segunda-feira, 29 de agosto de 2011

CADASTRO THANATOS - Pondé

CERTA VEZ, como nos conta Gustav Janouch, em seu livro "Conversações com Kafka", ele reclamou que não estava entendendo nada que Kafka falava (os dois tinham o hábito de conversar caminhando por Praga).
Kafka teria respondido algo assim: "Hoje estou tão pessimista que deve ser a misericórdia de Deus que está protegendo você. Pois, se me entendesse, sendo você ainda muito jovem, o que estou dizendo lhe destruiria".
Será que Deus vai protegê-lo hoje, caro leitor?
Você é daquele tipo de pessoa que pensa no que come todos os dias? Conta calorias? Parabéns se você for, porque ganhará desconto no seguro saúde.
Muita gente acha que Aldous Huxley, em seu livro "Admirável Mundo Novo", se enganou, porque o mundo não marchou em direção a regimes totalitários.
Eu acho que ele acertou em tudo, inclusive na possibilidade de governos totalitários. Veja o caso da China. Se as pessoas tiverem comida e iPads elas estarão dispostas a abrir mão de tudo, mesmo dessa bobagem chamada democracia. Pisarão em qualquer cabeça por um iPad, como antes pisavam por qualquer outra bobagem.
É isso que as "cheerleaders" dos saques em Londres (essa farra das redes sociais) não entendem. Além do problema do governo centralizador, o equívoco em achar que Huxley errou está em não perceber que a chave do controle das vidas não está em formas centralizadoras de governo, mas em não percebermos que somos nós mesmos que pedimos controle sobre nossas vidas em troca de formas variadas de felicidade e segurança.
O que Huxley entendeu, e nós, não, é que a ganância pela felicidade (a saúde total é apenas uma de suas formas mais bregas) nos levaria ao admirável mundo novo.
Meu Deus, por que temos de ser uma espécie assim tão infeliz? Por um lado, a vida é dura o bastante para querermos (com razão) ser felizes, mas, por outro lado, a busca pela felicidade nos faz de gado alegre. Escolha maldita: ser infeliz, morrer jovem ou virar gado e ter uma dieta balanceada. E para tal, estaremos dispostos a ter fiscais de nossos hábitos cotidianos de saúde em nossas cozinhas.
Nessas horas, sinto o pessimismo tomar conta de mim como um líquido negro e viscoso a entrar pela minha boca e pelo meu nariz, fazendo-me engasgar. Vejo o mundo como um parque zoológico de pessoas sorridentes e saudáveis, todas felizes em ter um "retorno" financeiro em troca de abrir suas casas e suas vidas para profissionais de "qualidade de vida" avaliarem suas refeições diárias.
Você ouve o interfone tocar? É ela, a avaliadora de sua qualidade de vida. Sorria e acima de tudo tenha em mãos as provas de que colabora com a sua própria saúde. Não seja um inimigo de sua própria felicidade fisiológica. Seja pró-ativo.
Imagino alguém bonito, simpático, espiritualizado, provavelmente um budista light, checando os nutrientes na alimentação da sua família. Talvez você possa agendar a visita via internet -afinal hoje em dia ninguém tem tempo pra nada, não é?
Imagine o número de empregos para as novas xamãs do mundo, as nutricionistas...
Se, desde cedo, você tomar as decisões alimentícias corretas para seus filhos, provavelmente a apólice de seguro saúde deles sairá bem mais em conta. Meus olhos se enchem de lágrimas ao perceber como o mundo melhora a cada passo.
A lógica de fundo é que ninguém racional quer morrer cedo, logo, só uma pessoa irracional, contraproducente, antissocial e, por fim, passível de alguma forma de punição, seria capaz de não ver isso tudo como um passo justo para "agregar valor" a nossa vida.
Aliás, uma pessoa assim, intratável, talvez, devesse num futuro próximo ser multada, porque ela não só onera os custos de seguro saúde da família como os da empresa de seguro saúde e, por fim, os do próprio Estado. Quem sabe devêssemos "evoluir" para a proibição de contas bancárias, crédito ao consumidor ou mesmo passaporte?
Quem sabe o Ministério da Saúde poderia criar um cadastro de pessoas inadimplentes em cuidados com a própria qualidade de vida. O nome poderia ser CTH (Cadastro Thanatos).

domingo, 28 de agosto de 2011

Redenção dominical

Não gosto de domingo. Nunca gostei.
Pra quem mora fora das grandes cidades é um dia morto: nada funciona, a rotina não funciona.
Hoje foi diferente. O dia de sol convidou a um passeio inusitado: andar de maria-fumaça.
Para chegar até a estação, os passageiros devem atravessar a feira livre do centro da cidade (parada obrigatória nas melhores bancas de pastel japonês), passar pela antropológica feira-do-rolo para então chegar à linha férrea  - que já teve seus tempos de glória e hoje é reduto dos "vida-loka" do crack. 
Um passeio simples, curto, mas muito saudosista. Eu ainda tive o grande privilégio de, quando criança, andar de trem, Nunca me esqueço. E hoje isso, de certa forma, voltou à lembrança.
Salvou o domingo.