segunda-feira, 4 de maio de 2015

Viver para contar - Coutinho

Tenho um amigo paulistano, divertidíssimo, que tem medo de voar. Teoria dele: "Os pilotos são humanos, certo?". Certo, camarada. "Então eles não são diferentes de mim ou de você."

Tradução: eles bebem, ressacam; medicam-se, intoxicam-se; têm desgostos amorosos, pensamentos suicidas. Ou, para não sermos tão dramáticos, noites mal dormidas. "Como é possível entrar num avião quando o mestre de cerimônias é uma besta como eu?"

Durante uns tempos, tentei argumentar contra. Voar é seguro. O número de acidentes aéreos é diminuto. O fator humano não é tudo.

Sem sucesso. Ele prefere dirigir –ou viajar de barco– a furar a estratosfera com ataques de ansiedade que só horrorizam os passageiros. Eu?

Mantenho a minha posição a respeito e até gosto de planar sobre o mundo, pelos menos enquanto os celulares estiverem proibidos a bordo. O único problema é que o meu amigo, quando acerta, acerta barbaramente.

Leio os relatos sobre a tragédia do voo da Germanwings. E leio as informações disponíveis sobre a saúde mental do copiloto.

Alguns fatos: deprimido; fortemente medicado; com problemas de visão –orgânicos? psicossomáticos?– que seriam o fim de uma carreira tão intensamente desejada. E, perante essa certeza, ele próprio apressou o fim, levando 149 pessoas atrás.

O mundo está abismado. E pergunta como é possível a doença instalar-se tão completamente na cabeça de um sujeito, fazendo do suicídio e do homicídio uma combinação letal.

Um livro talvez ajude na discussão. Intitula-se "The Utopia Experiment" (Picador, 274 págs.), foi escrito por Dylan Evans e, sem exagero, é a melhor colheita que li neste inverno inglês.

Até porque as minhas expectativas eram outras: quando farejei as críticas, imaginei um livro cômico sobre um excêntrico que resolve fundar uma comunidade utópica na Escócia –e, "hélas", termina os dias no manicômio.

O enredo é precisamente esse. O tom, admito, tem momentos de comédia pura. Mas o livro é, sobretudo, a descrição pessoal, e verdadeira, e verdadeiramente pungente, de uma viagem à terra da loucura.

Tudo começa em 2005, quando Evans visita o México e as ruínas da civilização maia. Um pensamento melancólico estremece os seus neurônios, como um vento gélido vindo de lugar nenhum: e se um dia a nossa civilização também deixar de existir? Seremos capazes de sobreviver entregues ao nosso destino?

Escrevi "pensamento melancólico", mas a palavra "tumor" seria mais apropriada: a obsessão com o apocalipse começa a devorar a cabeça de Evans, um doutor em filosofia com carreira respeitável em empresa de robótica.

Nada mais parece interessar, exceto fazer a experiência utópica: publicar um anúncio virtual para chamar voluntários, partir para as terras desérticas da Escócia e viver 18 meses em estado pós-apocalítico.

Os voluntários aparecem –uma fauna que arranca as melhores gargalhadas da obra. E Evans, feliz como nunca, despede-se de tudo: da família, dos amigos, da carreira, da casa. Da civilização, enfim.

Não vou contar o que se passa na Escócia quando, afastado do mundo, Dylan Evans descobre que a sua utopia se transforma lentamente em distopia. O interesse do livro não está na decadência exterior. O fundamental está na desagregação interior do próprio Evans, que é salvo "in extremis" pela mesma civilização que ele desejou abandonar.

"The Utopia Experiment" não é apenas um testemunho de como Hobbes, na descrição dantesca do "estado da natureza", estava mais certo que Rousseau. O livro é também uma lição de sobrevivência: não da sobrevivência física em cenários pós-apocalíticos; mas da sobrevivência mental quando as nossas utopias, quaisquer que elas sejam, se convertem em ruínas.

Lendo sobre o copiloto alemão, entendemos que uma utopia nas nuvens era tudo que interessava. E que o fim dessa utopia, por doença ou coisa pior, despertou nele os instintos destrutivos e autodestrutivos que são típicos do pensamento utópico.

Tivesse Andreas Lubitz lido a experiência de Dylan Evans e –quem sabe?– talvez o infeliz tivesse aprendido que a única utopia que devemos ter é a ambição mais modesta de falhar e, apesar de tudo, viver ainda para contar. 

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