segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Falta de grana mata o amor porque ele perece diante da falta de horizontes



Afeto tem preço? Sim, tem. E, enquanto você não descobriu o seu preço, ainda não pensou a fundo no tema.

Algum tempo atrás, nesta coluna, escrevi que hoje em dia é difícil saber separar afeto de grana (referia-me especificamente ao amor entre pais e filhos, mas o tema vai além disso, tocando o amor romântico também). Recebi alguns e-mails de leitoras revoltadas dizendo que era um absurdo eu não ser capaz de separar amor e grana. Eu já acho o contrário. Enquanto não pensarmos claramente no quanto amor e grana se misturam, não veremos nenhuma fronteira entre os dois.
Em nossa época, mentiras viraram moeda de troca no mercado do pensamento público. Agradar aos outros é métrica de valor. Eu não jogo esse jogo.
Devemos escapar da armadilha comum de pensar que assumir um preço para o afeto implica ser uma pessoa interesseira. Claro que esse caso óbvio também existe. Penso em pessoas motivadas pelo afeto mesmo e que, tristemente, às vezes, se batem com o limite material delas. Não era outra coisa que o grande Nelson Rodrigues tinha em mente quando dizia que dinheiro compra até amor verdadeiro.
O fato é que grana é um potencializador da vida. Com ela você pode criar um ambiente no qual confiança, bem-estar e um forte sentimento de muitas perspectivas se abrem diante de você. Onde bons sentimentos nascem? Num final de semana prolongado em Roma ou no trânsito de oito horas para Praia Grande?
Grana cria horizontes no quais você se desenvolve e pode sonhar com melhores modelos de você mesmo. Grana dá a você a chance de ser generoso, ousado, seguro de si mesmo. No caso das meninas se dá a mesma coisa.
Acrescentaria que no caso das meninas existe também um delicado sentimento (às vezes enterrado no mais fundo do cotidiano) de que, se alguém te dá uma bijuteria no lugar de uma joia, você se sente uma bijuteria, e não uma joia. E, em alguma medida, com razão. Porque o preço de uma joia representa o valor investido na mulher para quem você dá essa joia.
Homens, que na maioria das vezes ganham mais e são mais escravos da obrigação do sucesso material, se sentem investidos de amor pela mulher quando ela demonstra serem eles a sua prioridade. Quando ela reconhece potência em tudo o que eles fazem –o que não significa só ganhar dinheiro.
Falta de grana mata o amor porque ele perece diante da falta de horizontes. Do sentimento de que a vida está acabada naquela fórmula pobre de ser. Num cotidiano em que a rotina é sempre a da falta de liberdade de escolha. A dificuldade de enxergar isso torna ainda mais o afeto dependente da grana. A mentira sobre isso torna o amor ainda mais barato porque mais indefeso diante das contingências do dia a dia.
Quer outro exemplo? Você se casa com um cara que tem uma ex-mulher. Se ele der muita atenção para ela e se preocupar muito em deixá-la "bem materialmente" mesmo depois da separação, você vai, sim, achar que ele ainda a ama. Não minta sobre isso só pra ficar bem com o marketing do bem, que deixa o mundo ainda mais cretino do que ele já é normalmente.
O caso do amor entre pais e filhos não é tão diferente, apesar de depender mais da classe social e da cultura do país. No Brasil, da classe média alta pra cima, se você não der um apartamento para cada filho, fracassou como pai.
Imagine que seu pai deixou sua mãe por uma mulher 20 anos mais nova do que ele, e que ele teve um filho com ela. Sei, sei, dizem por aí que todos os jovens tiram isso de letra hoje, mas isso é, também, uma mentira do marketing do bem.
Agora imagine que ele nega para você uma viagem para Paris nas férias, mas faz um lindo quarto de bebê com todas as frescuras que sua nova jovem mulher pede. Quando encontra com você, só fala do novo "irmãozinho". Que tal?
Invertamos a situação. Imagine que você dedicou 40 anos da sua vida para seu filho. Imagine que agora ele é bem-sucedido profissionalmente, mas deixa você viver numa casa de repouso miserável paga com sua aposentadoria.

Onde está a fronteira entre amor e grana aí? Em Roma ou Praia Grande?

domingo, 22 de janeiro de 2017

A Chegada - o fardo do tempo

O filme A Chegada (2016, Dennis Villeneuve) foi para mim um dos melhores rebentos de 2016. O enredo que, em princípio, poderia fazer a cabeça dos amantes de ficção científica - e somente isso - vai maravilhosamente além das expectativas.
Quando 12 naves extraterrestres pousam em diferentes locais do mundo ao mesmo tempo, o que nos resta? A resposta de Villeneuve: nos resta a linguagem, a comunicação. Nada mais difícil do que essa tarefa, a de entender e nos fazer entender.
Uma linguista (Amy Adams) é chamada para a árdua tarefa de fazer a comunicação homem-alienígena, e tem a ajuda de um físico (Jeremy Renner), que logo de cara anuncia que mais importante que a conversa, é a ciência. E logo então se pode inferir que um será o complemento perfeito do outro nessa relação: humana e exata ao mesmo tempo.
Mas para além da ficção científica e dos aliens - que passam a se comunicar diretamente com a linguista - há no enredo uma delicada relação do homem com outro extraterrestre: o tempo.
O tempo é o personagem mais importante dessa trama. Explico: Louise, a linguista, recebe um presente dos aliens, que entenderá apenas nos momentos finais do filme. Os ets (chamados de heptapodes) afirmam que Louise tem a arma para resolver qualquer questão humana importante: o domínio sobre o presente, o passado e o futuro, ou seja, o conhecimento completo do tempo.  E é aqui  que surge um dos conceitos mais fascinantes que Villeneuve parece propor: se você soubesse exatamente o que seria da sua vida, do começo ao fim, a viveria ainda assim? Eis a questão que um dos mais conhecidos filósofos indagou; Nietzsche com seu eterno retorno nos propõe o seguinte, em Gaia Ciência:


E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!’.

– Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela”.

Viveria essa vida, a mesma, da mesma forma, de novo e de novo e de novo? Essa é uma questão que não ouso responder. Mas Villeneuve responde a Nietzsche através de Louise. Com o que há de melhor e mais dolorido, dominando o tempo e a linguagem, a personagem aceita o fardo que só o tempo nos traz.





quarta-feira, 7 de setembro de 2016

"A Morte de Ivan Ilitch"de Tolstói, revela as mentiras da existência - J.P. Coutinho

Amigo leitor: peço desculpa pelo uso abusivo da palavra. Eu não sou seu amigo. Nem você é meu. Não nos conhecemos e, francamente, melhor assim. Eu escrevo e, com sorte, alguém lê desse lado. É uma troca justa. E basta.

Aliás, por falar em amigos, quantos você tem? Cinco? Dez? Vinte? Melhor cortar o número para metade. Tempos atrás, li um estudo sobre as nossas falsas percepções sobre os amigos. E parece que só metade das amizades que julgamos sólidas são recíprocas. Na outra metade estão pessoas que não pensam em nós, pensam pouco ou até pensam mal.

Essas conclusões não me espantam. Experiência cotidiana: alguém fala que encontrou o personagem X e ele, eufórico, falou de mim como "grande amigo".
Disfarço, por gentileza. Mas, se fizesse uma lista com as cem pessoas que passaram pela minha vida –da família mais próxima ao homem que me vendeu os jornais meia hora atrás–, o personagem X não estaria presente.

Aqui entre nós, quem é o personagem X? E, já agora, por que motivo tendemos a inflacionar o número de amigos que julgamos ter?

Fato: o conceito de "amizade" tornou-se uma caricatura, sobretudo quando é possível colecionar centenas ou milhares de "amigos virtuais" no mundo virtual. O pessoal confunde as coisas e julga que um "like" é uma jura de amor eterno.

Mas as conclusões do estudo também não me espantam por causa de um livro publicado há precisamente 130 anos. O autor é Lev Tolstói (1828-1910) e o título é "A Morte de Ivan Ilitch".

Primeira confissão: "A Morte de Ivan Ilitch" sempre me pareceu um erro. "A Vida de Ivan Ilitch" seria a titulatura mais apropriada porque é de vida, e não de morte, que Tolstói nos fala.

Sim, superficialmente, temos um homem que adoece com gravidade e que caminha para o seu cadafalso com a angústia e o ressentimento dos condenados.

Mas a novela de Tolstói é uma meditação avassaladora sobre as mentiras da existência "comme il faut".

A expressão francesa é usada e abusada pelo narrador com propósitos irônicos, mas também descritivos. Ivan Ilitch era a promessa da família –e a promessa se cumpriu.

Estudou, formou-se, tornou-se funcionário judicial de sucesso. E procurou sempre uma vida "comme il faut" que estivesse à altura dos gostos da plateia. Teve um casamento "comme il faut"; uma casa "comme il faut"; uma carreira de magistrado "comme il faut".

E, quando a harmonia doméstica começou a ruir, Ivan Ilitch resolveu o assunto "comme il faut": casou-se com o trabalho e transformou a mulher em "hobby" suportável.

É perante esta gloriosa encenação que a morte surge como elemento dissonante –ou, se preferirmos, "pas comme il faut". Ivan analisa a dor da enfermidade como se aquilo fosse um elemento estranho, injusto, "fora do lugar". Nega a sua condição (morrer, eu?) e, quando a enfrenta, é devorado por um terror gélido ("sim, eu").

Nas mãos de um escritor banal, a doença serviria para mostrar a Ivan Ilitch que as medalhas que ostentamos ao peito não nos protegem do fim inevitável e blá-blá-blá.

Para um monstro como Tolstói, a morte de Ivan Ilitch é a "via dolorosa" da sua salvação. Porque é a morte que permitirá ao personagem olhar para os outros e para ele próprio sem viciar "o fundo insubornável do ser" de que falava o filósofo Ortega y Gasset.

É, enfim, uma visão límpida e aterradora. A mulher e a filha, cansadas da agonia de Ivan, consideram-no um estorvo, um repulsivo estorvo que a morte tarda em levar.

E, quando recorda a sua vida, é na infância, e apenas na infância, que Ivan Ilitch encontra uma felicidade autêntica e sem sombra. A conclusão é trágica e, ao mesmo tempo, libertadora: enquanto subia aos olhos dos outros ("comme il faut"), Ivan Ilitch descia rumo ao naufrágio.

É esse naufrágio, essa falsificação espiritual que encontramos nos "amigos" de Ivan quando sabem da notícia da morte. Uns pensam nas suas carreiras (quem ocupará o lugar do defunto? haverá promoções?). Outros sentem alívio ("foi ele, não fui eu"). E todos suspiram com as obrigações sociais entediantes (ir ao funeral, consolar a viúva etc.). "The show must go on."

Amigos? Temos dezenas, centenas, milhares. E assim continuaremos –autoiludidos e autocentrados– até chegarmos ao leito derradeiro onde estarão poucos ou ninguém

Uma coisa me chama a atenção nos tais jovens críticos: sua intolerância - Pondé


Nosso mundo contemporâneo é cheio de fetiches sobre seu próprio avanço em relação ao passado. Hoje vou dar dois exemplos de fetiches típicos. O primeiro a ver com a ideia de crítica e de pessoas críticas. O segundo a ver com a ideia de revolução, mais precisamente a revolução sexual.

O primeiro fetiche proponho chamarmos de fetiche da crítica. Este é um dos mais comuns e mais bobos do mundo contemporâneo. Nunca vi gente mais longe de qualquer pensamento que valha a pena do que gente "crítica". Não conheço gente mais chata do que gente "crítica".
O fetiche da crítica aparece muito associado à educação, à arte e à cultura. Você pode ouvir gente falando dele em todo lugar em que muita gente se reúna para pensar a educação, a arte e a cultura.

Como fazer um aluno crítico? Como criar uma arte crítica? Como produzir uma cultura crítica? Minha primeira aposta é que, se você perguntar diretamente para um desses defensores de uma educação crítica, de uma arte crítica e de uma cultura crítica o que é ser crítico, ele vai responder mostrando uma selfie dele numa manifestação na Paulista.

Eu vou dizer para você uma coisa: não conheço aluno mais fechado ao diálogo do que alunos que se consideram críticos. Ser "crítico" nesse caso, basicamente, significa falar mal do capitalismo, do patriarcalismo e dos EUA. Uma banalidade que se ensina em qualquer aula barata de filosofia e sociologia.

Mas uma coisa me chama a atenção nos tais jovens críticos: sua intolerância. Torquemada ficaria com complexo de inferioridade. Não conte com nenhuma autocrítica em gente crítica. Normalmente lê pouco, é afogado em certeza banais do tipo "o mundo seria melhor se fosse como eu descrevi em minha tese", e tem pouco afeto pelo estudo profundo de qualquer coisa.

Aí vai uma característica chocante em gente crítica: não gosta de estudar de fato. Quando fala, fala a partir de uma posição inquestionável. Acho que o motivo dessa atitude é justamente aquele tipo de ignorância marcante em quem conhece pouco de qualquer coisa. Por isso, acho mais importante procurarmos levar um aluno a entender o que um texto quer dizer simplesmente e não levá-lo a ser "crítico". Antes de tudo, podemos perguntar: crítico do que, se, normalmente, mesmo os professores não são críticos de nada a não ser daquilo de que não gostam?

Portanto temo pela educação, pela arte e pela cultura quando se busca formar críticos. O fetiche os leva ao gozo porque, usando essa palavra "crítica", você pode dizer qualquer banalidade que ela soa ungida pelo véu da inteligência.

De minha parte, acho que devemos evitar a palavra "crítica" da mesma forma que devemos evitar palavras como "cabala" ou "energia". Em si, as duas são coisas sérias, mas, no mundo do fetiche da informação como o nosso, as duas não significam muito mais do que palavras vazias de sentido.

Outro fetiche é o da revolução. Toda pessoa crítica faz uma revolução por fim de semana. Mas, entre todas, a mais ridícula é a revolução sexual, aquela que matou o desejo e o afeto entre homens e mulheres. Quando, no futuro, estudarem nossa época, perceberão que, entre as baixas causadas pela gente crítica, estarão o afeto e o desejo. Nunca ambos foram tão falados e tão combatidos a pauladas. Afogados na banalidade das quantidades.

Vejo mesmo uma manifestação de gente crítica e revolucionária na Paulista no futuro. Essa manifestação que tenho na cabeça acontecerá em poucos anos. Se focarmos melhor nossas câmeras, veremos alguns cartazes, claro, todos revolucionários. Perguntará o leitor ingênuo: "A favor do que ou contra o quê?" Gente crítica e revolucionária sempre é a favor de algo ou contra algo.

Alguns desses cartazes dirão frases assim: "Pelo incesto como forma de crítica sexual!", "Por que não posso amar a minha mãe sexualmente?", "Freud morreu: viva o incesto como forma plena do desejo antiedípico!". Teses pelo mundo afora discutirão a nova forma de amor livre: o direito ao incesto.

E, no meio dos cartazes, um outro: "Pelo direito de casar com o meu dobermann!".

segunda-feira, 15 de agosto de 2016

A canalhice honesta é uma arte moral acessível somente para almas sinceras - Pondé



Você sabe o que é um canalha honesto? Um canalha honesto é alguém que diz para você que as reuniões na casa dele para discutir filosofia é para pegar mulher. Ou que aprendeu a cozinhar para pegar mulher. Um canalha desonesto é um canalha que diz que de fato a filosofia é importante para ele ou que cozinhar o faz se sentir mais autônomo na vida.

A arte da desonestidade na canalhice pode ir longe ao ponto de você dizer que é de fato feminista, e não que ser feminista num homem pode ajudá-lo a pegar mulher –o que eu, pessoalmente, duvido que tenha sucesso de fato.

O personagem Palhares, do Nelson Rodrigues, era o canalha honesto. Era marxista para pegar mulher, depois se converteu à psicanálise, ao nudismo, à maconha, a Jesus. E Nelson dizia que um dia haveríamos de ter saudade do Palhares. Mais uma vez nosso sábio acertou em sua previsão. Segundo Nelson, nem a canalhice estaria a salvo da má-fé que se instalaria no seio da cultura ocidental.
Pois bem, e aí chegamos a uma conversa que tive há alguns dias sobre essa canalhice desonesta chamada poliamor. O primeiro traço de canalhice desonesta é quando o agente da ação diz que faz X porque ele evoluiu para tal. No caso do poliamor, para uma forma de amor coletivo e sem ciúmes. Toda pessoa que se diz segura é um canalha desonesto. Como se sabe, toda virtude verdadeira é silenciosa.

Em nossa conversa, o poliamor era apresentado como uma condição em que você pode dividir pessoas amorosamente e sexualmente com outras pessoas e tudo bem.

Veja bem: sempre existiu gente que gosta de sacanagem coletiva. Entendo que um canalha honesto tente convencer a namorada ou mulher a aceitar que uma colega da faculdade ou do trabalho venha passar um final de semana em Gonçalves com eles. E, que, em dado momento, tente fazer com que as duas se peguem. Um sonho clássico de consumo de canalhas honestos (ou, simplesmente, de homens honestos) é ver duas minas se pegando.

Entendo também que mulheres honestas fantasiem com dois caras comendo elas ao mesmo tempo. A canalhice honesta é uma arte moral acessível somente para almas sinceras.

Uma comparação comum que se faz com o poliamor é com a prática do harém. Ao ouvir essa comparação outro dia, subiu à minha alma uma grande indignação!

Eu disse de forma veemente: "Pare por aí! Num harém, as mulheres competiam e se matavam. Matavam os filhos homens umas das outras, com medo de que uma delas se tornasse muito poderosa por ter dado um filho varão para o Sultão. Era um inferno de traições". Inclusive se comiam umas as outras por desespero e solidão confessa (coisa hoje que muita gente não ousa confessar que seja o motor de muita mulher comendo umas as outras, em todas as idades).

Tomado por indignação e pela certeza de que, ao compararmos o poliamor com um harém, faltamos com respeito para com todas aquelas mulheres, muitas vezes infelizes (uma das maiores cretinices de nossa época é a falta de respeito para com a infelicidade), continuei de forma apaixonada: "Aquelas mulheres competiam e se matavam, por isso mesmo eram gente séria e digna! Merecem nosso respeito!".

Imagino que muita gente ao me ouvir dizer isso não me entenda plenamente. Como assim, gente que compete e se mata é gente digna e merece nosso respeito?

A vida digna é imersa em sangue, beleza e sofrimento. O maior engano contemporâneo com relação a qualquer forma verdadeira de ética e virtude é algo que os antigos (gente muito mais séria do que nós) sempre souberam, incluindo Aristóteles em sua filosofia das virtudes conhecida como "Ética a Nicômaco": a virtude só nasce num terreno que lhe é hostil. Qualquer outra afirmação sobre virtude é falsa.

A honestidade do canalha Palhares do Nelson nasceu no momento em que ele confessou que agarrou a cunhada mais jovem na saída do banheiro por puro desespero: a beleza dela era maior do que qualquer risco de ser pego no meio do crime.

A desonestidade do poliamor nasce da sua demanda de garantia de não sofrimento. Um harém era um lugar de agonia, e virtudes são filhas da agonia.

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

Dúvida sobre morrer de culpa ou tristeza divide estética e moral - Pondé


Muita gente pensa que filósofo é "racional". Tem muito filósofo assim mesmo. Que acredita nas ideias. Mas nem sempre é assim. Para mim, as ideias seguem as taras e as emoções, se acomodam a elas, que fazem o que podem para sobreviver num mundo muitas vezes hostil aos sentimentos. Penso, como os românticos, que o centro da vida são os afetos.

Dias atrás, uma amiga me pôs uma questão de ordem moral muito instigante: do que eu preferiria morrer? De tristeza ou de culpa? Proponho a você a mesma indagação. Qual seria, entre as duas, a pior forma de morrer (ou viver)?

Caso fosse dada a você a necessidade imperativa de fazer uma escolha desta ordem, morrer de tristeza ou morrer de culpa, qual você escolheria? Não tenha pressa em responder. Afinal, nas duas alternativas está a palavra "morrer", palavra esta que exige cuidado ao ser manipulada. Nessa questão está pressuposta a escolha entre dois males (como me dizia outra amiga dias atrás).

As duas alternativas transitam pelo que na filosofia chamaríamos de experiência estética e moral. Estética em filosofia não significa a priori algo a ver com a arte, mas com as sensações por conta da palavra grega "aesthesis" ser traduzida por sensações ("anestesia" significa perda das sensações não por acaso...). Uma experiência estética toca os afetos, o gosto, as sensações.

Moral, por sua vez, fala do comportamento, da norma, da boa ou da má conduta, do certo ou do errado, enfim, do que é esperado de nós no tocante ao convívio normatizado em sociedade.

É comum imaginar-se que haveria um conflito inevitável entre uma experiência estética e uma experiência moral, já que a segunda pressupõe alguma forma de constrangimento da primeira, a fim de torná-la "civilizada". Autores como os românticos alemães dos séculos 18 e 19 sonhavam com um encontro profundo entre estética e moral, no qual "o que sentimos existiria em harmonia com nossa ação moral".

Utopia? Sim, creio ser uma utopia. Somos demasiadamente contraditórios para termos qualquer forma de harmonia nesse nível. Harmônicos, só os cadáveres ou os mentirosos.

Voltando a nossa questão. O que você escolheria: morrer de tristeza ou de culpa?

Tristeza é um afeto, um sentimento, um estado de alma advindo da perda de algo que nos dá prazer, felicidade, gosto pra viver. Impossível esgotar os sentidos da tristeza. São Tomás de Aquino (século 13) achava a tristeza uma forma de pecado porque o mundo, segundo o Criador, é bom. Você acredita que seja bom mesmo?

Culpa, por sua vez, é um afeto essencialmente decorrente da vida moral. Muita gente acredita, como os filósofos ingleses dos séculos 18 e 19, que a base da vida moral seja o afeto, portanto, haveria uma relação profunda entre a moral e a estética. No caso, a culpa seria um afeto moral decorrente da consciência de que fizemos sofrer alguém que não merecia sofrer.

Mas na questão em si está o fato de você poder morrer de uma das duas, tristeza ou culpa. Vejamos um pouco de contexto hipotético para ajudar em sua decisão.

Imagine que essa tristeza fosse causada pela certeza de que você deve abrir mão de algo que você ama muito ou deseja profundamente. Algo ou alguém que você sinta ter buscado a vida inteira, mas que não pode ou não deve ter com você, a não ser que seja às custas de muito sofrimento para outras pessoas que não merecem tamanho e atroz sofrimento.

Você deveria abrir mão desse seu desejo em favor do que seria o esperado em termos de normas sociais e de cuidado para com os "inocentes". Ao fazê-lo, optaria por ser triste, mas fiel ao que é certo, daí minha amiga falar em "morrer de tristeza". Escolheria a infelicidade em nome do que é moralmente justo.

Por outro lado, se você optar pelo desejo, levaria a agonia para o coração daqueles que não deveriam viver essa agonia. Daí a ideia de "morrer de culpa". Morrer de culpa seria o preço por ter sido fiel ao seu desejo. Abrir mão da felicidade em nome do "certo" pode lhe fazer infeliz. Mas, a infelicidade pode ser um dos hábitos mais profundos em nossas vidas.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

Escola Sem Partido e o velho Marx num lugar muito melhor

Falar em Escola Sem Partido tá na moda e vou explicar a importância de pensar seriamente sobre isso. 
Estou eu a fazer aquela faxina em minha biblioteca quando decido revisitar todos os quilos de textos guardados à época da faculdade. Muitos (infelizmente) não lidos, poucos bons e bem menos utilizados que aqueles clichês da faculdade de História: Foucault estava virado do avesso, todo marcado, enquanto Isaiah Berlin quase intocado (hoje as coisas se inverteram...). 
A verdade é que em meio a isso tudo achei "O Manifesto do Partido Comunista". Surpresa nenhuma, a não ser lembrar que aquele texto me foi passado no colegial, pelo professor de História à época. O texto sublinhado e gasto foi carregado comigo durante todos os anos da faculdade e milagrosamente sobreviveu até hoje, escondido nos escombros de minha biblioteca.  Creio sim que devamos estudar até o velho Marx, mas a discrepância é que o professor só nos mostrava uma face da moeda. Pergunte se havia junto ao Manifesto algum texto de Adam Smith ou Locke. Nada. 
Eis a lógica da doutrinação ideológica: as ferramentas não estão todas na mesa, para que o aluno escolha qual a melhor para seu arcabouço futuro ideológico. Apenas a foice e o martelo permaneceram ali. Triste realidade. 
No meu caso de nada adiantou carregar o texto ao longo desses vinte anos: cá estou completamente desvinculada desse tipo de raciocínio pérfido da esquerda. Me serviu aos 15 anos, quando visitava reuniões de partidos "libertários", até hoje (graças a Deus) esquecidos. E garanto que as motivações que me levaram a participar foram muito menos ideológicas do que deveriam, afinal, estava de namorico com alguém daquele grupo. Pondé sempre esteve certo ao falar que gente da esquerda pega mais que da direita, eu garanto. 
Hoje o velho Marx foi pro lixo. Guardado numa pasta no fundo dos textos de Metodologia e Teoria de História, ele já não suportava mais conviver com o peso de Berlin ou Kant sobre suas letras amareladas pela falta de uso. Libertei o Manifesto Comunista para viver num lugar mais apropriado. 

sexta-feira, 8 de julho de 2016

O eu e o outro eu

As histórias de terror do século XIX sempre me encantaram. Com frequência me questiono porque  e então, quando volto aos clássicos, consigo entender um pouco melhor. Ou sentir, não sei. 
O fato é que Frankenstein, Drácula e O Médico e o Monstro formam a tríade mais excitante do que viria a ser o romantismo do século XIX. A decadência do homem moderno, a incapacidade humana em entender a si mesmo, o desenvolvimento científico à serviço do mal; são estas algumas questões colocadas de forma genial por estas histórias. E todas me encantam.
Mas de todas, O Médico e o Monstro me toca de forma estranhamente profunda. 
Que homem pode afirmar que jamais se apavorou diante das próprias escolhas e atos? Quem pode dizer que nunca sentiu uma ponta de vergonha ou culpa ao se olhar no espelho? Que atire a primeira pedra aquele que não esconde no mais profundo (ou superficial) de sua alma um desejo do seu dark side. 
Jekyll e Hyde são absolutamente possíveis em cada um de nós. O melhor e o pior. O bem e o mal. E muitas vezes tudo o que basta para passar de um ao outro é apenas uma leve inclinação. Como quando um funcionário percebe na caligrafia de Hyde os mesmos aspectos de Jekyll. "As duas caligrafias são idênticas em muitos aspectos: só a inclinação é diferente". Somos muitos em um. O que nos transforma de mocinho em bandido muitas vezes é uma pequena inclinação, um leve ato, um detalhe. 
Duas consciências, dois lados, um mesmo corpo. Os conflitos de Jekyll em aceitar o Hyde dentro de si foi  sofrido, mas ao mesmo tempo a possibilidade de soltar o monstro  se tornou irresistível. " A verdade de que o homem não é verdadeiramente um só, mas dois", afirmou Jekyll. 
Leva um tempo para percebermos "o animal dentro de mim lambendo os nacos da memória".  E quando esse lado toma conta do nosso ser, não nos resta muito a fazer a não ser tomar consciência do "horror ao meu outro eu". 
A verdade é que encarar nossos Hydes é também nos olhar no espelho. é também encarar o seu outro eu, por mais odiável que ele seja, ainda é parte de quem você é.
Horrível ou não, espero que, por mais que meu Hyde dê as caras vez ou outra, eu não tenha o mesmo fim que dr. Jekyll. 
Que meu Hyde permaneça (na maior parte do tempo) escondido. 

La reproduction interdite, Magritte.