segunda-feira, 4 de maio de 2015

Atropelados por um trem - Coutinho

1. O escritor Jeffrey Archer escreveu há uns tempos que dez jovens são mortos todos os dias em Mumbai, na Índia, quando cruzam a linha férrea. Mas não pelos motivos que o leitor imagina.
Muitos deles são ceifados pelo trem por vaidade: com seus smartphones na mão, a maioria procura captar o momento em que a máquina está quase, quase, quase em cima do artista. Muitos deles, provavelmente usando um pau de selfie, não sobrevivem para contar. Haverá melhor exemplo sobre a era narcísica em que vivemos?
Não creio. Até porque o patrono da seita –Narciso "lui même"– já tinha conhecido igual fim: deslumbrado pelo reflexo da sua imagem nas águas do rio, Narciso foi ficando, ficando, ficando. Até que a morte chegou para levar o seu corpo definhado.
E quem fala dos narcisos da Índia, fala dos narcisos ocidentais. Uma amiga contava-me entre lágrimas que vivia situação delicada com a filha. Parece que o namoro da petiz terminara com estrondo e o rapaz ameaçava agora partilhar nas "redes sociais" as "selfies" que ambos tiraram em estado adâmico.
Sugeri denúncia às autoridades. E depois acrescentei que esses casos de "vingança pornográfica" não são apenas casos de polícia. São casos de educação: se o amor é sempre eterno enquanto dura, convém recordar mais vezes a segunda parte dessa frase, e não apenas a primeira. Há selvagens onde menos esperamos.
Ou, por outras palavras, a melhor forma de não ser atropelado por um trem é não tirar "selfies" na Índia.
A minha amiga, como convém, só escutou o que quis escutar. E depois perguntou, em jeito acusatório, se eu não estaria a confundir as coisas, desculpando o selvagem.
É nesses momentos que uma pessoa sente vontade de emigrar para Mumbai.
2. Haverá coisa pior do que ir ao cinema e ter o companheiro do lado a comer ruidosamente pipocas?
Ruy Castro diz que não. Escreve o emérito colunista desta Folha que, assistindo a "Um Corpo que Cai" (sim, é a obra-prima de Hitchcock), alguém abriu um Cheetos de queijo e estragou o momento épico do romance: quando James Stewart e Kim Novak se beijam, as ondas rebentam nos rochedos e a música acompanha a fúria do mar.
Durante uns tempos, também eu acreditei que não haveria coisa pior do que salas de cinema transformadas em manjedouras. Hoje sei que estou errado. Duplamente.
Primeiro, porque levar produtos gastronômicos para dentro de uma sala de espectáculos pode ter a sua utilidade (já lá vamos).
E, depois, porque a humanidade consegue sempre fazer pior –uma lei que deveria ser ensinada nas escolas desde a mais tenra idade. Exemplo?
Semanas atrás, saí de casa para assistir a "Sweeney Todd", um dos grandes musicais da Broadway "moderna", escrito e composto por Stephen Sondheim.
O programa prometia: Emma Thomson seria mrs. Lovett, o baixo-barítono Bryn Terfel seria o vingativo Todd, disposto a degolar a humanidade inteira por ofensas passadas.
Mas quando o espectáculo começou no Coliseum de Londres, apercebi-me que não seria apenas Thomson, Terfel ou outros membros da English National Opera a cantarem esta história.
Um fã de carteirinha, que decorou a obra do primeiro ao último verso, sentou-se ao meu lado e cantava todas as músicas com arrepiante devoção. Melhor: para dar maior realismo à sua interpretação, ele próprio mudava de voz (feminina-masculina-feminina) em caso de dueto.
Uma forma de acabar com aquilo seria fulminar o camarada com uma expressão assassina. Mas o camarada cantava tudo de olhos fechados, em atitude de transe, o que tornava igualmente inúteis os sons guturais da assistência circundante exigindo silêncio e até toques no ombro para que ele acordasse.
Perante o dilema, e sabendo que os teatros ingleses proíbem Cheetos, mas não álcool (um hábito civilizado), a solução foi radical: despejar nas calças do homem um copo de vinho, na impossibilidade de ser um balde de água gelada pela cabeça abaixo.
O nosso cantor despertou, olhou para as calças e então eu pedi as devidas desculpas pela imprudência: "Mil perdões. Quando você começou a cantar, eu me assustei".
Ele levantou-se para ir banheiro e, sem a pujança vocal de outros tempos, comentou apenas: "Bando de selvagens".
Inexplicavelmente, não retornou mais. 

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