sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Atrações de feira - J.P. Coutinho

Espero escrever um dia sobre "The Wire", a série da HBO que me acompanha há vários meses.
Digo "há vários meses" porque, apesar de ter apenas cinco temporadas, é a primeira vez na vida que assisto a uma série que exige repetição contínua do mesmo episódio. Só para saborear a carpintaria literária do produto; a complexidade de cada personagem; e os diálogos, meu Deus, capazes de transformar o calão rasteiro das ruas em duelos verbais dignos de um Edmond Rostand.
O mundo imundo de Baltimore ganha em "The Wire" o mesmo estatuto épico que Victor Hugo concedeu a Paris; e Dickens, a Londres; e Dostoiévski, a São Petersburgo. Não estou a delirar.
Mas estou a lamentar. Quando a TV surgiu em meados do século 20, alguns luditas modernos decretaram a morte do cinema. Enganaram-se, claro. Mas enganaram-se apenas por meio século. Como escreveu Michel Laub em excelente texto para a Folha("O ponto final do cinema", 25/10/2013), as séries de TV americanas sugaram o talento audiovisual que existe.
Só discordo de Laub no otimismo dele: para o colunista, ainda há esperança para a sétima arte se ela conseguir superar o desafio do "ponto final" --contar em duas horas o que as séries contam em dois meses, dois anos, quem sabe duas décadas.
Infelizmente, e para mim, o "ponto final" do cinema "mainstream" começa a ganhar contornos mais literais.
Um bom exemplo é o filme do momento, "Gravidade", de Alfonso Cuarón. Acompanho as críticas. Confesso pasmo com tanto pasmo. Que o filme é um prodígio visual, ninguém nega: os primeiros 15 minutos em plano-sequência, quando a trilha sonora não arruína a beleza do silêncio, valem como experiência estética.
Mas é a pobreza narrativa do filme que deprime, sobretudo para quem esteve nas ruas de Baltimore horas antes.
No filme, um acidente sideral condena uma astronauta a ficar sozinha no espaço. Imaginar Sandra Bullock como astronauta já é abusar da nossa "suspensão da descrença".
Mas o pior vem depois: precisamente para comprimir uma história plausível em menos de duas horas, "Gravidade" oferece todos os clichês em sucessão contínua.
Sabemos que a astronauta perdeu uma filha na "mãe" Terra. E para quem tem esse prejuízo na biografia, surge o dilema: é melhor desistir e entregar-se ao esquecimento do espaço? Ou, apesar de todas as mágoas com o mundo "cá em baixo", tentar ainda regressar para ele e reaprender --literalmente-- a seguir em frente?
Não sei como classificar esta simplificação adolescente que é apresentada com "gravitas" cósmica pelos roteiristas do filme. Sei apenas que em nenhum momento acreditamos no luto daquela mãe --um luto que surge do nada e se dissolve no nada. Sem falar do óbvio: uma mãe com semelhante cicatriz no cardápio dificilmente estaria em missão espacial.
Para Michel Laub, o fato de o cinema exigir maior brevidade que uma série de TV pode ser um desafio criativo. Sim, pode e admito que nas mãos certas ainda seja. E também admito que o cinema de hoje poderia estar para o conto como as séries de TV para o romance.
Que o mesmo é dizer: abandonando o desejo de "totalidade" que o romance (e a série de TV) encerra, o cinema ganharia em aprofundar os "fragmentos de realidade" que fizeram a grandeza de Tchékhov, Carver ou Pritchett.
O problema é que os filmes "mainstream" que dominam as salas querem ser romances no espaço de um conto. Esquemáticos, nunca passam de esqueletos. Ou nem isso: apenas pretendem usar o texto como pretexto para qualquer prodígio formal.
A redescoberta recente do 3D parece apontar esse caminho e "Gravidade" é novamente um exemplo: se a TV é narrativamente mais poderosa, pensam os estúdios, o cinema pode deslumbrar as plateias com a "experiência" visual só possível na grande tela.
É uma forma de ver as coisas. Mas é também uma forma regressiva de ver o cinema: de "atração de feira" a expressão artística, o cinema estaria novamente condenado a ser "atração de feira" com a ambição explícita de maravilhar as plateias. Seria, no fundo, um retorno aos ilusionismos primitivos de Georges Méliès. Exagero?
Acredito que sim e desejo que sim. Mas não deixa de ser melancólico que, nos alvores do século 21, exista mais grandeza na baixeza de Baltimore do que no espaço infinito de Sandra Bullock.

Morrissey - Michel Laub

Por volta de 1987, quando os Smiths eram minha banda estrangeira preferida, seu cantor e líder Morrissey atacou o então onipresente George Michael com uma frase que cito de cabeça: "Se ele experimentasse viver a minha vida por um minuto, correria até a árvore mais próxima e se enforcaria".
Talvez involuntariamente, as recém-lançadas memórias de Morrissey ("Autobiography", Penguin Classics) tornam a declaração emblemática. Não posso avaliar os sofrimentos íntimos de George Michael, mas há turbulências públicas o bastante em sua trajetória para intuir que a coisa não foi fácil (como nunca é para ninguém).
Já Morrissey é um pouco o que se sabe por suas canções: colégios rígidos na infância, medo e fascínio por gangues de rua, inadequação sexual, vegetarianismo, romantismo no sentido clássico do termo, melancolia. Há biografias que iluminam a obra de um artista. Aqui é o contrário: a leitura pode soar tediosa para quem não tem familiaridade com o universo desta figura peculiar.
Um pouco porque as constantes referências às próprias desgraças não encontram correspondência nos fatos descritos. Manchester é úmida e cinzenta, a classe média baixa inglesa dos anos 1960 e 1970 tinha poucas perspectivas, há perdas e desilusões como de praxe, mas apenas retórica vitimista não torna literariamente dramática uma experiência.
Resta então a genealogia de uma formação estética, a melhor parte do livro, juntamente com os (raros) detalhes sobre álbuns e composições. De Oscar Wilde a David Bowie, de W.H. Auden e James Dean a New York Dolls, Patti Smith e Lou Reed, as referências de Morrissey sempre dialogam com a esfera comportamental, numa projeção daquilo que ele mesmo se tornaria: um artista que mudou seu meio e seu tempo com uma obra e, tão importante quanto, uma postura.
No caso, uma mescla de princípios, autoindulgência e ironia. Eu tinha 14 anos em 1987, e claro que só identifiquei o primeiro dos três itens no ataque a George Michael.
Apenas mais tarde, conhecendo melhor o ethos da cultura pop britânica, percebi que era a sério e não era. Um astro milionário acredita ser a pessoa que mais sofre no mundo, fazendo dessa crença a expressão de uma angústia geracional, de uma sinceridade imaculada frente à hipocrisia reinante no showbiz, mas o tom propositalmente afetado mostra consciência de como tudo pode ser ridículo.
Tal ambiguidade salvou o cantor do que o tempo quase sempre faz a artistas como ele. O kitsch oferece seus braços gordos e tardios àqueles que, como os Smiths, tornam-se esteio de adolescentes fracos, confusos e sozinhos. Morrissey costumava driblar o perigo em entrevistas como a de 1987 e paródias com a própria iconografia --roupas, flores, gestos, topete.
"Autobiography" tem um pouco desse humor que suaviza o egocentrismo, em especial no veneno contra desafetos nas gravadoras, na música e na imprensa. Também tem algo da veia lírica do autor, que escreve num registro preciosista e cheio de imagens. Mas em muitos pontos as qualidades são sufocadas pelo rancor, pela mesquinhez dos vereditos, por uma incapacidade juvenil de empatia com a vida não idealizada.
Minha experiência emocional com os Smiths, digamos assim, está encerrada há tempos. Não sei o quanto dela é conceito, o que aprendi lendo sobre a banda ao longo dos anos, e o quanto é impacto direto de atributos artísticos de recepção mais sensorial. A voz de Morrissey, por exemplo. Ou sua maneira de encaixar temas sombrios em melodias que transformaram a energia do pós-punk num pop solar e glorioso, compostas por parceiros --como o guitarrista Johnny Marr-- de talento igualmente superior.
O caráter dessa memória afetiva exclui o distanciamento intelectual. Trata-se de um problema quando se lê as memórias de um antigo ídolo. Morrissey continua importante para mim em 1987. Também na carreira solo bem-sucedida, que acompanhei até certo ponto, e em suspensões eventuais e voluntárias da descrença --numa tarde nostálgica ouvindo discos antigos, em apresentações como as que ele fez aqui em 2000 e 2012.
Só que o livro precisa ser julgado a partir do que sei hoje. Levada ao pé da letra, como o autor parece querer muitas vezes, sua leitura reforça a obviedade de que o tempo passou, e o mundo é tão maior que uma banda de rock, e é triste e bom e engraçado que seja assim.