtuosos; são as leis que devem ser implacáveis quando os homens públicos são viciosos.
Isso significa que a principal exigência ética na esfera pública não deve ser dirigida ao caráter dos homens --mas, antes, ao caráter das leis e à eficácia com que elas são aplicadas. No limite, é indiferente saber se os homens públicos são exemplos de retidão. O que importa saber é se a República o é.
Eis a primeira resposta para a pergunta fundamental de Gustavo Ioschpe: devemos educar os nossos filhos para a virtude? Afirmativo. Ninguém deseja para os filhos a punição exemplar das leis. E, como alguém dizia, é do temor das leis que nasce a conduta justa dos homens. Desde que, obviamente, as leis inspirem esse temor.
E em privado? Devemos ser virtuosos quando nem todos seguem a mesma cartilha e até parecem lucrar com isso?
Também aqui, novo conselho: não é boa ideia jogar fora os gregos. Sobretudo Aristóteles, que tinha sobre a matéria uma posição sofisticada e, opinião pessoal, amplamente comprovada.
Fato: não há uma relação imediata entre virtude e felicidade. Mas Aristóteles gostava pouco de resultados imediatos. O que conta na vida não são as vantagens que conseguimos no curto prazo. É, antes, o tipo de caráter que "floresce" (uma palavra cara a Aristóteles) no curso de uma vida.
E, para que esse caráter "floresça", as virtudes são como músculos que praticamos e desenvolvemos até ao ponto em que a "felicidade", na falta de melhor termo, se torna uma segunda natureza.
Caráter é destino, diria Aristóteles. O que permite concluir, inversamente, que a falta de caráter tende a conduzir a um triste destino. Exceções, sempre haverá. Mas, aqui entre nós, confesso que ainda não conheci nenhuma. Não conheço maus-caracteres que tiveram grandes destinos.
Sim, leitor, não é fácil olhar em volta e ver como a mesquinhez alheia triunfa e passa impune. Mas não confunda o transitório com o essencial.
E, sobretudo, nunca subestime a capacidade dos homens sem caráter para arruinarem suas próprias vidas.
Educar os filhos para serem "homens de bem" é também ajudá-los a evitar essa ruína.
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