Nesses tempos sombrios de crise, somos obrigados a falar muito e por isso sempre acabamos falando demais. Precisamos de mais clareza, mas, como dizem por aí, a democracia é o regime do barulho, e no barulho o mais fácil é gritar "palavras de ordem", muito mais fácil para temperamentos que gozam em assembleias. Não é o meu caso, (in)felizmente.
No dia 29 de junho, aconteceu em São Paulo a Marcha para Jesus. Nela, o conhecido pastor e deputado Feliciano usava uma camisa na qual estava escrito "eu represento vocês".
Claro, de primeira, entendemos que ele quer dizer que representa os evangélicos que ali estavam. Não tenho tanta certeza: tenho amigos e conhecidos que são evangélicos e estão muito longe do que Feliciano diz representar. Não podemos jogar todos os evangélicos no mesmo "saco".
Mas me interessa hoje outra coisa: ele diz ser representante dos conservadores no Brasil. O conceito é complexo e pouco afeito a espíritos que gostam de falar para multidões. Mas é urgente dizer que Feliciano não representa o pensamento conservador no Brasil. Vou dar um exemplo "clichê" em seguida. Antes, vamos esclarecer uma coisa.
A tradição "liberal-conservative", como se diz comumente em inglês, se caracteriza por uma sólida literatura quase desconhecida entre nós: David Hume (sua moral), Adam Smith, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Friedrich Hayek, T.S. Eliot, Michael Oakeshott, Isaiah Berlin, Russell Kirk, Theodore Dalrymple, John Gray, Gertrude Himmelfarb, Thomas Sowell, Phyllis Schafler, Roger Scruton, entre outros.
Não é à toa que matérias como a da "Ilustrada" do domingo 30 de junho falam que a Flip (poderia ter falado de qualquer outra atividade intelectual no país) é de esquerda: quase ninguém conhece a bibliografia "liberal-conservative" entre nós, porque a esquerda mantém uma poderosa reserva de mercado na vida intelectual pública no país, inclusive tornando um inferno a vida na universidade para jovens interessados neste tipo de bibliografia.
Esta reserva de mercado intelectual e ideológica inviabiliza pesquisas e trabalhos mesmo em sala de aula. Isso faz dos jovens intelectuais interessados nessa tradição uns fantasmas invisíveis, verdadeiras almas penadas, sem corpo institucional para atuarem. Mesmos os centros financiados por bancos investem apenas na bibliografia de esquerda.
Como toda visão política, os conservadores são diferentes entre si e nem sempre convivem bem com seus pares, principalmente quando saímos do livro e vamos para política partidária. Imagine alguém de uma esquerda "islandesa" sendo obrigado a engolir Pol Pot em seu clube intelectual.
O pensamento "liberal-conservative" se caracteriza por defender a sociedade de livre mercado, a propriedade privada, a liberdade de expressão e religiosa, pluralismo moral, a democracia representativa com "corpos médios" locais atuantes, uma educação meritocrática, emancipação feminina, tributação alta para grandes heranças, desoneração da classe trabalhadora, profissionais liberais e pequenos e médios empresários, Estado mínimo necessário (inclusive porque isso diminui a corrupção), saúde eficaz para a população.
E, não esqueçamos: opção liberal quanto à vida moral, cada um faz o que quiser na vida privada contanto que respeite a lei, e esta deve levar em conta esta liberdade privada.
Simplesmente não existe opção partidária no Brasil para quem pensa dessa forma. Por exemplo, dizer que os conservadores queimam bandeiras do movimento negro é uma piada. Isso deve fazer Joaquim Nabuco tremer em seu túmulo, já que ele, conservador, foi um dos principais intelectuais e defensores da abolição da escravatura no Brasil.
E aí voltamos à camisa do Feliciano. Ele não representa os conservadores no Brasil, a começar porque é alguém que mistura religião com política.
Deixe-me esclarecer uma coisa (vou usar um tema "clichê"): sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay.
E aí, esquerda: vamos conversar? Vamos parar de se xingar e sentar numa távola redonda e discutir o Brasil?
terça-feira, 16 de julho de 2013
O rosto da adúltera de Jesus - Pondé
Então, Jesus foi abordado por um grupo de pessoas muito preocupadas com a retidão da lei. Traziam consigo uma mulher em prantos que havia sido pega em adultério. Jogada ao chão, ela tremia de medo. O povo pedia para que Jesus fizesse valer a lei: morte da adúltera por apedrejamento.
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um "direito da soberania popular revolucionária", enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, "cojones". Jesus disse que quem tivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o "regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.
O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia "soberana", como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo.
Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu "A Cicatriz de Ulisses", parte da coletânea "Mímesis", reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.
Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo Agostinho com suas "Confissões" faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o "mago do norte", ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.
Isso foi há 2.000 anos, mas ainda hoje, no mesmo Oriente Médio, tem gente que apedreja mulheres e acha (agora, no Egito) que violentá-las nas praças seja um "direito da soberania popular revolucionária", enquanto se matam, nas mesmas praças, pelo modo ocidental de vida ou por outra forma de lei (o fundamentalismo islamita).
E assim caminha a humanidade, em ciclos, para lugar nenhum, mas com festas e crenças diferentes no meio, e demagogos a cantar...
Mas voltemos a Jesus. Fatos como esses me fazem achar que Jesus era um cabra macho. Enfrentar o povo quando este se julga movido pelo correto modo de viver é algo que exige, como dizem los hermanos, "cojones". Jesus disse que quem tivesse livre de pecado que atirasse a primeira pedra. Todos foram embora.
Esta é uma das passagens típicas do mundo bíblico na qual fica claro o tema da hipocrisia como motivação profunda daqueles que se acham arautos do bem, moral ou político.
Mas Jesus era um filósofo hebreu e estes filósofos eram diferentes dos filósofos gregos. O mundo bíblico é diferente da filosofia grega. Naquele, o "regime da verdade" (ou modo de busca da verdade) é interno e moral, na filosofia grega é externo e político.
O problema de saber se o que eu digo é verdade ou não, quando falo ou argumento, inexiste na Bíblia, porque o personagem principal do diálogo é Deus, e Ele sempre sabe de tudo, não há como mentir para Ele como há como mentir para outro homem ou para assembleia "soberana", como na filosofia ou democracia gregas. Segundo o crítico George Steiner, o Deus de Israel irrita porque está em toda parte e sabe de tudo.
Sabe-se que o advento da democracia grega levou muita gente a pensar sobre a diferença entre pura retórica, que visa o mero convencimento dos outros numa assembleia (eu acho que a democracia é 90% isso mesmo), e a verdade em si do que se fala.
O problema que nasce daí é a relatividade da verdade, dependendo do ponto de vista de quem fala e de quem ouve. Na Bíblia, o problema é se minto para mim mesmo ou não. Na esfera pública, é o tema da hipocrisia, na privada, o da verdade interior. A Bíblia criou o sujeito e as bases da psicologia profunda.
Na Bíblia, como o poder é sempre de Deus e ele é mais íntimo de mim do que sou de mim mesmo, o problema é como eu enfrento a mim mesmo. A preocupação com a lei é sempre acompanhada da atenção para com a falsidade de quem diz ser justo.
Por isso foram os hebreus que deram os primeiros passos para a descoberta do espaço interior onde vejo a distância entre mim e a verdade sobre mim mesmo, em vez de me preocupar com a verdade política, sofro com a mentira moral.
O crítico Erich Auerbach, no seu "A Cicatriz de Ulisses", parte da coletânea "Mímesis", reconhece este traço do texto hebraico: a relação de atenção e agonia entre Deus e seus eleitos molda o herói bíblico, dando a ele um rosto marcado por uma tensão moral.
Ainda na Bíblia hebraica, o rei David, o preferido de Deus, em seus belos "Salmos", O encanta justamente porque expõe seu coração sem qualquer tentativa de mentir para si mesmo.
Santo Agostinho com suas "Confissões" faz eco a David. A literatura monástica e mística medievais cultivou este espaço até seu ressurgimento no século 19 no pietismo alemão de gente como J.G. Hamann, o "mago do norte", ancestral direto do romantismo. Do romantismo e seu epicentro na verdade interior do sujeito, chegamos à psicologia profunda e à psicanálise.
A filosofia hebraica funda regimes de verdade que leva o sujeito a olhar para si mesmo ao invés de olhar para os outros. Em vez de cultivar uma filosofia política, ela cultiva uma filosofia moral da vida interior na qual não é barulho da assembleia que importa, mas o silêncio no qual os demônios desvelam nossa própria face.
No divã de Lucien Freud - J.P. Coutinho
O MASP tem exposição de Lucian Freud até 13 de outubro. Inveja dos paulistanos. E boas memórias.
Devo ter almoçado com Lucian Freud, neto de Sigmund, meia dúzia de vezes na vida. Almoçar no mesmo espaço, entenda-se, não na mesma mesa. Acontecia no Wolseley, um restaurante londrino em Piccadilly, que piorou drasticamente nos últimos tempos. Mas divago.
Freud almoçava quase sempre sozinho --figura pequena, escanzelada, a lembrar Samuel Beckett nas fotos de Cartier-Bresson-- e, sempre que o via, pensava: vou puxar conversa. Como estudante de história da arte, achava que tinha um bom álibi. Nunca tive coragem e Freud morreu em 2011.
Um dos maiores pintores do nosso tempo? Assino embaixo. E, se não posso ir a São Paulo ver a exposição, pelo menos leio sobre o bicho.
A melhor introdução à obra de Freud foi escrita por Martin Gayford em livro singular: "Man with a Blue Scarf: On Sitting for a Portrait by Lucian Freud".
Gayford, crítico de arte, foi modelo durante um ano e meio para dois retratos do mestre. Escreveu um diário a respeito, embora fosse mais correto dizer "um retrato a respeito". Enquanto Freud o pintava (com tintas), Gayford pintava Freud (com palavras).
Encontramos de tudo. As paixões de Freud em arte e literatura (anote: Ingres, Ticiano, Henry James, Thomas Hardy). Os ódios sulfúricos (Leonardo, Rafael e, sobretudo, Dante Gabriel Rossetti, "o mais próximo que a pintura chegou do mau hálito").
E, sobre política, a velha máxima anarquista: "Nunca devemos votar em ninguém que não conhecemos pessoalmente". Touché.
Depois, os hábitos de trabalho: intransigência na pontualidade dos modelos; esforço físico descomunal (aos 80, Freud pintava de pé, durante horas e horas); composição lenta; resultados dúbios. Era frequente Freud abandonar um retrato depois de meses de trabalho. Martin Gayford pergunta, repetidas vezes, nas páginas do diário: será que isso vai acontecer comigo?
Não aconteceu: no final da odisseia, o retrato lá está. E, quando o modelo se confronta com ele, há uma estranheza inicial que se dissolve no reconhecimento essencial. Aquele não sou eu. Aquele só posso ser eu.
Eis o fundamental da arte de Freud. Críticos preguiçosos dirão que Freud, tal como o seu amigo Francis Bacon, prolonga a lição de Van Gogh: a realidade não existe; o que existe é a carga dramática, e pessoalíssima, com que eu represento a realidade.
Errado. Isso pode ser válido para Bacon. Não é válido para Freud. "Imaginação é ver as coisas como elas realmente são", dizia ele. Tradução: Freud só reinventou a arte figurativa não porque plasmou no mundo os seus estados de espírito, mas porque procurou fixar na tela os estados de espírito do mundo.
Por isso era recorrente a sensação paradoxal de estranheza e reconhecimento quando os modelos viam o produto final. Martin Gayford explica o mistério: porque nós nunca sabemos como somos realmente.
Isso pode soar estranho, sobretudo quando vivemos saturados na orgia fotográfica e narcísica de nós próprios. O problema é que, em filmes, fotos ou ao espelho, nós estamos continuamente a fingir, a representar, a recriar.
E quando não estamos, o filme, a foto ou o reflexo apenas nos devolvem uma ínfima parcela do que somos: a imagem naquele momento, com aquele ânimo, naquela fase do nosso envelhecimento.
Tal não acontece nos retratos de Freud. Durante horas, durante meses, o modelo deita-se no divã do pintor. E este vai perscrutando todas as expressões, todos os momentos de serenidade, inquietude, alegria, cansaço, tristeza. É a totalidade do que somos que interessa nos retratos de Freud, não a nossa fugaz impermanência.
Não admira que o momento mais angustiante do processo aconteça na finalização do quadro. Gayford, uma vez mais, explica: em literatura, um final mediano pode não ser mortal; o leitor já conviveu, página após página, com as flutuações inevitáveis da "loucura da arte" de que falava Henry James.
Mas, no quadro, não há página após página. A forma como o pintor finaliza a obra representa a única página que leremos.
E, no retrato de Martin Gayford, é uma página feita de ironia, melancolia -e com um toque de loucura. "Faz sentido", escreve o próprio sobre o próprio.
Devo ter almoçado com Lucian Freud, neto de Sigmund, meia dúzia de vezes na vida. Almoçar no mesmo espaço, entenda-se, não na mesma mesa. Acontecia no Wolseley, um restaurante londrino em Piccadilly, que piorou drasticamente nos últimos tempos. Mas divago.
Freud almoçava quase sempre sozinho --figura pequena, escanzelada, a lembrar Samuel Beckett nas fotos de Cartier-Bresson-- e, sempre que o via, pensava: vou puxar conversa. Como estudante de história da arte, achava que tinha um bom álibi. Nunca tive coragem e Freud morreu em 2011.
Um dos maiores pintores do nosso tempo? Assino embaixo. E, se não posso ir a São Paulo ver a exposição, pelo menos leio sobre o bicho.
A melhor introdução à obra de Freud foi escrita por Martin Gayford em livro singular: "Man with a Blue Scarf: On Sitting for a Portrait by Lucian Freud".
Gayford, crítico de arte, foi modelo durante um ano e meio para dois retratos do mestre. Escreveu um diário a respeito, embora fosse mais correto dizer "um retrato a respeito". Enquanto Freud o pintava (com tintas), Gayford pintava Freud (com palavras).
Encontramos de tudo. As paixões de Freud em arte e literatura (anote: Ingres, Ticiano, Henry James, Thomas Hardy). Os ódios sulfúricos (Leonardo, Rafael e, sobretudo, Dante Gabriel Rossetti, "o mais próximo que a pintura chegou do mau hálito").
E, sobre política, a velha máxima anarquista: "Nunca devemos votar em ninguém que não conhecemos pessoalmente". Touché.
Depois, os hábitos de trabalho: intransigência na pontualidade dos modelos; esforço físico descomunal (aos 80, Freud pintava de pé, durante horas e horas); composição lenta; resultados dúbios. Era frequente Freud abandonar um retrato depois de meses de trabalho. Martin Gayford pergunta, repetidas vezes, nas páginas do diário: será que isso vai acontecer comigo?
Não aconteceu: no final da odisseia, o retrato lá está. E, quando o modelo se confronta com ele, há uma estranheza inicial que se dissolve no reconhecimento essencial. Aquele não sou eu. Aquele só posso ser eu.
Eis o fundamental da arte de Freud. Críticos preguiçosos dirão que Freud, tal como o seu amigo Francis Bacon, prolonga a lição de Van Gogh: a realidade não existe; o que existe é a carga dramática, e pessoalíssima, com que eu represento a realidade.
Errado. Isso pode ser válido para Bacon. Não é válido para Freud. "Imaginação é ver as coisas como elas realmente são", dizia ele. Tradução: Freud só reinventou a arte figurativa não porque plasmou no mundo os seus estados de espírito, mas porque procurou fixar na tela os estados de espírito do mundo.
Por isso era recorrente a sensação paradoxal de estranheza e reconhecimento quando os modelos viam o produto final. Martin Gayford explica o mistério: porque nós nunca sabemos como somos realmente.
Isso pode soar estranho, sobretudo quando vivemos saturados na orgia fotográfica e narcísica de nós próprios. O problema é que, em filmes, fotos ou ao espelho, nós estamos continuamente a fingir, a representar, a recriar.
E quando não estamos, o filme, a foto ou o reflexo apenas nos devolvem uma ínfima parcela do que somos: a imagem naquele momento, com aquele ânimo, naquela fase do nosso envelhecimento.
Tal não acontece nos retratos de Freud. Durante horas, durante meses, o modelo deita-se no divã do pintor. E este vai perscrutando todas as expressões, todos os momentos de serenidade, inquietude, alegria, cansaço, tristeza. É a totalidade do que somos que interessa nos retratos de Freud, não a nossa fugaz impermanência.
Não admira que o momento mais angustiante do processo aconteça na finalização do quadro. Gayford, uma vez mais, explica: em literatura, um final mediano pode não ser mortal; o leitor já conviveu, página após página, com as flutuações inevitáveis da "loucura da arte" de que falava Henry James.
Mas, no quadro, não há página após página. A forma como o pintor finaliza a obra representa a única página que leremos.
E, no retrato de Martin Gayford, é uma página feita de ironia, melancolia -e com um toque de loucura. "Faz sentido", escreve o próprio sobre o próprio.
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