segunda-feira, 31 de dezembro de 2012

Odette para 2013


Um casal conversa na mesa de jantar de casa no final de um dia comum. Classe média média (duas vezes média). Ele com cara de cansado (deve ter um desses empregos nos quais pessoas como ele engolem sapos diariamente fingindo que ainda são donos de suas vidas), ela com cara de quem tomou banho para jantar, mas permaneceu com ar de enfado. Deve ter esperado o marido o dia todo, mas não com muito gosto...

Ele (Mário Alberto) pergunta o que há para sobremesa. Ela (Odette) responde "tangerina". Ele reclama que a única coisa que queria quando chegasse em casa depois de um dia inteiro de trabalho era uma sobremesa decente. Nada de chique, talvez um pudim. Ou mesmo algo que ela goste. Ou seja, ele não é exigente. Carrega em si aquele ar esmagado de quem sabe que já perdeu a partida com a vida e com o mundo. Normalmente, a esposa encarna tanto a vida quanto o mundo para os "bons maridos".

Nelson Rodrigues costumava dizer que todas as qualidades que fazem de um homem um grande e desejado homem são inviáveis em "bons maridos".
Ele diz para ela que uma sobremesa decente é tudo que ele quer, e pergunta para ela o que ela quer. Aí, vem o show de Odette.

Ela diz: (perdão pela licença poética) "O que eu quero Mário Alberto? Você quer saber o que eu quero? Eu quero foder. Veja que não disse fazer amor, transar ou fazer 'nheco-nheco', mas foder".

Odette passa a qualificar "seu desejo": ela quer foder não apenas com Mário Alberto, mas com o chefe dele (imagem particularmente tocante no que diz respeito a um homem humilhado que teme que sua mulher sonhe em dar justamente para aquele desgraçado que manda nele), com o irmão dele, com o time de futebol da Nigéria, com o exército de Israel.

Assume-se que o time da Nigéria seja composto de negros fortes e bem dotados e que não perguntarão para ela "meu amor, com todo respeito, você faria amor comigo hoje? Se não estiver bem disposta, ok, entenderei e continuarei a te amar".

Quanto ao exército de Israel, Odette parece desejar suas famosas e decantadas virtudes militares: coragem, eficiência incomparável, audácia, juventude e vitórias consecutivas contra milhares de inimigos ao mesmo tempo e de todos os lados. Odette parece lembrar o que o mundo esqueceu: o exército de Israel é que está esmagado por inimigos de todos os lados, e não o Hamas.

Mas Odette não para por aí. Sem citar aqui todos os exemplos que ela dá de seu desejo escondido, passemos ao "modo" como ela quer que este desejo se realize: Odette quer que usem e abusem dela, que a tratem como cadela, que a deixem assada e doída, que sua boca fique imprestável. Ao final, depois de dizer que quer tudo isso repetidas vezes, confessa que também quer "passar recibo" de tudo que deu e recebeu como um modo claro de dizer "sim, sou a vagabunda de vocês".

Impossível não relacionar Odette (inclusive pelo nome dela) a algumas heroínas rodriguinianas conhecidas como bonitinhas mas ordinárias, que pedem para homens as violentarem enquanto as chamam de cadelas.

Após dizer tudo isso, ela silencia e continua a comer com aquela contenção de classe média à mesa. Não esqueçamos que "etiqueta" é coisa de gente que queria ser elegante mas não consegue. Traço claro de decadência.

Ele, assustado, diz que "tangerina está ótimo". Ela avisa que a tangerina não está gelada, mas ele diz que tudo bem assim. Mário Alberto reassume o papel que deve desempenhar todo o dia, todos os dias.

Trata-se de um vídeo da internet que é muito indicativo do que é a incomunicabilidade da vida cotidiana entre as pessoas. No caso específico, um casal de classe média.

Claro está que Odette, mulher sem grandes dotes de beleza ou sensualidade, não parece feliz com sua vida sexual de "mulher de família". Não quer ser "uma mulher de família". Quantas Odettes irão a sua festa de Réveillon hoje? Espero que pegue uma.

O mundo não muda, nem os homens, nem as mulheres. Liberte-se do mito desta mudança. Resta para os caras a pergunta que não quer calar:

Quando vai se alistar no exército de Israel? Feliz 2013 com sua Odette

terça-feira, 25 de dezembro de 2012

O humanismo do Deus da carnificina - Pondé

Hoje é véspera de Natal. Noite feliz. Proponho como espiritualidade natalina a hipótese do filme "Deus da Carnificina", de Roman Polanski. O filme é uma peça de teatro, uma prova perfeita de que menos é mais.

O elenco arrasa: Jodie Foster (a chata politicamente correta azeda), Kate Winslet (a gostosa reprimida e histérica que vomita quando fica nervosa e se ressente da ausência do marido que não larga o celular), Christoph Waltz (advogado cínico de uma indústria farmacêutica, marido da Winslet) e John C. Reilly (marido da Foster, aparentemente pacífico e submisso a ela, com medo de hamsters, mas que estoura no fim e a acusa de ser moralista e "fake").

Dois casais se encontram na casa de um deles (Foster e Reilly) para conversar sobre a porrada na cara que o filho deles recebeu do filho do outro casal (Winslet e Waltz).

O que de início parece ser uma conversa civilizada entre pessoas que têm um conflito para resolver num "espírito Obama de ser", do tipo "a guerra do Oriente Médio pode ser resolvida com um ciclo de filmes chatos sobre a paz", acaba por se transformar num desentendimento geral em que as verdadeiras e sombrias personalidades e vergonhas aparecem.

Exceção feita ao advogado que, desde cedo, revela sua impaciência com o blá-blá-blá do amor à África da personagem da Foster e sua ideia de que nós ocidentais de fato superamos nossas misérias em favor de uma sociedade com "consciência social". Consciência social é sempre tão falsa como bolsa Prada "fake", ou se não é falsa, você é um puritano fanático que baba sangue na mesa.

Ela escreve livros sobre Darfur e a miséria na África e, em meio a seus berros contidos de histérica, ela decreta que quem não se preocupa com a pobreza mundial não tem caráter. Tenta passar a imagem de que ama e perdoa a todos, inclusive o filho da Winslet que bateu em seu filho, mas no fundo é uma passiva agressiva, aquele tipo de mulher descrita por Woody Allen, que fala baixinho, mas fere fundo com sua saliva venenosa e cruel.

Outro traço risível da personagem da Foster é seu "amor à cultura". Quando Winslet vomita em seus livros de arte (aquele tipo de livro-trambolho de arte que a classe média "semiletrada", termo usado pelo crítico Otto Maria Carpeaux, deixa em sua mesa de centro como atestado de sua ilustração afetada), Foster começa a gritar e fala como eles procuram dar aos filhos uma educação "cultural" para fazer deles pessoas melhores.

Risadas? Se não bastasse o clichê dos nazistas que choravam com Bach à noite e torravam judeus de dia, qualquer pessoa inteligente e não afetada por essa falácia de que a cultura deixa alguém melhor sabe do ridículo dessa hipótese pedagógica.

Foster é aquele tipo de mãe que acha que seus filhos ficam nas redes sociais discutindo a fome em Zâmbia, quando na realidade estão fazendo bullying em rede com algum colega feio da escola.

O conflito central do enredo se dá entre esse novo puritanismo "fake" que assola o mundo contemporâneo de gente chiquezinha de Nova York e São Paulo (gente que fala frases do tipo "Nova York é outra coisa"), representada por Jodie Foster, e o cinismo niilista do advogado interpretado por Waltz.

A hipótese do advogado, que dá nome ao filme (em inglês "Carnage", que é carnificina), é de que talvez exista um Deus, mas ele é mal e gosta de nos ver nos matando, daí a carnificina. Em oposição ao besteirol da África vítima, ele narra suas viagens à África, nas quais vê como eles se matam entre si com prazer, cortando-se mutuamente em pedaços. E Deus se diverte com isso.

Essa hipótese é conhecida por todo estudioso do cristianismo antigo: alguns textos antigos falam de um Deus mau, o Deus dos gnósticos.

Ele seria um sádico e nos criou para nos torturar. Essa hipótese, com diferenças locais, aparece em heréticos como os bogomilos e cátaros na Idade Média, em Sade no século 18, em Cioran no 20 e em Lars von Trier na sua releitura do Éden, no "Anticristo".

Eu prefiro o niilismo do advogado Waltz ao amor "político" da Foster. Escolho a dor, e não a mentira, porque sou um humanista.

sexta-feira, 21 de dezembro de 2012

River - Madeleine Peyroux






It's coming on Christmas
They're cutting down trees
They're putting up reindeer
And singing songs of joy and peace
I wish I had a river
I could skate away on
But it don't snow here
It stays pretty green
I'm going to make a lot of money
Then I'm going to quit this crazy scene
I wish I had a river
I could skate away on
I wish I had a river so long
I would teach my feet to fly

I wish I had a river
I could skate away on
I made my baby cry
He tried hard to help me
You know, he put me at ease
And he loved me so naughty
Made me weak in the knees
I wish I had a river
I could skate away on
I'm so hard to handle
I'm selfish and I'm sad
Now I've gone and lost the best baby
That I ever had
Oh I wish I had a river
I could skate away on
I wish I had a river so long
I would teach my feet to fly

Reportagem para a IHU - O deus de Lars von Trier


Respeito e reverência diante do mal: o deus de Lars von Trier


Flávia Arielo aponta que o filme Anticristo aborda Deus de forma maléfica, ou seja, “se há alguma relação existente entre Deus e a pertença do mal no mundo, isso só pode ocorrer a partir do pressuposto de Deus ser mal”

Por: Graziela

Dogville, Anticristo e Melancolia são filmes essencialmente teológicos, pontua Flávia Arielo


Ao analisar o filme Anticristo, de Lars von Trier, em entrevista concedida por e-mail à IHU On-Line, Flávia Arielo explica que, por diversos momentos, “o diretor centraliza a questão do mal na natureza, que nesse caso, pode ser entendida tanto como natureza física quanto a natureza do homem”. Para ela, a relação entre Deus e o mal na obra de von Trier se dá de forma bastante peculiar em cada um dos últimos três longas-metragens do diretor – Dogville, Anticristo e Melancolia – que são, segundo Arielo, filmes essencialmente teológicos. E constata que “ao que tudo indica, através de seus filmes, Lars von Trier sugere o ser humano completamente desconectado, apartado de Deus. A ideia de Deus está implícita em muitas formas, (…) mas Ele parece não se importar com o que acontece com sua criação. Na pior das hipóteses, o Deus de Trier não apenas nos abandonou como também pode contribuir para o nosso sofrimento. O diretor não dá esperanças para essa relação em nenhum de seus filmes”. Por fim, Flávia conclui: “o fim de Anticristo demonstra que, para a razão, a única saída para a dor é a morte do mal, ou daquilo que ele representa”.

Flávia Santos Arielo possui graduação em História pela Universidade Estadual de Londrina e é especialista em História da Arte pela mesma universidade. Leciona História e História da Arte no ensino médio. É mestranda do curso de Ciências da Religião da PUC-SP.

Confira a entrevista.


IHU On-Line – Como o conceito de mal e de maldade aparece na obra Anticristo de Lars von Trier?

Flávia Arielo – Lars von Trier criou uma atmosfera fílmica que vai de encontro com a ideia de mal: as cenas são esteticamente belas, têm tratamentos que ressaltam as cores e cenas em câmera lenta. Tudo isso acaba por contrapor a ideia de bem e mal, a começar pela cena inicial, o prólogo, que nos leva à problemática central do filme: o preto e branco, a ópera como trilha sonora e as cenas lentas nos conduzem à beleza, mas então uma das formas do mal se mostra pela primeira vez – a morte de uma criança. O mal exposto no filme, em princípio, pode levar o espectador menos atento a deduções superficiais, como se o mal residisse apenas em fatores como a morte, a depressão e a perda. Mas o repertório teológico de Trier vai além disso: o mal está centrado na personagem feminina do filme e em sua descoberta. Interpretada por Charlotte Gainsbourg , a mulher faz afirmações ao longo do filme que nos indicam a posição de Trier sobre o mal. “A natureza é o templo de Satã”, diz ela, ao constatar que a natureza humana é má. Por diversos momentos o diretor centraliza a questão do mal na natureza, que nesse caso pode ser entendida tanto como natureza física quanto a natureza do homem. A desordem dessa natureza é exposta, por exemplo, em um das cenas mais fortes do filme, quando uma raposa se autoflagela e anuncia em alto e bom tom: “O caos reina”.


IHU On-Line – Como se dá a relação entre Deus e o mal na filmografia de Lars von Trier?

Flávia Arielo – Destaco, em particular, os últimos três longas-metragens do diretor – Dogville , Anticristo e Melancolia – como filmes essencialmente teológicos. Há que ressaltar que, como dinamarquês, Lars von Trier nasceu num país embebido pela Reforma, apesar de declarar que cresceu num ambiente familiar secular. A relação entre Deus e mal se dá de forma bastante peculiar em cada um destes filmes. Em Dogville (2003), Deus está caracterizado como o chefe da máfia, um gangster que impele sua filha – Grace (Graça) – aos piores infortúnios na cidade de Dogville. Ao final, num belo diálogo entre o gangster e Grace, tudo gira em torno de entender quem é o mais arrogante entre os dois. Em Melancolia (2011), Deus está ausente; Ele silencia e permite que a vida na Terra seja completamente fulminada por outro planeta, muito maior e mais belo, chamado Melancolia. Já em Anticristo (2009) essa relação dá demonstrações de que, se há um Deus e se fomos feitos à sua imagem e semelhança, então esse Deus é mal.


IHU On-Line – Para Lars von Trier, o que define o ser humano e sua relação com Deus?

Flávia Arielo – Ao que tudo indica, através de seus filmes, Lars von Trier sugere o ser humano completamente desconectado, apartado de Deus. A ideia de Deus está implícita em muitas formas, como já dito, mas Ele parece não se importar com o que acontece com sua criação. Na pior das hipóteses, o Deus de Trier não apenas nos abandonou como também pode contribuir para o nosso sofrimento. O diretor não dá esperanças para essa relação em nenhum de seus filmes.


IHU On-Line – A partir da obra cinematográfica de Trier, em especial o Anticristo, o que define as escolhas humanas a partir do livre-arbítrio dado por Deus? Qual a força do mal nesse sentido?

Flávia Arielo – Para muitos filósofos e teólogos, o mal reside exatamente em nossas escolhas, no livre-arbítrio. Essa é uma das formas de retirar de Deus o peso da efetividade do mal. Neste filme pesa muito mais a ideia de destino do que de livre-arbítrio: somos maus por natureza e é aí que reside o sofrimento da descoberta do personagem feminina do filme. A mulher escolhe ser má, pois essa é sua essência, é assim que a humanidade é. Mas há uma escolha dessa personagem, em particular, que é primordial no filme: em uma das cenas finais o diretor revisa o prólogo e mostra o momento em que o casal está fazendo sexo no quarto, mas por outro ângulo de câmera, revelando que a mulher vê quando o filho vai saltar pela janela. A escolha foi pelo sexo e não pelo filho. O mal se revela nessa escolha.


IHU On-Line – O que seria a teodiceia negativa presente no filme Anticristo?

Flávia Arielo – Teodiceia, como definida primeiramente por Leibniz (século XVII), é a justificação racional de Deus. O filósofo tentava racionalizar de que forma poderia salvar Deus do julgamento daqueles que afirmavam não haver compatibilidade entre Deus ser onipotente e bom ao mesmo tempo em que a experiência mostrava que existia o mal no mundo. Dessa forma, a teodiceia nasce para compatibilizar Deus e o mal, alocando a existência do mal nas escolhas do homem, no livre-arbítrio. Anticristo aborda Deus de forma maléfica, ou seja, se há alguma relação existente entre Deus e a pertença do mal no mundo, isso só pode ocorrer a partir do pressuposto de Deus ser mal; assim, a teodiceia se torna negativa: se há alguma razão em entender o porquê do mal no mundo, do sofrimento e da dor, isso só pode ser obra de um Deus maléfico.


IHU On-Line – Em que sentido o filme Anticristo pode nos ajudar a compreender até onde alguém pode chegar para lidar com a dor?

Flávia Arielo – O filme mostra uma mãe em agonia, primeiramente, por que perdeu um filho. Sua dor e seu sofrimento parecem não ter fim. O marido, interpretado por Willem Dafoe , é um terapeuta que tenta tirar a esposa de seu sofrimento. Mas a escolha de Lars von Trier é ridicularizar a terapia moderna, encarnada no marido; a esposa, por diversos momentos, diz a ele que o problema é maior, que o sofrimento vai além do luto e da perda, que a dor não tem fim. A dor exposta pela mulher do filme não é em si a dor da perda do filho e sim a dor de enxergar o mal inserido na natureza humana e na natureza de Deus. O marido, de início, completamente imerso em sua racionalidade, não dá credibilidade às falas de sua mulher. Em determinado momento, o homem é tocado pelo mal que a esposa expõe e ainda assim custa a crer no que ele representa. O fim de Anticristo demonstra que, para a razão, a única saída para a dor é a morte do mal, ou daquilo que ele representa.


IHU On-Line – Como a relação entre medo e fé (ou a falta dela) aparece na obra em questão?

Flávia Arielo – O medo se evidencia no filme através das descobertas da mulher sobre a origem, a natureza humana. Ela se deprime, se angustia, e ao final constata não haver saída. Se existe alguma sombra de fé nessa obra, ela se dá pelo viés da razão e não pelo religioso. E mesmo essa fé racional é desmoralizada pelo diretor. Há uma cena bastante esclarecedora sobre isso: o marido faz uma lista dos medos da esposa, elencando-os hierarquicamente. A saída proposta por ele é que a mulher deve enfrentar diretamente o problema, ir até sua raiz. Um dos maiores medos da esposa é voltar à floresta do Éden, local onde escrevia sua tese. O marido então pede que ela se imagine deitando na grama do Éden, se misturando à grama. A imagem cinematográfica mostra a mulher se fundindo ao verde da grama até quase desaparecer. Essa seria a saída racional para o medo descartada e devassada por Trier. Tanto a razão quanto a fé – em qualquer sentido – não dão conta de acabar com o medo.


IHU On-Line – Quem é o Anticristo na visão de Lars von Trier?

Flávia Arielo – É a revelação do Deus mau, um Deus que jogou toda sorte de males no mundo: a dor, a perda, o sofrimento, a angústia, a depressão, a morte. É um Deus que criou o mundo a sua imagem e semelhança e que a razão não dá conta.


IHU On-Line – Gostaria de acrescentar mais algum comentário sobre o tema?

Flávia Arielo – O filme foi duramente criticado quando de seu lançamento. O diretor foi taxado de sexista e misógino. Creio que o filme vai muito além dessa visão leviana, pois se insere nas temáticas teológica e filosófica, muito caras ao diretor. Apesar do teor pesado e das cenas pouco palatáveis, Anticristo deve ser visto e interpretado como quem se depara com o mal: com respeito e reverência.

Branca de Neve azeda - Pondé


Fazer a cabeça das crianças sempre foi um dos pratos prediletos do fascismo. Agora, nem a Branca de Neve escapa, coitada, do ódio dos fascistas. O conjunto de "estudos" que se dedica a fazer a cabeça das crianças é parte do que podemos chamar de "oppression studies". Você não sabe o que é?

"Oppression studies" é uma expressão usada pelo jornalista americano Billy O'Reilly, da Fox News, para se referir às "ciências humanas engajadas no controle das mentes". Explico.




Reprovou um aluno? Opressão. É preguiçoso? Não, a sociedade te oprimiu e fez você ficar assim. Um ladrão te assaltou? Ele é o oprimido, você o opressor. Aliás, sobre isso, vale dizer que, com a violência em São Paulo, devemos reescrever a famosa frase do Che: "Hay que enfiar la faca em la cavera, pero sin perder la ternura jamás".

A frase dele, assinatura de camisetas revolucionárias, é: "Hay que endurecerse, pero sin perder la ternura jamás". Essa camiseta é a verdadeira arma contra gente como ele. Os americanos deveriam afogar o Irã em Coca-Colas, Big Macs e pílulas anticoncepcionais para as iranianas transarem adoidado com seus amantes.

Convidou uma colega de trabalho para jantar? Opressão! Você é um opressor por excelência, deveria ter vergonha disso. Não é um amante espiritual do Obama? Opressor! Come picanha? Opressor! Não acha que a África é pobre por culpa sua? Opressor! Suspeita de que o sistema de cotas vai destruir a universidade pública criando um novo espaço de corrupção via reserva tribal de mercado e compra de diplomas de escolas públicas? Se você suspeita disso, é um opressor! Acha que uma pessoa deve ser julgada pelos seus méritos e não pelo que o tataravô do vizinho fez? Opressor! Anda de carro? Opressor! Ganhou dinheiro porque trabalha mais do que os outros? Opressor!

Os "oppression studies" sonham em fazer leis. Por exemplo, recentemente, um comitê de gênero (isto é, o povo que diz que sexo não existe e que tudo é uma "construção social", claro, opressora) desses países em que o "mundo é perfeito" teve uma nova ideia. Esses caras (ou seriam car@s?) querem proibir qualquer propaganda ou programação infantil que reproduza imagens de mulher sendo mulher e homem sendo homem. Não entendeu? É meio confuso mesmo. Vamos lá.

Imagine uma propaganda na qual existe uma família. Segundo os especialistas em "oppression studies", para a marca não ser opressora, a família não pode ser heterossexual, porque se assim o for, o "espelho social" (a imagem que a mídia reproduz de algo) fará os não heterossexuais se sentirem oprimidos.

O problema aqui não é que as pessoas devem ser isso ou aquilo (melhor esclarecer, se não eu viro objeto de estudo dos "oppression studies"), mas sim por qual razão esses cem car@s (não são muito mais do que isso), que não têm o que fazer na vida a não ser se meter na vida, na família e na escola dos outros, têm o direito de dizer o que meus filhos ou os seus devem ver na TV? Até quando vamos aturar essa invasão da vida alheia em nome dos "oppression studies"?

Contos de fadas como Branca de Neve, Cinderela e Gata Borralheira são grandes objetos de atenção dos "oppression studies". Claro, as três são oprimidas, por isso gostam dos príncipes. Se fossem livres, a Branca de Neve pegaria a Cinderela. Humm... não seria uma má ideia....

Veja o lixo que ficou a releitura da Branca de Neve no filme que tem a atriz da série "Crepúsculo", a bela Kristen Stewart, como a Branca de Neve. Coitada...

A coitada tem que terminar sozinha para sustentar sua posição de rainha "empoderada", apesar de amar o caçador (passo essencial para libertar nossa heroína da opressão de amar alguém da nobreza, o que seria ainda mais opressor).

Os "oppression studies", na sua face feminista, revelam aqui o ridículo de sua intenção: fazer de toda mulher uma mulher sem homem porque ela mesma é o homem. Todo mundo sabe que isto é a prova mais banal da chamada inveja do falo da qual falam os freudianos. Fizeram da pobre Branca de Neve uma futura rainha velha e sem homem. Ficará azeda como todas que envelhecem assim.

sábado, 15 de dezembro de 2012

Desejo

Desejo, primeiro, que você ame,e que, amando, também seja amado. E que se não for, seja breve em esquecer e esquecendo não guarde mágoa.

Desejo, pois, que não seja assim, mas se for, saiba ser sem desesperar.

Desejo também que você tenha amigos que, mesmo maus e inconsequentes, sejam corajosos e fiéis, e que pelo menos em um deles você possa confiar sem duvidar.

E porque a vida é assim, desejo ainda que você tenha inimigos, nem muitos, nem poucos, mas na medida exata para que, algumas vezes, você se interpele a respeito de suas próprias certezas.

E que, entre eles, haja pelo menos um que seja justo, para que você não se sinta demasiado seguro. Desejo, depois, que você seja útil, mas não insubstituível.

E que nos maus momentos,quando não restar mais nada, essa utilidade seja suficiente para manter você de pé.

Desejo ainda que você seja tolerante, não com os que erram pouco, porque isso é fácil, mas com os que erram muito e irremediavelmente, e que fazendo bom uso dessa tolerância, você sirva de exemplo aos outros.

Desejo que você, sendo jovem, não amadureça depressa demais, e que, sendo maduro, não insista em rejuvenescer, e que, sendo velho, não se dedique ao desespero.

Porque cada idade tem o seu prazer e a sua dor e é preciso deixar que eles escorram por entre nós.

Desejo por sinal que você seja triste. Não o ano todo, mas apenas um dia.
Mas que nesse dia descubra que o riso diário é bom, o riso habitual é insosso e o riso constante é insano.

Desejo que você descubra, com a máxima urgência, acima e a despeito de tudo, que existem oprimidos, injustiçados e infelizes, e que estão à sua volta.

Desejo ainda que você afague um gato,alimente um cuco e ouça o joão-de-barro erguer triunfante o seu canto matinal, porque, assim, você se sentirá bem por nada. Desejo também que você plante uma semente, por mais minúscula que seja, e acompanhe o seu crescimento, para que você saiba de quantas muitas vidas é feita uma árvore.

Desejo, outrossim, que você tenha dinheiro, porque é preciso ser prático. E que pelo menos uma vez por ano coloque um pouco dele na sua frente e diga "isso é meu", só para que fique bem claro quem é o dono de quem. Desejo também que nenhum de seus afetos morra, por ele e por você, mas que se morrer, você possa chorar sem se lamentar, sofrer e sem se culpar.

Desejo por fim que você, sendo um homem, tenha uma boa mulher, e que, sendo uma mulher, tenha um bom homem e que se amem hoje, amanhã e no dia seguinte, e quando estiverem exaustos e sorridentes, ainda haja amor para recomeçar.

E se tudo isso acontecer, não tenho mais a te desejar.

Victor Hugo

segunda-feira, 10 de dezembro de 2012

Seis passos para a felicidade - Pondé


Recentemente soube que alguns países querem endurecer ainda mais as leis antifumo: não pode fumar no carro, para fumar tem que ter uma carteirinha, quem nasceu a partir do ano 2000 não pode comprar tabaco. Esperamos, com a boca escancarada e cheia de dentes, a morte chegar. Mas, bem saudáveis. Hoje em dia, Raul Seixas vomitaria na plateia.

A "qualidade de vida" é uma das novas formas de puritanismo, sendo o feminismo uma outra (o feminismo é a nova repressão da sexualidade).

A felicidade e o bem-estar são as chaves da vida contemporânea. Vale tudo para ser feliz.

Qualquer discussão moral é pura afetação ética. Uma época dominada pela felicidade é uma época boba. Mas não estou sozinho nesta sensação: Aldous Huxley, escritor inglês, pensava a mesma coisa.

Quando olhamos para a história da ética, vemos que o utilitarismo inglês é o modo dominante da vida contemporânea. Para mim, pessoa um tanto desconfiada de quem passa a vida querendo ser feliz, isso tudo parece "limpinho" como um hospital. Jeremy Bentham (1748-1832), pai do utilitarismo, chegou mesmo a pensar num cálculo utilitário para otimizar a felicidade.

O principio utilitário afirma que o homem foge da dor e busca o prazer (o bem-estar). Logo, devemos fazer uma sociedade que vise produzir em larga escala a felicidade, o prazer e o bem-estar. E chegamos ao nosso mundo de gente que sonha em ficar com a boca escancarada, cheia de dentes, esperando a morte chegar, mas com saúde. A vida e a sociedade dominadas pela busca do bem-estar parecem tornar o homem menos homem.

O cálculo utilitário tem seis passos: 1. Intensidade: o prazer dever ser o mais intenso possível. 2. Duração: o prazer deve durar o máximo de tempo possível. 3. Certeza: cuidado para não produzir um prazer que não é o que você deseja com aquele ato. 4. "Remoticidade" (remoteness): o prazer deve causar efeito imediato ou o mais rápido possível. 5. Fecundidade: o prazer A deve gerar o prazer A1, o A2 e assim por diante. 6. Pureza: cuidado para não gerar desprazer ao invés de prazer.

Será que você já não põe isso mais ou menos em prática do seu dia a dia? Mas, dirão alguns, Bentham era um controlador, porque ele sempre pensava em termos de um centro (expert) controlando a periferia (as pessoas comuns).

Bentham ficará conhecido como o utilitarista antidemocrático, sendo John Stuart Mill (1806-1873) o utilitarista democrático. De acordo com este, maior representante da segunda geração de utilitaristas, a sociedade (os indivíduos) deve livremente buscar esse prazer.

Mas o que percebemos é que, ainda que Mill falasse muito em liberdade e contra o abuso de poder (cara simpático para a moçada que gosta de falar coisa bonitinha, tipo Obama), não adianta acusar o "centro do poder" de controlador, porque são as próprias pessoas que querem os seis passos para a felicidade de Bentham.

Isso cria o efeito de esmagamento típico do puritanismo de massa em que vivemos: saúde e felicidade. Fizéssemos um plebiscito, quase todo mundo escolheria uma gaiola feliz.

"Comunidade, identidade, estabilidade." O bem é sempre para todos, a identidade é o que nos une, a vida deve ser estável. Slogan que venderia bem no mundo para o qual seguimos a passos largos com esse utilitarismo social em que vivemos, com um controle cada vez maior dos gestos, do pensamento e dos hábitos em nome da "comunidade, identidade, estabilidade".

Esse era o slogan do mundo perfeito que Huxley criticou em seu "Admirável Mundo Novo" (1932), mas podia ser o de qualquer um dos proponentes bonitinhos do controle político da vida em nome do bem.

Louis Pojman, professor de filosofia da Academia Militar de West Point (EUA), chama isso de "tragédia da liberdade".

Toda liberdade pressupõe riscos, e toda sociedade pautada pela felicidade social não suporta a liberdade. Estamos caminhando a passos largos para uma dessas.

Toda a cultura intelectual está infestada de amor à felicidade social e de ódio ao indivíduo. O pesadelo totalitário não passou. Agora ele vem sob o disfarce da opinião pública e da vontade coletiva.

segunda-feira, 3 de dezembro de 2012

A adúltera de Deus - Pondé

O Deus de Israel sempre amou as adúlteras. Jesus também dispensou cuidados especiais para com elas, e para com as prostitutas, os ladrões e os desgraçados de todos os tipos. Deus parece não resistir à sinceridade do pecador, assim como a filosofia parece amar a verdade do melancólico.

Na Bíblia hebraica, Raquel, a segunda esposa de Jacó (depois chamado de Israel), por muitos anos uma mulher estéril e idólatra por raiva de Deus, enterrada fora do "cemitério da família" por ter sido uma vergonha para esta mesma família, será escolhida por Deus como consoladora do povo eleito no sofrimento.




Raquel é a "mater misericordiae" do judaísmo. Quando Israel sofre, é o nome dela que deve ser lembrado. Deus ama as infelizes e as elege como suas conselheiras. Qual o segredo da infelicidade?

Não se trata de brincadeiras teológicas "progressistas" que erram achando que ninguém é pecador. A pastoral de hoje, vide as igrejas que crescem por toda parte (o judaísmo não escapa tampouco desse vício), cada vez mais se assemelha a grandes workshops de autoajuda ou treinamentos motivacionais. Nada menos cristão do que um Jesus consultor de sucesso. Ninguém quer ser pecador, só santo.

Mas aí reside o erro para com a teologia cristã mais sofisticada: nela, o grande pecador é o mais próximo do santo. A beleza da antropologia do cristianismo está neste sofisticado e denso vínculo dramatúrgico: quando o corpo se põe de joelhos, pelo peso do pecado, o espírito se ergue. Não se trata de dolorismo, mas, sim, da mais fina psicologia moral.

A santidade reside mais na alma do pecador do que na autoestima do "santinho".

Aliás, devo dizer que minha crítica à religião é diametralmente oposta àquela de tradição epicurista ou marxista. Esta, grosso modo, critica a religião porque ela faz do homem um alienado covarde, e que se vende a Deus para ser um alienado feliz. Eu me alinho mais ao pensamento do teólogo Karl Barth (século 20), para quem a religião torna tudo um mistério maior e traz à tona um sofrimento maior, mas que, por isso mesmo, amplia a consciência de nossa condição humana. Sofro, por isso penso, e logo, existo.

Recuso as religiões institucionais não porque elas fazem do homem um medroso, alienando-o de sua felicidade e autonomia (como creem Epicuro e Marx), mas sim porque as religiões fazem do homem um feliz, alienando-o de sua própria agonia. Quando a religião vira marketing, é melhor caminhar só pelo vale das sombras.

Revi recentemente o maravilhoso "Fim de Caso" (filme de 1999, dirigido por Neil Jordan), com a deusa Julianne Moore e Ralph Fiennes. O filme é uma adaptação do romance de Graham Greene e narra a "sua conversão". Trata-se de um fino tratado de teologia, melhor do que grande parte dos livros que afirmam sê-lo.

No filme, a compreensão da íntima relação entre pecado e graça é avassaladora. Nada mais forte do que a graça para iluminar a agonia do pecador para si mesmo: o santo não é um santinho.

A personagem de Julianne Moore é uma adúltera, que ao longo do filme apresentará traços claros de santidade, chegando a realizar um milagre. A adúltera, infiel ao seu marido, destruidora da fé no casamento e no amor que organiza a vida e a sociedade, o tipo mais vil de mulher, é aquela que mais fundo toca Deus em sua paixão pela agonia humana. No cristianismo, Deus leva a agonia humana tão a sério que resolveu Ele mesmo passar por ela, na figura da Paixão de Cristo.

Um musical a estrear, baseado na obra de Victor Hugo (século 19), "Os Miseráveis", com Hugh Jackman no papel de Jean Valjean, fugitivo da cadeia, e Russell Crowe no papel de seu perseguidor implacável Jabert, traz uma das maiores cenas da teologia cristã já representada na arte. Jean Valjean, após ter roubado os castiçais da casa de um padre, e ser pego pela polícia, é perdoado pelo padre que confirma para a polícia a mentira contada por Valjean: "Sim, eu dei os castiçais para ele".

Este ato transforma Valjean. O encontro entre a misericórdia e o pecador é uma das maiores afirmações do sentido da vida.

segunda-feira, 26 de novembro de 2012

Farewell hope - Pondé


"So farewell hope and with hope, farewell fear. And farewell remorse! All good to me is lost; Evil, be though my good." John Milton, "Paradise Lost". (Então, adeus esperança e com a esperança, adeus medo. E adeus remorso! Todo o bem para mim está perdido; Mal, seja então meu bem).

Sim, enquanto existir esperança, não há paz. Segundo o poeta inglês John Milton (século 17), que narra nesse poema a agonia de Adão e Eva afundando na cegueira de quem não mais verá Deus, só perdendo a esperança perde-se o medo. Seria um preço muito alto a pagar? Junto com a perda do medo, a perda do remorso e do bem. Niilismo?

A esperança é tema nobre na teologia. Para os católicos, a esperança é uma virtude teologal, isto é, só se deve depositar a esperança em Deus e, por consequência, só Deus nos dá esperança como um dom. Não há esperança no mundo, na Criação. Entregue a si mesma, ela vaga no vazio do desespero, carregando em si a raça dos abandonados, como dizia Horkheimer.

Felizes os que nasceram com o dom da esperança. Existe uma beleza no mundo que só os olhos daqueles que têm esperança veem.

Eu, como nasci com uma alma cega, mui raramente a pressinto (como diria Santo Agostinho, séculos 4 e 5, o peso do pecado logo me traz de volta ao desespero), mas só a pressinto com a ajuda de alguém; por mim mesmo, me afogo no desespero. Só não me desespero mais porque sou uma alma concreta, salva pelas obrigações do cotidiano.

Que os inteligentinhos não me cansem com a "crítica do pecado". Hoje em dia, uma das faces da banalidade é falar mal de religião: mal informados de todas as idades acham que pecado é uma invenção para "oprimir o homem", sim, assim como o espelho...

É conhecida a passagem na qual Kafka, ao ser indagado sobre crer ou não que existiria alguma esperança, teria respondido: "Esperanças há muitas, mas não para nós".

A interpretação mais comum é a de que ele estaria condenando a modernidade e sua desumanização (a barata Gregor Samsa, em "Metamorfose") como negação histórica da esperança, mas que nem por isso Kafka negaria toda e qualquer esperança. A conclusão dessa interpretação é que o pessimismo do autor seria "histórico", mas não ontológico ou cosmológico (isto é, "passando" a modernidade, as coisas melhorariam...).

Mas a teologia de Kafka, presente em seus "aforismas teológicos", parece ser um pouco pior do que isso. Mesmo em sua ficção, Deus parece ser uma espécie de "senhor de uma colônia penal" (faço referência aqui à máquina de tortura e morte descrita no seu conto "Na Colônia Penal"), colônia penal esta que é nossa casa, poço de desencontros, nossa vida, poço de frustrações, nosso corpo, poço de patologias, enfim, um beco sem saída.

O próprio materialismo como visão de mundo (modelo hegemônico na ciência e no ateísmo moderno, segundo o qual tudo é átomo e a vida é finita) é vivido por muitos como uma negação da esperança. Como ter esperança na solidão das pedras?

Um dos trechos mais sublimes na literatura, no qual o materialismo se revela em seu terror e seu mistério, é a passagem no romance "Patrimônio", de Philip Roth (a história real do adoecimento e morte de seu pai), na qual ele vê as imagens do tumor no cérebro de seu pai, tumor que o mataria.

Não por acaso nessa cena, Roth busca refúgio na famosa passagem na qual Hamlet segura nas mãos o crânio de Yorick, o bobo da corte, que o tinha carregado no colo tantas vezes, e se pergunta se é aquilo que somos, um crânio em meio a terra úmida.

Roth olha para aquele cérebro e pensa como "aquilo" poderia ser a causa eficiente de tudo que seu pai fizera, pensara e sentira. Fonte de cada palavra e cuidado que tivera com sua família.

Lembro-me bem de quando eu trabalhava no necrotério fazendo necropsias e colocava cérebros na mesa metálica. Milton, Shakespeare, Kafka, Roth e eu juntos, num plantão de sexta-feira à noite, a noite mais violenta, e por isso mesmo a melhor, se você quiser cadáveres "frescos" para aprender anatomia. Farewell hope.

sábado, 24 de novembro de 2012

Guarani Kaiowá de boutique - Pondé



As redes sociais são mesmo a maior vitrine da humanidade, nelas vemos sua rara inteligência e sua quase hegemônica banalidade. A moda agora é "assinar" sobrenomes indígenas no Facebook. Qualquer defesa de um modo de vida neolítico no Face é atestado de indigência mental.

As redes sociais são um dos maiores frutos da civilização ocidental. Não se "extrai" Macintosh dos povos da floresta; ao contrário, os povos da floresta querem desconto estatal para comprar Macintosh. E quem paga esses descontos somos nós.

Pintar-se como índios e postar no Face devia ser incluído no DSM-IV, o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais.

Desejo tudo de bom para nossos compatriotas indígenas. Não acho que devemos nada a eles. A humanidade sempre operou por contágio, contaminação e assimilação entre as culturas. Apenas hoje em dia equivocados de todos os tipos afirmam o contrário como modo de afetação ética.

Desejo que eles arrumem trabalho, paguem impostos como nós e deixem de ser dependentes do Estado. Sou contra parques temáticos culturais (reservas) que incentivam dependência estatal e vícios típicos de quem só tem direitos e nenhum dever. Adultos condenados a infância moral seguramente viram pessoas de mau-caráter com o tempo.

Recentemente, numa conversa profissional, surgiu a questão do porquê o mundo hoje tenderia à banalidade e ao ridículo. A resposta me parece simples: porque a banalidade e o ridículo foram dados a nós seres humanos em grandes quantidades e, por isso, quando muitos de nós se juntam, a banalidade e o ridículo se impõem como paisagem da alma. O ridículo é uma das caras da democracia.

O poeta russo Joseph Brodsky no seu ensaio "Discurso Inaugural", parte da coletânea "Menos que Um" (Cia. das Letras; esgotado), diz que os maus sentimentos são os mais comuns na humanidade; por isso, quando a humanidade se reúne em bandos, a tendência é a de que os maus sentimentos nos sufoquem. Eu digo a mesma coisa da banalidade e do ridículo. A mediocridade só anda em bando.

Este fenômeno dos "índios de Perdizes" é um atestado dessa banalidade, desse ridículo e dessa mediocridade.

Por isso, apesar de as redes sociais servirem para muita coisa, entre elas coisas boas, na maior parte do tempo elas são o espelho social do ridículo na sua forma mais obscena.

O que faz alguém colocar nomes indígenas no seu "sobrenome" no Facebook? Carência afetiva? Carência cognitiva? Ausência de qualquer senso do ridículo? Falta de sexo? Falta de dinheiro? Tédio com causas mais comuns como ursinhos pandas e baleias da África? Saiu da moda o aquecimento global, esta pseudo-óbvia ciência?

Filosoficamente, a causa é descendente dos delírios do Rousseau e seu bom selvagem. O Rousseau e o Marx atrasaram a humanidade em mil anos. Mas, a favor do filósofo da vaidade, Rousseau, o homem que amava a humanidade, mas detestava seus semelhantes (inclusive mulher e filhos que abandonou para se preocupar em salvar o mundo enquanto vivia às custas das marquesas), há o fato de que ele nunca disse que os aborígenes seriam esse bom selvagem. O bom selvagem dele era um "conceito"? Um "mito", sua releitura de Adão e Eva.

Essas pessoas que andam colocando nomes de tribos indígenas no seu "sobrenome" no Face acham que índios são lindos e vítimas sociais. Eles querem se sentir do lado do bem. Melhor se fossem a uma liquidação de algum shopping center brega qualquer comprar alguma máquina para emagrecer, e assim, ocupar o tempo livre que têm.

Elas não entendem que índios são gente como todo mundo. Na Rio+20 ficou claro que alguns continuam pobres e miseráveis enquanto outros conseguiram grandes negócios com europeus que, no fundo, querem meter a mão na Amazônia e perceberam que muitos índios aceitariam facilmente um "passaporte" da comunidade europeia em troca de grana. Quanto mais iPad e Macintosh dentro desses parques temáticos culturais melhor para falar mal da "opressão social".

Minha proposta é a de que todos que estão "assinando" nomes assim no Face doem seus iPhones para os povos da floresta.

segunda-feira, 12 de novembro de 2012

Os Ungidos - Pondé



Pelo amor de Deus, não confie em intelectuais pedindo emprego em órgãos executivos. Não estou enterrando meu próprio time, estou apenas dizendo onde devemos jogar.

A função do intelectual é ler, escrever, dar aula, orientar pesquisas, participar do debate público, mas não assumir funções executivas porque somos obcecados por nossas visões de mundo, corretas ou não, somos monstruosamente vaidosos e pouco democráticos, pelo contrário, adoramos o poder, e nos achamos superiores moralmente.

Qualquer um sabe o escândalo de como os intelectuais compactuaram com todo tipo de violência (criadora ou não... risadas?) desde o século 18.
O último lugar onde se deve olhar quando buscarmos líderes é um departamento de humanidades.

As ciências duras geram produtos técnicos, testáveis e que quando erram são mais facilmente identificáveis. E se nem sempre o são, a causa é aquilo que o epistemólogo Imre Lakatos chamava de conteúdos exteriores ao "rational belt", ou cinturão racional, ou seja, componentes exteriores ao próprio método científico, como fatores políticos, econômicos, morais, psicológicos.

Nas ciências humanas se pode dizer tudo, porque nada é testável, e normalmente quando se erra, se inventa alguma hipótese "ad hoc" (basicamente, neste caso, desculpas chiques) para justificar.

Tanto no marxismo quanto no cristianismo, hipóteses "ad hoc" funcionam porque ambas são especulações e nada mais. No cristianismo se diz "a igreja traiu Cristo", no marxismo se diz "a União Soviética traiu a causa da liberdade".

Quando um de nós assume cargos de gestão, começa a inviabilizar qualquer iniciativa que não reze na cartilha de suas teorias salvacionistas.

Torquemada, o grande inquisidor espanhol do século 15, patrono dos intelectuais em ministérios ou secretarias, se sentia moralmente superior queimando hereges.

Concordo com isso tudo que escrevi acima, mas esta crítica não é minha. Ela está na obra de um intelectual americano negro quase desconhecido no Brasil. Friso que ele é negro porque quase todo mundo, devido a nossa atávica ignorância com relação ao pensamento norte-americano que não seja o blá-blá-blá do Partido Democrata e da "new left", pensa que conservador americano em política é sempre branco babão e estúpido.

A razão desta ignorância é porque nossos alunos só podem ler o que achamos que está certo, e sonegamos o resto.

Thomas Sowell é praticamente desconhecido entre nós, apesar de termos a excelente tradução de sua obra capital "Intelectuais e Sociedade", pela É Realizações.

"Ungidos", título da coluna de hoje, é um termo usado por Thomas Sowell no seu "The Vision of The Anointed, Self-Congratulation as Basis for Social Policy", Basic Books, 1995 (a visão do ungido, autocongratulação como base para política social). Esta obra é uma excelente "entrada" para conhecer seu pensamento. Uma das vantagens é que ela é bem menor e menos complexa do que "Intelectuais e Sociedade".

Nela, Sowell mostra como esta classe de ungidos (a esquerda que tem formado a maior parte das políticas públicas nos EUA e Ocidente em geral) falou besteiras nos últimos anos, principalmente em três áreas: 1. "Guerra à pobreza" (suas ideias apenas pioraram a miséria), 2. "Educação sexual" (destruíram a família, os laços afetivos e a relação entre homens e mulheres) e 3. "Justiça e combate ao crime" (criaram um blá-blá-blá que o criminoso é criminoso porque é vítima da sociedade e, portanto, se você é assaltado, a culpa é sua, e não dele, o que só piorou muito a segurança pública).

O padrão de funcionamento deles é basicamente dizer/fazer o seguinte: 1. Catástrofes vão acontecer e não percebemos, só eles. 2. Ação urgente necessária que só eles sabem qual é. 3. Necessidade de medidas drásticas, criadas por eles, uma minoria ungida e mimada, para uma maioria ignorante. 4. Desprezo por todo argumento contrário, acusado de ser coisa de gente malvada, desinformada, irresponsável e motivada por interesses duvidosos (eles, claro, são movidos pela pureza de coração).

Você reconheceu o padrão?

terça-feira, 6 de novembro de 2012

Dos Estados Unidos à Europa - J.P. Coutinho


1. Os americanos vão hoje às urnas. Não sou vidente. Não vou cansar o leitor com análises detalhadas sobre os "swing states", os votos colegiais, as últimas pesquisas. Tudo é possível.
Mas, dentro do possível, confesso que gostaria muito que Mitt Romney ganhasse. Eu sei, heresia: lemos a imprensa "liberal" (no sentido americano da palavra, ou seja, esquerdista) e Romney é apresentado como um fanático que acredita em extraterrestres. Pior: um fanático que pretende entregar os Estados Unidos à plutocracia doméstica, de que ele faz parte.

Barack Obama, pelo contrário, é a personificação da bondade e do realismo. Mesmo Guantánamo, que continua a funcionar, tem outro sabor com Obama: no tempo de Bush, a prisão era o inferno terreno e a prova da malignidade republicana. Com Obama, Guantánamo é um jardim de infância.

Sejamos sérios: o julgamento sobre Obama, quatro anos depois, não pode ser brando ou entusiasmante. Fato: em 2008, Obama recebeu de herança uma nação quebrada. Novo fato: em 2008, Obama dispunha de condições incomparáveis --aprovação popular em níveis estratosféricos, Congresso favorável etc.-- para fazer mais e melhor.

Não fez. Um crescimento econômico que se arrasta penosamente nos 2% é tímido, para usar um eufemismo. O desemprego perto dos 8% seria o suficiente para que ele perdesse a reeleição. E a República, agravando o desvario iniciado por George W. Bush, continua dramaticamente endividada --e a endividar-se.

Como escreveu certeiramente Tim Stanley, no "Daily Telegraph", o problema de Obama não é ser o anti-Bush. É, ironia das ironias, repetir os erros de Bush ao permitir um Estado sem controle na despesa e disposto a infiltrar-se na vida comum do cidadão comum.

É por isso que a eleição de hoje não é apenas mais uma eleição na história da América. É, como afirma Romney e sobretudo o seu candidato a vice, Paul Ryan, uma espécie de plebiscito sobre o tipo de sociedade que a América pretende ser no século 21.

Para Obama, o ideal seria que a América se aproximasse da Europa e do modelo de bem-estar social.

Infelizmente, alguém deveria explicar ao presidente Obama que a crise corrente que ameaça destroçar a União Europeia está diretamente relacionada com a insustentabilidade desse modelo social.

Cuidado, América: para Europa, já basta a que temos.

2. E por falar em Europa: leio no "Times Literary Supplement" uma passagem notável das memórias de Madame de Staël.

Conto rápido: já depois da Revolução de 1789, o ministro de guerra Louis de Narbonne-Lara discursava na Assembleia Legislativa.

A páginas tantas, o infeliz ministro introduziu no discurso a expressão "apelo aos mais distintos membros desta Assembleia". Foi a revolta geral, com os jacobinos a relembrarem ao ministro que, naquela Assembleia, todos os membros eram igualmente distintos.

A história é interessante para conhecermos a cabeça do fanatismo igualitário em ação. Mas mais interessante é a observação de Madame de Staël: "para os jacobinos", escreve ela, "a aristocracia de talento era tão repugnante como a aristocracia de berço".

Relembro esta história, hoje, ao saber que na mesma França da Bastilha o presidente François Hollande pretende banir do sistema educativo os deveres de casa.

Corrijo: Hollande não quer banir os deveres. Pretende apenas que eles sejam integralmente realizados na escola, não em casa. Isso permitirá que as diferenças socioeconômicas das famílias não tenham qualquer interferência no respectivo mérito escolar dos filhos. Todos iguais, todos na escola.

Claro que, para sermos perversos, poderíamos perguntar ao senhor presidente o que tenciona ele fazer se alguns alunos, em manifesto desrespeito igualitário, violarem a medida. Como?
Estudando na escola e, depois, estudando um pouco mais em casa, ou nos cafés, ou nas bibliotecas. Será permitida essa busca da excelência extracurricular?

Ou o Estado francês, em nome da igualdade, também pretende instalar um policial em cada casa, café ou biblioteca, disposto a vigiar e punir o mais leve sintoma de curiosidade intelectual?

Esperemos pelas cenas dos próximos capítulos.

segunda-feira, 5 de novembro de 2012

O FILÓSOFO DO MARTELO NA ACADEMIA - Pondé



“Eu lamento agora que naqueles dias eu ainda não tinha coragem (ou imodéstia?) para permitir a mim mesmo, de todas as formas, minha própria língua individual…”

Estas palavras são de Friedrich Nietzsche (1844-1900), em tradução livre, do seu “Tentativa de Autocrítica”, opúsculo escrito por ele como autocrítica, em 1886, ao seu livro “Nascimento da Tragédia” (primeira edição em 1872). A edição de 1886 ganhou como acréscimo ao título o subtítulo “Helenismo e Pessimismo”.

Nietzsche foi minha primeira paixão na faculdade de filosofia da USP. Na época, recém-saído da medicina e em formação para ser psicanalista, o que nunca aconteceu, eu colocava em diálogo Nietzsche e Freud. O filósofo do martelo me é inesquecível e continuo pensando com o martelo até hoje. Vocação é destino. Este trecho específico carrega em si muito do que Nietzsche significa para um filósofo profissional como eu, em constante mal-estar com o que a vida universitária se transformou, em épocas de produtividade industrial do ensino superior.

A fala de Nietzsche vai de encontro ao modo como somos formados, não sem razão, nas boas faculdades de filosofia: somos formados para não sermos originais. Hoje, entendo que qualquer originalidade possível em filosofia é algo conquistado a duras penas, assim como a santidade ou os movimentos precisos de uma dança –metáfora cara ao filósofo do martelo.

Lembro-me de uma das primeiras aulas em que um dos grandes professores que tive nos disse algo assim: “Você não está aqui para achar nada, antes de achar algo estude, e descobrirá que muita gente já pensou o que você pensa, e muito melhor do que você, antes de você.” Esta dureza acaba por fazer de nós pessoas menos opinativas e mais rigorosas, e isso é sem dúvida fundamental. Esta é a diferença entre pensar filosoficamente e pensar como senso comum. Vale lembrar que do ponto de vista da filosofia, as ciências humanas em geral são senso comum.

Rigor nada tem a ver com o que a academia se tornou com o passar dos anos: um antro de política lobista e de burocracia da produtividade a serviço da morte do pensamento. A universidade está morta e só não sente o cheiro do cadáver quem tem vocação para se alimentar de lixo. Fosse Kafka vivo e escrevesse um conto sobre nós, acadêmicos, nos colocaria com cara de ratos.

Imaginem Nietzsche preenchendo o currículo Lattes, uma plataforma informática que supostamente democratiza o acesso à produtividade da comunidade acadêmica, ao mesmo tempo em que normatiza e quantifica esta produtividade. Na prática, o Lattes serve para nos tomar tempo (sempre dá pau) e acumular platitudes e repetições que visam a quantificação de um quase nada de valor.

Agora imaginem Nietzsche às voltas com relatórios anuais da Capes, que junto com o Lattes, institucionaliza e quantifica esta mesma produtividade de um quase nada de valor. Não existiria filosofia se nossos patriarcas, de Platão a Nietzsche (para citar dois grandes), tivessem que preencher o Lattes, fazer relatórios Capes ou serem “produtivos”. Todos seriam o que, aos poucos, nos transformamos: burocratas mudos da própria irrelevância. Analfabetos do pensamento.

Uma das formas de sobreviver a este processo de produtividade de massa é obrigar nossos alunos a pesquisar aquilo que não querem, de uma forma que não querem, a fim de garantir verbas institucionais de pesquisa em grande escala. Esmagamos a criatividade e as intenções dos alunos fazendo deles uma infantaria estatística. A universidade mente: quer formar rebanhos dizendo que defende a liberdade de pensamento.

Lutamos dia a dia para conseguirmos sobreviver aos montes de formulários e demandas do mundo dos ratos. A universidade aos poucos sucumbe aos efeitos colaterais de um mundo que, como diria Nietzsche, vomita “ideias modernas”. Os processos de democratização do saber, como suspeitava nosso filósofo, são processos de produção de nulidades em grandes quantidades.

Mais do que nunca é urgente sermos corajosos e imodestos para acharmos nossa própria língua individual.

segunda-feira, 29 de outubro de 2012

A filosofia de lavar a louça - Pondé





Fala-se muito de como o "Primeiro Mundo é isso e aquilo". Acho isso papo de vira-lata. Toda vez que você ouvir alguém falando que a Europa "é outra coisa", você está diante de um vira-lata rondando a lata de lixo dos outros. A mesma coisa vale para os EUA, ainda que, nesse caso, vira-latas de esquerda jamais elogiem os EUA, mesmo que comprem iPads lá.

Mas independentemente dessa breguice de vira-lata querendo fingir que entende de vinhos, há um detalhe na vida europeia e norte-americana que vale a pena discutir: a vida doméstica e suas tarefas.

Mas, sintomaticamente, os vira-latas nunca falam disso, porque a própria condição de vira-lata os impede de entender ou mesmo enxergar esse detalhe. O sonho do vira-lata é fingir que é llhasa apso e por isso acha que ser um llhasa é desfilar bolsa Prada no JK Iguatemi.

 O Brasil é terra de atrasado, corrupto, esculhambado, inculto, novo rico e por aí vai. Tudo isso é verdade. A prova disso é que aqui luxo é ostentação. Suspeito que grande parte do que há de fato de bom na Europa e nos EUA em termos de hábitos e costumes (portanto, estamos falando de moral) se deve ao fato de que nesses lugares as pessoas se movimentam de modo diferente no cotidiano das suas tarefas.

Sempre ouvi os mais velhos dizerem que "o costume de casa vai à praça" e isso é a mais pura verdade. Além de fazerem sexo melhor, suspeito também que os mais velhos entendiam bem melhor do que é essencial, principalmente porque não tinham essa parafernália de ideologia e outros quebrantos bobos como ferramenta de análise do mundo.

Eles observavam a vida sem a presunção de ter descoberto a chave do mundo, como nossos contemporâneos viciados em "teorias de gabinete", como dizia Edmund Burke.

Lembro-me bem que minha filha, chegada à França com cerca de dois anos de idade, chorava porque não podia lavar louça como meu filho, seu irmão, mais velho do que ela nove anos. Isso é sintomático de muitos outros pequenos detalhes: para ela, lavar a louça era parte de ser da família. Meu filho, minha mulher e eu partilhávamos todo o cuidado com a vida cotidiana, inclusive o cuidado com a caçulinha.

Em países como a França, Alemanha, Israel, EUA e outros semelhantes, você é responsável por tudo que acontece na sua casa. Roupa, comida, limpeza, compras, resolução de pequenos problemas logísticos, enfim, da sustentação da vida.

As casas (menos nos EUA, mas ainda assim a ocupação de espaço é diferente da nossa) são menores e mais simples, mesmo que com mais parafernália tecnológica, quando você tem condição de tê-la.

O que me chama atenção em relação às casas não é só seu tamanho, mas a ocupação do espaço. No Brasil temos a famosa sala de visita que, se você "está bem de vida", deve ser completamente inútil e parecer desocupada. Por isso, sempre suspeito que manter uma parte da casa sem uso é signo de vira-lata.

As aristocracias antiga e medieval, as únicas verdadeiras, também não tinham castelos sem uso. Burguês, e aristocracia falida, com "castelo" na zona leste ou nos Jardins é coisa de "wannabe", como dizem meus alunos.

Goethe, em seu maravilhoso "Os Anos de Aprendizado de Wilhelm Meister", descreve o que é a casa de um burguês: ter mais coisas do que precisa e não ter uma relação de uso e necessidade real com os objetos da casa.

Este é o caso. Uma sala de visitas imaculada faz você parecer rico o bastante para manter parte da sua casa sem uso e, com isso, você trai sua breguice burguesa. Acho que grande parte de nossas agruras vem do fato de que não lavamos louça com frequência e de que temos cômodos dissociados de nosso cotidiano e necessidades.

Basílio Magno (século 4) criou a regra da vida monástica: estudar, contemplar, trabalhar. Uma atividade alimenta a outra, e as três formam o espírito. A sabedoria monástica é uma das maiores criações do espírito humano.

Entre nós, dar "tudo" para os filhos até os 40 anos de idade é signo de sermos bons pais. E com isso preparamos adultos retardados e com futuras salas de visita cheias de fantasmas de nossa pobreza de espírito.

quinta-feira, 25 de outubro de 2012

Feist - São Paulo








Em São Paulo, no CineJóia.
As meninas do back são um show à parte...
Muito bom.

terça-feira, 23 de outubro de 2012

O que é uma vida decente? - Pondé



Quando se fala de corrupção, todo mundo mente. Quase todo mundo prefere um pai ou marido corrupto a um honesto, mas pobre. Para resistir à corrupção, você tem que ser radical, ou religioso, ou moral ou político.

Parafraseando Hanna Arendt em seu “Eichmann em Jerusalém”, quando ela disse que os nazistas estavam preocupados com a aposentadoria e chamou isso de banalidade do mal, eu diria que existe uma “banalidade da corrupção” inscrita na perversão do que seria uma vida decente.

Não quero “desculpar” a corrupção, quero trazer à tona uma causa ancestral de corrupção da qual não se fala no silêncio do cotidiano.

O julgamento do mensalão não significou nada para o eleitor, mesmo para aquele que se julga “crítico”. Ninguém dá bola para a corrupção do seu partido do “coração”. Também foi importante para ver o modo de operação da corrupção ideologicamente justificada inventada pelo PT: só faltava dizer que foi a direita de Marte que inventou tudo.

Já se falou muito que quando classes sociais mais baixas ascendem socialmente e tentam imitar os hábitos da aristocracia ficam ridículas. Isso é descrito como “novo rico”. Mas o “novo corrupto” é tão ridículo quanto. Que “saudade” dos corruptos clássicos do coronelismo nordestino, que negavam, mas não apelavam para uma inocência ideologicamente justificada, ou simplesmente não se davam ao trabalho de negar. Os mensaleiros continuam a agir como um clero de puros de coração.

Mas não é disso que quero falar. Quero falar do fato de que, para além do debate político — que acho chatinho e quase sempre um circo –, a corrupção se alimenta de algo muito mais profundo. Damos pouca atenção a esse fato porque a substância da moral pública é a hipocrisia, por isso é melhor brincar de dizer que a causa é só política, quando na realidade é mais banal do que isso.

Quase ninguém quer ter um pai ou marido pobre, e sim prefere um pai ou marido corrupto, mas que dê boas condições de vida. Esta é a verdade que não se fala.

Imagine que você é uma jovem mulher que vai casar com um jovem rapaz. Antes que me acusem de “sexista” (mais um termo usado para quebrar a espinha dorsal do debate público, semelhante a acusar alguém de pedófilo), o que vou descrever pode acontecer também com um homem, mas é mais comum ser mulher, porque elas ainda são mais financeiramente dependentes e continuam execrando homem sem sucesso profissional, apesar das mentiras das feministas.

Agora imagine que seu marido será um policial honesto até o fim da vida. A chance de ele acabar pobre é enorme. O mesmo pode acontecer, ainda que num grau mais alto em termos financeiros, com qualquer um que venha ocupar um cargo nos variados escalões do governo.

Agora imagine que, no começo, ele seja honesto e com ereção e vigor, e você também seja uma jovem mulher cheia de vida e expectativas. Agora imagine que se passaram 20 anos… 30 anos… O que importa? A honestidade dele ou ele pensar “no bem-estar da família”? Espere, não responda em voz alta, guarde para si a resposta, senão você mentirá na certa.

Por “pensar no bem-estar da família”, quero dizer: roupa, comida boa, escola dos filhos, melhor casa para morar, ajudar os sogros doentes e idosos, viajar para Miami e Paris, apartamento na praia, iPhone, no mínimo para as crianças, carro novo, uma bolsa de marca, ainda que “em conta”, sair com amigos para jantar, levar as crianças para comer pizza no domingo, poder mostrar para os cunhados que você está melhor de vida (isso às vezes vale mais do que tudo na escala da miséria moral de todos nós), viajar de avião, comprar coisas nos EUA, ter TV de 200 polegadas, iPads, enfim, “ter uma vida”.

Em situações de risco, em guerras, a covardia é a regra — ao contrário dos mentirosos que até hoje se dizem filhos de “la résistance française”.

No dia a dia, isso tem outro nome: honestidade não vale nada, o que vale é ter uma “vida decente”: segurança para os filhos, uma esposa feliz porque pode comprar o que quiser (dentro do orçamento, claro, mas quanto menor o orçamento menor o amor…), enfim, um “futuro melhor”.

terça-feira, 16 de outubro de 2012

A desgraça da sala de professores



Texto de um grandessíssimo amigo meu, genial, sobre a horrorosa sala dos professores. Disse o que todos que tem o mínimo de massa encefálica deveriam dizer mas não têm coragem (como eu...):




Eu sou o ser mais preguiçoso da galáxia. Sério. Só estou esperando protocolarem e enviarem meu certificado da associação intergalática.

E andava meio incomodado com o uso do termo nos debates públicos. "Ai que preguiça", cada vez que alguém se depara com uma idéia (I-DÉ-I-A: tirem as mãos do meu acento agudo) muito, muito contrária. Como profissional do ramo fiquei algo agastado com a banalização do termo.

Mas enfim, estou dando aulas em um colégio e estava tomando o clássico café na sala dos professores. E um professor mais que ateu, ateísta, quero dizer, ativista do ateísmo, me saiu com esta:

"Uma aluna disse em aula - mas se deus não existe como é que os gatos têm listras tão bonitas? - eu simplesmente não tive paciência de argumentar. Que preguiça desse tipo de abordagem." Nota: a aluna tem menos de quinze anos.

Tive que sair do meu habitual silêncio:

"É por causa de uns profissionais fraquinhos como você que o mundo tá cheio de gente preguiçosa. Você está ensinando essa garotada desde cedo que existem questionamentos inteligentes e questionamentos burros - os que dão preguiça no intelectual de alto gabarito".

Ele me olhou com aquela cara de "vou contar tudo pra diretora". Pensei "Me fodi". Mas já que tinha começado continuei:

"O questionamento da menina é pra começo de conversa suficientemente poético pra merecer a atenção até de um chimpanzé. Mas o que você não enxerga é que independentemente do conteúdo do questionamento, ele é importante por si só. A gente precisa incentivar a discussão, incentivar a dúvida. Por causa de uns tipinhos que nem você é que os jornais, a TV, os livros e as revistas estão cheias de gente dizendo "aaaaii meo deos, que preguiça dessa gente ignorante, infantil" - porque não vêem importância nos questionamentos em si - só vêem importância nos questionamentos que passam pelo crivo de sua erudição. Tinham que ter aprendido a não ser preguiçosos desde o primário - ou ensino fundamental, como queira."

Meu colega de departamento estava gravando tudo, por isso que estou com o diálogo assim, debaixo dos dedos, palavra por palavra. Ele quer botar no YouTube, mas não vou deixar. Preguiça de ler os comentários depois.



Valeu, querido amigo. Sou sua fã!

Exemplos Terminais - J.P. Coutinho



O que não me mata me fortalece. Assim falava Nietzsche. E assim pensamos nós.

Sempre que o teto desaba, o lema serve de consolo. Se passarmos por isto, chegaremos ao outro lado mais fortes.

Talvez sem o saber, o mais anticristão dos pensadores modernos reatualizava, em linguagem secular, uma velha promessa cristã: a ideia de que existe um sentido último para o calvário da vida. Nietzsche, o supremo iconoclasta, não resistiu à tentação de erguer uma estátua a si próprio.

Christopher Hitchens discorda de Nietzsche. Eu concordo com Hitchens. O sofrimento não nos torna mais fortes. Aquilo que concede uma ilusão de força é a evidência prosaica de que, às vezes, sobrevivemos para contar.

É essa espantosa confluência de alívio e surpresa que alimenta em nós a crença infantil de que estamos um pouco mais indestrutíveis.

Nenhuma dessas ilusões habita "Últimas Palavras" (Globo Livros, R$ 24,90, 96 págs.), que são de fato as últimas palavras que Christopher Hitchens escreveu. Eis o mérito do livro: a doença que o visitou em 2010 e o matou em 2011 --um câncer no esôfago-- não merece nenhum tratado metafísico.

A pergunta não é "por que a mim?", esclarece ele. A pergunta é outra: "E por que não a mim?"

Aceitar essa premissa é a primeira vitória sobre a morte: não há nada que mais enfureça a Velha Senhora do que a forma natural como lhe abrimos a porta.

Claro que o medo e o sentimentalismo espreitam sempre. Hitchens gostaria de assistir ao casamento dos filhos (ainda) pequenos. E de visitar o World Trade Center, novamente ao alto em Manhattan. E de escrever os obituários de Henry Kissinger ou Joseph Ratzinger.

Sem falar do resto: preservar ainda a voz; preservar ainda a capacidade de escrever; preservar, no fundo, um sentido de identidade --ou, no mais literal sentido da frase, de "liberdade de expressão".

Mas as coisas não funcionam assim no planeta câncer. Nesse planeta, tudo é negócio, conta Hitchens: se estivermos dispostos a ceder o paladar, a digestão, a voz, a força anímica, o cabelo, a capacidade de concentração e outras matérias mais íntimas, então talvez tenhamos mais uns meses, ou anos, de vida.

Hitchens aceitou o negócio e, nas páginas seguintes, vai descrevendo todas as etapas da doença --os tratamentos, as esperanças, as desesperanças-- com uma mistura de resignação estoica e elegantíssima ironia. É a segunda vitória sobre a morte: não há nada que mais enfureça a Velha Senhora do que a forma sorridente como a convidamos para tomar chá na sala.

Então os dias passam a ser divididos em duas metades: a manhã para os advogados, as tardes para os médicos. Que o mesmo é dizer: dias repartidos entre a preparação para o pior e a preparação para evitar o pior.

Se Scott Fitzgerald tinha razão ao afirmar que a marca de um intelecto superior está na capacidade de manter duas ideias contraditórias na cabeça e, apesar disso, continuar a funcionar, Hitchens passa no teste com distinção.

Finalmente, o tema inevitável: Deus. Quando se soube da doença, percorreu por um certo mundo crente o frêmito de que a doença era um castigo de Deus a um ateu militante e, atendendo à localização do tumor, vociferante.

Essa foi a primeira versão do regozijo fanático. Mas houve outra, em variação mefistofélica: o câncer era um teste último para que o mais famoso ateu do planeta renunciasse às suas "blasfêmias" e abraçasse uma qualquer espécie de fé, digamos, terminal.

Em relação aos primeiros, Hitchens pergunta, sem o tom histérico de panfletos anteriores, que tipo de Deus seria esse, capaz de fulminar um incréu com algo tão banal e entediante como um câncer. Mais que isso, banal, entediante e teologicamente democrático: santos ou pecadores, todos eles podem conhecer a mesma barca.

Em relação aos segundos, Hitchens prefere evocar Voltaire, que na hora da morte foi convidado a renunciar ao diabo. Resposta do francês: este não é o momento de arranjar novos inimigos.

Voltaire sabia, como Hitchens soube, que a morte não passa de um fato sem grandeza. Porque de nós, do que fomos ou fizemos, tudo o que restará é apenas o exemplo.

segunda-feira, 15 de outubro de 2012

ENXAME DE ABELHAS - Pondé



"Vou me pintar de afrodescendente", gritou irritado um amigo meu carcamano, um apelido carinhoso que espero nunca ser considerado assédio cultural.

Às vezes, à noite, sou atormentado pelo que dizia Paulo Francis: os "frouxos venceram", não vamos poder pensar, dizer, criar, intuir mais nada que não esteja na cartilha dos autoritários. Sob o signo dos ofendidos, cala-se a alma, o humor e a inteligência. Antes era em nome do racismo nazista, do novo homem comunista, das heresias, agora é em nome dos "ofendidos".

Este meu amigo, normalmente, é uma pessoa doce, mas às vezes perde as estribeiras. Outro dia, acabou indo com a esposa e as duas filhas, num domingão quente pra burro, ver a Bienal no Ibirapuera.

Parou o carro longe (claro, trânsito infernal, sem lugar para parar o carro, e chamam isso de lazer...) e teve que fazer as três meninas andarem até o pavilhão sob o Sol, obviamente o culpando por tudo.

A mulher sempre culpa o marido por tudo de forma tranquila e sem pudores. Estas queixas vêm seguidas de beijos, sorrisos e sexo, quando passa a irritação, que numa mulher passa na mesma velocidade da luz em que ela cai no tédio.

Aprendeu uma dura lição: Ibirapuera domingo é para iniciantes (a menos que chova, aí é legal...), pior quando tem Bienal porque aí se junta o povo que quer ter saúde com o povo que quer fingir que gosta de arte. O mundo está dividido em dois grupos: os que gostam de arte e os que gostariam de gostar de arte.

O mesmo vale para jazz, blues e música erudita.

Outro dia ele foi fazer aquele negócio chamado "controlar", mais uma taxa para pagarmos. Esta é "verde". O burocrata técnico recusou seu carro por um detalhe qualquer. Daí, ele teve que começar tudo de novo. A vida, passo a passo, se torna uma teia infernal de controles.

O melhor é não ter carro, não dar emprego a ninguém, não casar, não ter filhos, enfim, negar investimento a um mundo controlado pelos "babacas do bem".

Mas não é disso que quero falar, mas sim da irritação do meu amigo carcamano com o novo edital racista do Ministério da Cultura. Todo mundo ouviu falar do edital para afrodescendentes (não ouso usar qualquer outra expressão por medo de ter minha vida destruída pelos "amantes da liberdade").

Enquanto esses tecnocratas ideológicos não conseguirem criar de fato racismo à la Ku Klux Klan no Brasil, não sossegarão.

A indústria do assédio jurídico cresce e os amantes da liberdade que tanto criticam a maldita ditadura e pedem uma Comissão da Verdade só para um dos lados, gozam com as novas formas de autoritarismo que empesteiam nossas vidas.

O apartheid do bem é a nova invenção do governo. Tanta gente morreu na Segunda Guerra Mundial, tanta gente morreu na mãos dos comunistas, e o fascismo venceu assim como um enxame de abelhas vence: começa devagar, você achando que está lutando apenas contra uma, mas, zumbindo, elas invadem sua casa e sua vida.

No mesmo processo, querem proibir Monteiro Lobato. Adianto que não gosto da obra de Monteiro Lobato, nem ela me marcou na infância. Preferia as aventuras de Abraão, Moisés e Deus. Mas meu gosto pouco importa.

Por que não fazem esses fascistas assistirem à famosa cena em que nazistas queimavam livros na Alemanha de Hitler? O que esses tarados não entendem é que os nazistas também achavam que tinham um bom motivo e que aqueles livros degeneravam as novas gerações. Alguma semelhança?

E ainda, para piorar, quem paga essa farra fascista somos nós. O governo e sua máquina imoral de arrecadação de impostos, este sócio parasita de cada pessoa que trabalha no país, alimenta tecnocratas aos montes deixando que inventem medidas discriminatórias dizendo que são do bem.

O argumento de que somos todos culpados pela escravidão é falso. Não conheço, no meu círculo de pessoas, ninguém que tenha tido escravos ou ganhado dinheiro com a escravidão ou coisa parecida.

Melhor seria este governo fascista criar uma educação decente de uma vez por todas para acabar com a pobreza cultural do país em vez de ressuscitar medidas racistas.

segunda-feira, 8 de outubro de 2012


Vivemos uma vida para doentes mentais. A Romênia já nos deu Cioran, Eliade, Ionesco. Agora nos dá Matéi Visniec, e a É Realizações traduziu várias de suas peças.


Entre elas, "A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais" nos dá a conhecer um medíocre escritor, convidado a contar a história do comunismo a doentes mentais dias antes da morte de Stálin.
Mas, para além do aspecto específico de uma reflexão sobre a conhecida praga do marxismo, chama atenção a reflexão sobre o mal que o autor faz em suas obras, principalmente na face contemporânea e histórica.
Os romenos são grandes "filósofos do mal". Tenho um profundo preconceito por quem acha que não existe o mal. Este tipo de antropólogo de boutique que confunde relativismo cultural com discussão moral séria.
Segundo o que nos dizia Cioran, na Romênia, ninguém se dava ao luxo de suspeitar da existência do mal, porque o fatalismo pessimista daquele povo era por demais "empírico": séculos de violência.
Segundo o autor, o mal em sistemas totalitários é fácil de ser identificado: a perda da liberdade, da privacidade, do horizonte, enfim, do tônus da vontade. Mas, na França em que vive desde seu exílio em 1987, o mal não é tão fácil de ser identificado. Para Visniec, aquilo que as ditaduras marxistas não conseguiram realizar plenamente, a formatação do homem para a condição de gado ou de doente mental, a "liberdade de consumo" das democracias ocidentais estão conseguindo. Este é o "nosso mal".
Como o leitor bem sabe, suspeito de toda crítica à sociedade de mercado quando feita por alguém que supõe conhecer uma melhor forma de vida e que afirma que esta melhor forma passa pelas ideias idiotas que alimenta em sua cabecinha intelectualmente provinciana e autoritária. Mas este não é o caso de Visniec.
Tendo vivido sob o regime totalitário marxista, ele carrega a marca de quem conheceu o mal na intimidade que só a forma banal do cotidiano traz.
Para as sociedade ocidentais funcionarem, temos que comprar. Para comprar no nível que a máquina econômica nos pede, temos que, mais do que comprar, consumir sempre e cada vez mais. Portanto, ao consumirmos "livremente" e com alegria, somos o gado pacificado que os regimes marxistas tentaram criar e não conseguiram. Um cidadão responsável neste mundo afirma sua integridade pagando a conta do Visa em dia.
Só alguém sem alma pode ver um shopping center no fim de semana e não ter vontade de vomitar. Um certo mal-estar com relação à sociedade de consumo é necessário se você quiser manter sua saúde mental em dia. A sociedade que consome sem um mínimo de mal-estar é uma sociedade de doentes mentais.
O problema é que não conhecemos nenhuma experiência histórica real na qual a liberdade política tenha sobrevivido ao extermínio da liberdade de iniciativa econômica.
Por outro lado, a vida humana é precária e tudo tem um custo real. Não conhecemos nenhuma forma de criar ciência, conforto, técnica, direitos humanos sem o uso de dinheiro. E assim voltamos ao consumo: o consumo garante a sobrevivência da economia no nível exigido pelo nosso desejo de conforto, ciência, técnica, direitos humanos.
Visniec se choca com uma Europa que tudo que parece querer é comprar. O Leste Europeu, quando ficou livre, gritou "Prada!". A liberdade conquistada foi para ir ao shopping no fim de semana e comprar toda essa gama de lixo que se compra, com a "boca cheia de dentes esperando a morte chegar...".
Nenhum intelectual parece entender que somos banais como doentes mentais.
Visniec pensa que temos que buscar novas utopias. O interessante é lembrar que a felicidade representada pelo "sou livre para comprar" também foi uma utopia na Europa. O euro é o nome dessa utopia.
Melhor abrirmos mão da ideia de utopia. Quanto mais rápido desistirmos de um mundo melhor, mais rápido perceberemos que a consciência, de fato, é um ônus.
E também, como dizia Yeats, "os melhores não têm convicções enquanto que os piores estão sempre cheios de intensidade passional". O desafio hoje é pensar sem utopias.

Uma vida para doentes mentais - Pondé


Vivemos uma vida para doentes mentais. A Romênia já nos deu Cioran, Eliade, Ionesco. Agora nos dá Matéi Visniec, e a É Realizações traduziu várias de suas peças.


Entre elas, "A História do Comunismo Contada aos Doentes Mentais" nos dá a conhecer um medíocre escritor, convidado a contar a história do comunismo a doentes mentais dias antes da morte de Stálin.
Mas, para além do aspecto específico de uma reflexão sobre a conhecida praga do marxismo, chama atenção a reflexão sobre o mal que o autor faz em suas obras, principalmente na face contemporânea e histórica.
Os romenos são grandes "filósofos do mal". Tenho um profundo preconceito por quem acha que não existe o mal. Este tipo de antropólogo de boutique que confunde relativismo cultural com discussão moral séria.
Segundo o que nos dizia Cioran, na Romênia, ninguém se dava ao luxo de suspeitar da existência do mal, porque o fatalismo pessimista daquele povo era por demais "empírico": séculos de violência.
Segundo o autor, o mal em sistemas totalitários é fácil de ser identificado: a perda da liberdade, da privacidade, do horizonte, enfim, do tônus da vontade. Mas, na França em que vive desde seu exílio em 1987, o mal não é tão fácil de ser identificado. Para Visniec, aquilo que as ditaduras marxistas não conseguiram realizar plenamente, a formatação do homem para a condição de gado ou de doente mental, a "liberdade de consumo" das democracias ocidentais estão conseguindo. Este é o "nosso mal".
Como o leitor bem sabe, suspeito de toda crítica à sociedade de mercado quando feita por alguém que supõe conhecer uma melhor forma de vida e que afirma que esta melhor forma passa pelas ideias idiotas que alimenta em sua cabecinha intelectualmente provinciana e autoritária. Mas este não é o caso de Visniec.
Tendo vivido sob o regime totalitário marxista, ele carrega a marca de quem conheceu o mal na intimidade que só a forma banal do cotidiano traz.
Para as sociedade ocidentais funcionarem, temos que comprar. Para comprar no nível que a máquina econômica nos pede, temos que, mais do que comprar, consumir sempre e cada vez mais. Portanto, ao consumirmos "livremente" e com alegria, somos o gado pacificado que os regimes marxistas tentaram criar e não conseguiram. Um cidadão responsável neste mundo afirma sua integridade pagando a conta do Visa em dia.
Só alguém sem alma pode ver um shopping center no fim de semana e não ter vontade de vomitar. Um certo mal-estar com relação à sociedade de consumo é necessário se você quiser manter sua saúde mental em dia. A sociedade que consome sem um mínimo de mal-estar é uma sociedade de doentes mentais.
O problema é que não conhecemos nenhuma experiência histórica real na qual a liberdade política tenha sobrevivido ao extermínio da liberdade de iniciativa econômica.
Por outro lado, a vida humana é precária e tudo tem um custo real. Não conhecemos nenhuma forma de criar ciência, conforto, técnica, direitos humanos sem o uso de dinheiro. E assim voltamos ao consumo: o consumo garante a sobrevivência da economia no nível exigido pelo nosso desejo de conforto, ciência, técnica, direitos humanos.
Visniec se choca com uma Europa que tudo que parece querer é comprar. O Leste Europeu, quando ficou livre, gritou "Prada!". A liberdade conquistada foi para ir ao shopping no fim de semana e comprar toda essa gama de lixo que se compra, com a "boca cheia de dentes esperando a morte chegar...".
Nenhum intelectual parece entender que somos banais como doentes mentais.
Visniec pensa que temos que buscar novas utopias. O interessante é lembrar que a felicidade representada pelo "sou livre para comprar" também foi uma utopia na Europa. O euro é o nome dessa utopia.
Melhor abrirmos mão da ideia de utopia. Quanto mais rápido desistirmos de um mundo melhor, mais rápido perceberemos que a consciência, de fato, é um ônus.
E também, como dizia Yeats, "os melhores não têm convicções enquanto que os piores estão sempre cheios de intensidade passional". O desafio hoje é pensar sem utopias.

segunda-feira, 1 de outubro de 2012

As avós, essas gostosas - Pondé


Já disse e repito: cem anos atrás se fazia sexo mais e melhor do que hoje. Talvez a culpa desta minha obsessão pela vida sexual antiga seja das minhas avós.




Minha avó materna casou grávida em mil novecentos e bolinha, trabalhou como uma dessas telefonistas sensuais no começo século 20, e falava de sacanagem até os cem anos de idade, e meu avô foi louco por ela até o fim da vida. A paterna foi a primeira (ou uma das primeiríssimas) sufragistas do Brasil, fazendo um recurso ao Poder Judiciário em 1928 pedindo direito ao voto.

Sendo assim, descendo de uma linhagem direta de avós que fundaram a emancipação feminina no Brasil, naquilo que importa: na cama e na urna.

Há 100 anos se fazia sexo mais e melhor do que hoje. Claro, esta é uma afirmação não científica, aviso aos especialistas em estatísticas comparativas da atividade sexual nos últimos 5.000 anos.

Mas como dizia o personagem do subsolo do "Memórias do Subsolo", de Dostoiévski, acreditar na ciência é uma forma de superstição. Não sofro da superstição de crer em demasia nas ciências humanas.

Mas voltando ao que eu queria dizer mesmo, tampouco sofro de outra superstição: não creio na revolução sexual. Melhor dizendo: creio sim na pílula anticoncepcional e no Viagra. O casal "cor de rosa e azul" que fez pelo mundo muito mais do que 200 anos de marxismo.

Aliás, às vezes, em dias depressivos, sou atormentado pela ideia de que o marxismo nunca vai acabar, e aí tomo outras pílulas essenciais, as que combatem este mal imortal da alma, a melancolia.

Sou um tipo basicamente superficial, acho que a psicofarmacologia é o caminho mais curto para resolver os dramas da alma. Mas, minto: nem por isso deixo de crer que uns 30 anos de análise fazem muito bem.

Antes da pílula, as meninas de classe social mais alta, digamos, as colegas da escola, tinham medo de ficar grávidas, por isso praticavam largamente apenas sexo oral e anal. Uma festa. As pobres sempre fizeram de tudo, mesmo porque, como se dizia, uma barriga de um rapaz rico pode garantir uma vida.

A "questão do sexo anal feminino" só nasceu depois da pílula, porque antes era comum como beber água. Agora, os especialistas discutem se sexo anal é saudável e satisfatório para as mulheres. Antes da pílula esta discussão soaria como se é saudável e satisfatório respirar.

O efeito da pílula criando a "ciência do sexo anal feminino", isto é, fazendo do sexo anal feminino uma "questão", é semelhante ao efeito dos cursos de espanhol no Brasil. Absurda comparação? Nem tanto, vejamos.

Antes desses cursos, ninguém achava espanhol uma "língua estrangeira", na universidade todo professor dava texto em espanhol e nenhum aluno gemia. Agora, depois do Yázigi inventar curso de espanhol, o espanhol virou "língua estrangeira". Depois que a pílula libertou o útero da mulher, sexo anal feminino virou uma "questão".

Para mim, a revolução sexual é isso: alguns fatos concretos que as ciências "duras" criaram, e um monte de blá-blá-blá que surgiu a partir daí.

As avós desfilavam o pudor como acessório de sensualidade, com sua cinta liga, sua combinação e lingerie cotidiana. Hoje, mulheres peladas da cabeça aos pés desfilam sua obviedade nua, gritando que são "livres" e não santas ou putas, esquecendo-se que as santas e as putas é que são as mais gostosas.

Mas a ignorância sobre sexo é típica dos especialistas "fundadores" da moderna ciência do sexo.

Bobagens como as ditas pela antropóloga Margaret Mead acerca da adolescência "sexualmente livre e saudável" da enorme e significativa população de Samoa levaram muita gente a crer que basta deixar a moçada transar muito desde os 11 anos que tudo ficará bem.

Outro exemplo é Alfred Kinsey e sua afirmação de que os constrangimentos impostos à vida sexual são a causa de todo sofrimento humano. Para ele, não deveria existir "fronteiras" para a atividade sexual humana.

Gente assim pensa que o único problema de fazer sexo com galinhas seja o fato de não ser consensual. Risadas?

Que nossas avós nos perdoem por sermos tão ridículos.

segunda-feira, 24 de setembro de 2012

Contra os comissários da ignorância - Pondé

O que é conservadorismo? Tratar o pensamento político conservador (“liberal-conservative”) como boçalidade da classe média é filosofia de gente que tem medo de debater ideias e gosta de séquitos babões, e não de alunos.

Proponho a leitura de “Conservative Reader” (uma antologia excelente de textos clássicos), organizada pelo filósofo Russel Kirk. Segundo Kirk, o termo começou a ser usado na França pós-revolucionária.

Edmund Burke, autor de “Reflexões sobre a Revolução na França” (ed. UnB, esgotado), no século 18, pai da tradição conservadora, nunca usou o termo. Tampouco outros três pensadores, também ancestrais da tradição, os escoceses David Hume e Adam Smith, ambos do século 18, e o francês Alexis de Tocqueville, do século 19.

Sobre este, vale elogiar o lançamento pela Record de sua biografia, “Alexis de Tocqueville: O Profeta da Democracia”, de Hugh Brogan.

Ainda que correta a relação com a Revolução Francesa, a tradição “liberal-conservative” não é apenas reativa. Adam Smith, autor do colossal “Riqueza das Nações”, fundou a ideia de “free market society”, central na posição “liberal-conservative”. Não existe liberdade individual e política sem liberdade de mercado na experiência histórica material.

A historiadora conservadora Gertrude Himmelfarb, no seu essencial “Os Caminhos para a Modernidade” (ed. É Realizações), dá outra descrição para a gênese da oposição “conservador x progressista” na modernidade.

Enquanto os britânicos se preocupavam em pensar uma “sociologia das virtudes” e os americanos, uma “política da liberdade”, inaugurando a moderna ciência política de fato, os franceses deliravam com uma razão descolada da realidade e que pretendia “refazer” o mundo como ela achava que devia ser e, com isso, fundaram a falsa ciência política, a da esquerda. Segundo Himmelfarb, uma “ideologia da razão”.

O pensamento conservador se caracteriza pela dúvida cética com relação às engenharias político-sociais herdeiras de Jean-Jacques Rousseau (a “ideologia da razão”).

Marx nada mais é do que o rebento mais famoso desta herança que costuma “amar a humanidade, mas detestar seu semelhante” (Burke).

O resultado prático desse “amor abstrato” é a maior engenharia de morte que o mundo conheceu: as revoluções marxistas que ainda são levadas a sério por nossos comissários da ignorância que discutem conservadorismo na cozinha de suas casas para sua própria torcida.

Outro traço desta tradição é criar “teorias de gabinete” (Burke), que se caracterizam pelo seguinte: nos termos de David Hume (“Investigações sobre o Entendimento Humano e sobre os Princípios da Moral”, ed. Unesp), o racionalismo político é idêntico ao fanatismo calvinista, e nesta posição a razão política delira se fingindo de redentora do mundo. Mundo este que na realidade abomina na sua forma concreta.

A dúvida conservadora é filha da mais pura tradição empirista britânica, ao passo que os comissários da ignorância são filhos dos delírios de Rousseau e de seus fanáticos.

No século 20, proponho a leitura de I. Berlin e M. Oakeshott. No primeiro, “Estudos sobre a Humanidade” (Companhia das Letras), a liberdade negativa, gerada a partir do movimento autônomo das pessoas, é a única verdadeira. A outra, a liberdade positiva (abstrata), decretada por tecnocratas do governo, só destrói a liberdade concreta.

Em Oakeshott, “Rationalism in Politics” (racionalismo na política), os conceitos de Hume de hábito e afeto voltam à tona como matrizes de política e moral, contra delírios violentos dos fanáticos da razão.

No 21, Thomas Sowell (contra os que dizem que conservadores americanos são sempre brancos babões), “Os Intelectuais e a Sociedade” (É Realizações), uma brilhante descrição do que são os comissários da ignorância operando na vida intelectual pública.

Conservador não é gente que quer que pobre se ferre, é gente que acha que pobre só para de se ferrar quando vive numa sociedade de mercado que gera emprego. Não existe partido “liberal-conservative” no Brasil, só esquerda fanática e corruptos de esquerda e de direita.