sexta-feira, 18 de setembro de 2015

Campo de tiro - J.P. Coutinho

Os seres humanos sempre gostaram de se enganar com ilusões românticas. Tenho as minhas. Por exemplo, comprar uma casa no campo e, como na canção, plantar ali meus amigos, meus discos, meus livros e nada mais.

Em teoria, tudo funciona. E eu imagino-me, no meio do silêncio, na serena contemplação do vazio, escrevendo e lendo e meditando como um buda rural. O problema está na prática.

Regressei de férias duas semanas atrás. E passei essas duas semanas em recuperação psicológica depois de uma temporada no campo. Em teoria, repito, tudo batia certo: uma casa no meio do Alentejo, no sul de Portugal, com as amenidades esperadas: sala ampla, silêncio em volta, piscina à disposição. Uma cenário digno de Tolstói (nos derradeiros anos). Na prática, estou vivo por acaso.

Tudo começou (mal) quando a localização do lugar desapareceu do meu aparelho de GPS. Onde ficaria a casa? Parei o carro na pequena vila e decidi perguntar.

Erro meu. Nas pequenas vilas, os pequenos habitantes nunca concebem a possibilidade de nós, forasteiros, não conhecermos o território. As explicações que nos oferecem fazem sempre referências a cruzamentos, estradas e até habitações de pessoas ("a casa do Alfredo"; "o cruzamento do cemitério"; "a estrada que vai para o rio") que todo mundo tem a obrigação de conhecer.

E quando dizemos um singelo "eu não sou daqui", eles corrigem com severidade: "A casa do Alfredo fica junto à fazenda do americano". Agradecemos a gentileza, fazemos de conta que conhecemos ("ah, o americano!") e depois fugimos apressadamente antes que a população inteira se reúna na praça para nos linchar.

Encontrei a casa por mera sorte e, contemplando a dita cuja, a minha pulsação cardíaca diminuiu. Melhor que nas fotos. Minutos depois, a pergunta inevitável: por que motivo as fotos nunca têm moscas insistentes que atacam de dez em dez segundos? E sempre com novas amigas, entretanto recrutadas no jardim paradisíaco?

E quem diz moscas, diz várias qualidades de bichos que sobem paredes, mesas, camas, lençóis, eventualmente bocas abertas.

No dia seguinte, com o corpo devidamente mastigado pela bicharada, a aventura é encontrar uma farmácia que existe a vários quilômetros dali, normalmente habitada por profissionais competentes que consideram picadas de mosquito um insulto nosso à qualidade dos produtos regionais.

Resta o silêncio do campo, certo? Errado. Silêncio é ausência de ruído. No campo, o ruído é o próprio campo. Isso começa durante a noite: um cachorro ladra do outro lado do mundo; mas o latido é amplificado e escutado como se fosse à porta do nosso quarto.
E quando amanhece e o cachorro se cala, começa uma sinfonia de aves, insetos, batráquios ou animais de porte maior que derrete o que resta da nossa sanidade. Com os neurônios a soçobrar, só uma frase persiste na cabeça massacrada: "Uma arma, uma arma, meu reino por uma arma".

O que se salva? A comida, sim, a comida: demoramos uma hora para encontrar o mercado; uma hora para regressar; uma hora para cozinhar; uma hora para afastar as moscas; uma hora para lavar os pratos.

Quando terminamos o almoço, descobrimos que é hora de jantar. Suspiramos pelo "room service" que não existe. E depois alguém fala de um restaurante "famoso" e "recomendado", mas o problema é o mesmo: uma hora para ir; uma hora para comer; uma hora para regressar; várias horas para trocar o pneu furado. Amanhece entretanto e é preciso pensar no café da manhã. Tradução: uma hora para comprar café, uma hora para encontrar pão, uma hora para...

Ironia: as minhas férias serviram para eu suspirar por férias. Ou, pelo menos, pela cidade que me acompanha o resto do ano. Por isso, quando a vi ao longe, no dia do regresso, a sensação foi semelhante à de um náufrago que vislumbra uma ilha no horizonte.

No meu caso, uma ilha feita de restaurantes, cafés, pessoas que passam. E até a lentidão do trânsito ganhou aos meus olhos os contornos de uma coreografia digna de Hollywood. "Como é belo esse congestionamento", pensei, enquanto inalava pela janela do carro o inconfundível odor da podridão urbana.

E quando, na primeira noite depois do regresso, desliguei a luz da mesa de cabeceira, pensei no cão que ladrava lá longe. E adormeci como um bebê, embalado pelas sirenes que passavam embaixo.