terça-feira, 5 de fevereiro de 2013

É proibido proibir? J.P. Coutinho

É um dos vícios do mundo moderno: a crença patética de que tudo é possível, tudo é permissível. Ou, como diziam os filhos do maio de 68, é proibido proibir.

Um caso ilustra esse vício com arrepiante precisão: as "barrigas de aluguel".

Li a excelente matéria de Patrícia Campos Mello publicada nesta Folha no domingo. E entendo a pergunta que anima o negócio: se um casal não pode ter filhos por infertilidade da mulher, por que não contratar os serviços de uma "mãe de aluguel", que terá o seu óvulo fecundado pelo espermatozoide do pai adotivo?

Na Índia, a pergunta virou turismo: só na cidade de Anand, conta a jornalista, nasce uma criança a cada três dias para "exportação". Os "clientes" costumam ser americanos, britânicos, japoneses, canadenses. Mas também há brasileiros na lista de espera. Que dizer do cortejo?

Começo pelas questões éticas básicas: será que um filho deve ser comprado (US$ 20 mil na Índia) como se compra uma mala Louis Vuitton ou um par de sapatos Manolo Blahnik?

E será legítimo, ó consciências progressistas, transformar as pobres do mundo em incubadoras dos filhos dos ricos? Não é preciso ter lido Kant para saber que os seres humanos devem ser tratados como um fim em si, não como um meio para.

Fato: o negócio é voluntário. Todas as partes participam dele com "autonomia", para usar ainda a linguagem kantiana. Mas o argumento da autonomia, mil perdões, não chega.

Se chegasse, nada impediria que um ser humano optasse autonomamente por ser escravo de outro. Vamos permitir o regresso da escravidão, mesmo que voluntária, desde que o escravo e o seu senhor exerçam os seus papéis autonomamente?

Não creio. Até porque falar em "autonomia" para gente em situação de pobreza extrema não passa de uma piada de mau gosto: a "mãe de aluguel" indiana e a mãe adotiva americana não habitam o mesmo planeta. A segunda escolhe comprar porque pode. A primeira praticamente é forçada a vender pela miséria da sua situação.

Na discussão das "barrigas de aluguel", parece que só os direitos das mães adotivas têm verdadeira força ética -o direito a serem felizes; o direito a terem filhos; o direito a comprá-los; e etc. etc.

Mas como responder aos direitos das "mães de aluguel"? Ou até dos "filhos comprados"? Será que essas duas entidades têm direitos, no sentido prosaico do termo?

Tempos atrás, quando em Portugal se debatia a "maternidade de substituição" (um processo semelhante às "barrigas de aluguel", mas sem dinheiro envolvido), lembro-me de formular algumas questões a respeito que se aplicam com maior força às "mães de aluguel" a aos "filhos comprados" de Anand.

Que direitos terá uma "mãe de aluguel" depois de entregar o filho biológico ao casal adotivo? Poderá visitar a criança? Será obrigada a afastar-se dela? Como? Por quê? Com que legitimidade?

E se, durante a gestação, a "mãe de aluguel" se recusar a entregar o filho porque desenvolveu uma ligação emocional com ele? Haverá forma de a coagir a cumprir o negócio? Em caso afirmativo, será isso tolerável? Será, no mínimo, decente?

Melhor ainda: o que acontece, para citar alguns casos que ficaram célebres nos Estados Unidos, quando o feto apresenta uma malformação uterina e a mãe adotiva pretender abortá-lo contra a vontade da "mãe de aluguel"? Pode? Não pode? Deve? Não deve?

Sem falar do próprio filho, aqui transformado em mero brinquedo sem rosto ou dignidade própria. Quais são as consequências para uma criança quando ela é separada precocemente da sua mãe biológica? Que impacto isso terá no seu desenvolvimento psicológico ou social? Alguém sabe? Alguém se interessa?

Aliás, como irá essa criança reagir quando, mais tarde, ela souber que foi o produto de uma "encomenda"? Será que deve saber? Será que não deve?

As perguntas não são apenas minhas. Elas encontram-se na vastíssima literatura ética sobre o assunto --e cada uma dessas perguntas foi motivada por um drama concreto, vivido por gente concreta, que entrou no negócio por acreditar que um filho é precisamente isso: um negócio.

Não é. Exceto para cabeças ocas que transformam qualquer desejo em "direito" --e qualquer "direito" em exploração dos mais pobres.

segunda-feira, 4 de fevereiro de 2013

Relojoeiro Cego - Pondé

Você vai ao médico, ele pede um exame de sangue e você descobre que seu filho terá síndrome de Down. O que você faria?

Pensará nos custos? Você não é uma pessoa excepcionalmente egoísta, mas, em meio a sua agenda, como conseguirá lidar com uma criança assim? A agenda já é pesada com trabalho, sexo top (lembre-se: gostosa sempre!), estudos na pós-graduação (afinal, hoje em dia é imperativo agregar valor à vida profissional e pessoal), férias...

Quem tomará conta da criança? Você tem alguém com quem possa contar? Irmãs, mãe, marido? Escola especial? Psicoterapeuta, psicopedagoga?

Claro que essa questão não diz respeito a quem tem já filhos com esse quadro clínico, mas sim àqueles que um dia passarão por isso. Tampouco cabe aqui o argumento de que aqueles que já têm um filho assim o amam e aprenderam a conviver bem com essa situação. Enfim, não se trata de amar ou não os filhos que já se tem, mas sim de escolher os filhos que teremos.

No Brasil, sendo o aborto ilegal numa situação como está, a tendência, com a chegada até nós desse tipo de exame, é o aumento do aborto ilegal.

A ciência vive pressionando a ética: trata-se aqui da ampliação do poder de escolha informada. Aumentando os recursos técnicos da medicina pré-natal, aumenta-se proporcionalmente a possibilidade de se evitar determinados tipos de gravidez. O nome disso, segundo o filósofo americano Francis Fukuyama, é "design babies" (bebês de prancheta, na tradução brasileira): bebês ao portador, com grau máximo de saúde.

Católicos dirão que a vida pertence a Deus. Quem não crê nisso tem diante de si a seguinte questão: por que devo me submeter ao mero acaso? Afinal, a criança não foi fruto de um orgasmo (masculino, no mínimo)? Se o acaso decidiu qual óvulo e espermatozoide que estariam a postos, por que devo eu me submeter a tamanho capricho cego?

Não seria essa criança apenas uma carta triste no baralho, baralho este criado por um relojoeiro cego? Explico: a teoria do design inteligente (Deus criou o universo) afirma que sendo o universo organizado, não seria possível imaginar que ele teria surgido sem um criador inteligente (o relojoeiro criador).

Ateus em geral, ironizando, até aceitam que exista uma ordem, mas esta ordem seria fruto do acaso cego, daí o "relojeiro cego" que fala o darwinista Richard Dawkins em seu livro "Blind Watchmaker" (relojoeiro cego).

Se não devemos nada a ninguém, por que não tomarmos nosso destino nas mãos e ter o "melhor filho" possível? Tomar o destino em nossas mãos é optarmos pelos ganhos técnicos à mão, ou seja, a artificialização da vida.

Quanto aos crentes, em tempo abraçarão a causa, dirão que Deus nos fez inteligentes para tomarmos decisões inteligentes. A Igreja Católica, mais lenta, 500 anos depois também aceitará, como aceitou Galileu.

O processo de ampliação de escolha informada implica, num prazo de tempo não muito preciso, a crescente artificialização da atividade reprodutiva humana. Isso é tão inevitável como a ampliação dos direitos civis, tais como voto das mulheres, casamentos gays, direitos da mulher sobre seu corpo, e afins.

Se você vê um dia um homem aparentando 60 anos, mas com corpo e disposição de 40, correndo no Ibirapuera ao lado de uma gostosa de 25, você talvez não imagine quantos remédios ele tomou quando acordou, entre eles, um Viagra.

Isto é a artificialização da vida. Dito assim, parece um absurdo do cinema de ficção científica, mas na prática, é banal como tomar vitaminas e vacinas.

Num futuro próximo, ter filhos pelo método do acaso será como negar vacinas aos filhos. Um ato de irresponsabilidade reprodutiva. Empresas de seguro cobrarão mais caro por apólices de crianças geradas pelo relojoeiro cego. Ou simplesmente recusarão estas apólices.

ONGs farão campanhas para criminalização da reprodução não assistida pela medicina pré-natal genética em nome da sustentabilidade social das crianças geradas e dos custos de saúde pública.

Vejo mesmo o comercial: "Dê a seu filho o que você tem de melhor, Bradesco Biotecnologia".