quinta-feira, 21 de março de 2013

Helena não tem culpa - Pondé

Dias atrás, uma amiga, alta executiva paulista, radicada no Rio, me mandou um e-mail com a cópia de uma resenha sobre um livro (fruto de pesquisa de campo) de um antropólogo,
Napoleon Chagnon, que estudou os índios ianomâmis no Brasil e na Venezuela por muitos anos.

Suas conclusões não são aquelas que a comunidade acadêmica, ideologicamente orientada na sua quase totalidade, costuma gostar.

Quem sabe, este "desgosto ideológico dos pares" (gente ávida por destruir oponentes teóricos) tenha sido responsável pelos desdobramentos negativos que o antropólogo teve em sua vida profissional por conta desta pesquisa.

O livro ("Noble Savages"), que logo comprei, deveria ser lido nas escolas. Um tratado contra a tradição marxista, não só em antropologia, mas em tudo mais. Mas o que especificamente tem esse livro contra esta tradição?

Engana-se quem pensa que a tradição marxista comece com Marx, ela começa com Rousseau e seu bom selvagem. O princípio é que o homem é bom e a sociedade é que o perverte. A perversão do bom selvagem pelo "Das Kapital" é apenas uma decorrência do principio do Rousseau, só que para Marx não partimos do bom selvagem, mas sim chegaremos a ele quando superarmos esta sociedade má.

Uma ideia assim (que somos bons e a sociedade nos corrompe, e aqui você pode colocar no lugar de "sociedade" a família, o patriarcado, a igreja, o capital, os EUA, o patrão, seu pai autoritário) faz almas fracas gozarem de prazer. Porque o que ela diz é que, ao final, não sou responsável por nada que faço. Não fosse pela "sociedade", eu seria um homem bom.

Ao contrário do que parece, essa tradição pegou porque alimenta algo de muito banal: que somos homens bons em nossa natureza essencial. Esta ideia alimenta nossa vaidade e não foi por outro motivo que Burke, filósofo britânico do século 18, chamava Rousseau de "filósofo da vaidade".

Nossa origem é o bom selvagem? É por isso que australianos que não têm o que fazer se pintam de aborígenes e gritam por aí? Quanta bobagem! Quanto lixo escrito com tinta cara!

Também concordo que devemos olhar para o "passado" para entendermos como somos hoje. A diferença é que minha ideia de "estado natural do homem" é diferente da de Rousseau, o filósofo da vaidade. Partilho da ideia que para nos entendermos devemos olhar para a pré-história de fato, e não a mítica, como a do Rousseau.

Este mito alimenta uma outra bobagem: a ideia de que toda diversidade cultural é linda. "Viva a diferença!", dizem os festivos por aí.

A "humanidade", na sua capacidade frágil de não ser bicho malvado, foi tirada das pedras, à custa de muito sangue. Sempre bebemos o sangue dos outros no café da manhã.

E aí voltamos ao livro. A conclusão de Chagnon é que os ianomâmis, parentes nossos que vivem muito perto do que seria o neolítico, tribos que permaneceram bastante "puras" enquanto outras já haviam sido "contaminadas pela maldade do homem branco" (risadas?), sempre se mataram por uma razão nada complexa: "mulher, mulher, mulher".

Inclusive, quem tinha mais mulher, tinha mais descendentes.

Qualquer evolucionista gargalharia diante de tamanha obviedade ocultada pelas interpretações ideológicas pueris da falsa história do bom selvagem.

Os ianomâmis também têm suas Helenas de Troia. Entre eles, quem matava mais tinha mais mulher. Entre nós, quem é mais "adaptado" tem mais mulher.

Não se trata de culpar as mulheres porque são filhas de Eva. Responsabilizar a mulher pelos males do mundo é coisa de homem brocha que, por não conseguir penetrá-la, recorre à falsa culpa feminina para aplacar sua desgraça.

Reconhecer que os ianomâmis se matam em troca de mulheres (ou se matavam enquanto eram "puros" ou "bons selvagens") não é uma prova contra as mulheres. É uma prova contra Rousseau e sua tradição do bom selvagem.

Eu, pessoalmente, acho até uma boa causa. Quero dizer, nos matarmos por mulheres. Neste caso, o troféu é bem concreto e todo mundo sabe de seu "valor de uso".

Isto é, não precisamos de provas metafísicas para reconhecer o valor de uma mulher.

domingo, 17 de março de 2013

O último papa - Leandro Karnal


No apogeu do papado medieval, Inocêncio 3º (século 13) tinha poder de excomungar e depor reis, interditar o paraíso a um país inteiro, convocar cruzadas contra heréticos e islâmicos e liderar concílios que movimentavam toda a geopolítica europeia. Na verdade, Inocêncio fez quase tudo isso. Dono de um poder internacional enorme, o bispo de Roma representava o topo simbólico de uma longa cadeia de mandos.

A julgar pela imprensa, nada mudou depois de 800 anos. A renúncia de um papa e a eleição de outro hipnotizou quase toda mídia ocidental. Mas... as notícias anteriores indicavam uma igreja numericamente em declínio. Havia escândalos sexuais e financeiros por todo lado. Mesmo assim, o conclave de 2013 recebeu atenção ainda maior do que em 2005 ou 1978. O que aconteceu?

No mundo líquido atual, uma instituição com quase 2.000 anos chama atenção. Pompa, hierarquia e pretensão metafísica combinadas são quase insuperáveis. A capilarização da igreja ainda é notável, das paróquias aos orfanatos, especialmente no Brasil. Para o bem e para o mal, a terra de Santa Cruz foi concebida católica. Sua maior cidade, São Paulo, foi batizada pela ordem do atual papa Francisco, os jesuítas.

O conclave de 2013 surpreendeu com um papa argentino e da Companhia de Jesus. Há lições do episódio. Os jornais torciam abertamente por um brasileiro, como o fez a imprensa das Filipinas. Isso mostra o ranço nacionalista.

Mas, esqueceram-se de sondar os eleitores, cuja lógica só pode ser decifrada pelos afrescos de Michelangelo na Capela Sistina. Os "papabili" da imprensa não coincidiram com os dos votos purpurados. Nacionalismo é fato do 19; ontem para a Igreja Católica. A lição deveria ser entendida: esse grupo vê, mas não joga para a torcida, mesmo sendo ainda a maior torcida do planeta.

Segunda lição: a Igreja Católica não está numa crise; ela vive numa crise desde sua origem. Denúncias de pedofilia seriam piores do que o papa Júlio 3º viver em meio a garotos de programa? Escândalos financeiros atuais seriam maiores do que a ousadia de Leão 10º para vender indulgências? O conservadorismo atual seria mais denso do que o do beato Pio 9º, que considerou até a democracia condenável?

Aparentemente, o repertório histórico do papado faz com que seja impossível criar nova virtude ou vício que já não tenha um predecessor mais notável. A igreja vive e sobrevive entre crises. O balanço do barquinho na tempestade do mar da Galileia virou ciclone constante. E "la nave va"... Talvez o niilismo contemporâneo talvez seja atraído por fundamentalismos, ou até os estimule.

Última lição do conclave: a Igreja Católica e o papado despertam emoções polares. Os que já a amavam destacam que o papa pegava transporte público e cozinhava sua comida. Seria humildade, como se canalhas não pudessem estar num metrô ou serem cozinheiros.

Os detratores trouxeram à tona conhecidas denúncias sobre as relações de Bergoglio com a ditadura argentina. Seus inimigos e fãs apenas continuam alimentando o fogo das vaidades e, querendo ou não, mantêm a igreja no lugar que ela mais deseja: no centro da mídia.

Profetas canhestros determinaram que o último pontífice seria o "papa negro". O superior geral dos jesuítas tinha esse título não oficial. O hábito da ordem de Inácio era dessa cor. Um papa jesuíta, e ainda sendo o último da lista de são Malaquias, só pode indicar o fim dos tempos. Os maias estão desacreditados nesse campo.

Cumpre-se uma ironia que não escapará ao humor tupiniquim: a Igreja Católica sobreviveu a tudo, menos a um argentino. Iremos ao apocalipse com esse sorriso nos lábios.

Mas, se o mundo não acabar (como teima em fazê-lo), iremos a novo conclave. Haverá apostas certeiras sobre as chances enormes de um cardeal brasileiro, de um africano e do conhecido arcebispo de Milão... Deve ser melancólico ser eterno.

LEANDRO KARNAL, 50, é professor de história na Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) e autor de "Teatro da Fé" (Hucitec) e "Conversas com um Jovem Professor" (Contexto)