sábado, 2 de março de 2013

Os tapeceiros de Argo - Álvaro Pereira Junior


Acho que estou meio atrasado nessa, mas se você se interessa por roteiros de cinema, tenho uma proposta: além de ver "Argo", Oscar de melhor filme, que tal ler a reportagem da revista americana "Wired" que o inspirou? Fácil, aqui: http://goo.gl/f1xbr. Em inglês, infelizmente, mas o esforço compensa.

Cotejar fato e ficção vale por uma aula de narrativa hollywoodiana. Detalhes que, no artigo original, não mereceram mais que três linhas viram elementos cruciais do roteiro. Momentos anticlimáticos da vida real são puro suspense na versão para as telas. Situações são inventadas para que o espectador mergulhe de fato na história.

Podem-se criticar as liberdades tomadas pelo roteirista, Chris Terrio. Mas não as vejo como falsificações históricas. São artifícios legítimos para impulsionar a narrativa. O filme não é um documentário. Apresenta-se como "baseado em fatos reais". Não engana ninguém.

Para quem ainda não viu, vai aqui um resumo, com o alerta de que entrega um pouco do final.

Irã, 1979. Os seguidores do aiatolá Khomeini, recém-instalados no poder, invadem o complexo diplomático dos EUA em Teerã. Disparando uma crise que duraria 444 dias, fazem reféns 52 funcionários, equipe completa. Ou quase, porque seis americanos conseguiram escapar. Trabalhavam em um prédio anexo que tinha saída direta para a rua.

"Argo" e a reportagem de Joshuah Bearman, na "Wired", contam a história dos esforços de espionagem para tirar do Irã esses fugitivos, hospedados secretamente na casa do embaixador do Canadá.

Um agente da CIA, Tony Mendez, entra no Irã se fingindo de produtor de um filme de ficção científica em busca de locações no país. Enrola uns dias na capital e, na hora de sair, traz consigo os fugitivos, dizendo que faziam parte de sua equipe. Será que vai colar?

A história real, de tão delirante, é daquelas de bater o olho e decretar que daria filme. Mas, do ponto de vista de roteiro, tem um problema grave: o final chocho. A saída do país foi fácil. Ninguém no aeroporto deu muita bola para os gringos. Embarcaram tranquilos.

Agora, tente se imaginar no lugar do roteirista de "Argo". Ele lê o texto da "Wired" e pensa: OK, história saborosa, mas só até certo ponto. Como imprimir ritmo e suspense à parte final?

Aí entra, a meu ver, a grande sacada do filme. A reportagem cita de passagem a convocação, pelos invasores da embaixada, de crianças tapeceiras. Acostumadas a lidar com fios que, unidos, fazem surgir os desenhos complexos da tapeçaria persa, foram chamadas para tentar reconstruir documentos que os americanos, às pressas, tinham picotado no começo da confusão.

O que era só um detalhe na história verdadeira acaba brilhando no roteiro de "Argo". Em cenas espalhadas pelo filme, surge a molecada tentando juntar os pedacinhos de papel, como fios de um tapete. E não são documentos quaisquer, mas as fotos dos funcionários americanos, para conferir se todos estão mesmo nas mãos dos sequestradores. Se aparecer um retrato de alguém que não está na embaixada, é porque conseguiu escapar. Precisa ser capturado.

O roteiro amarra tudo isso maravilhosamente no segmento final, o chamado "terceiro ato". Os meninos tecelões estão prestes a reconstruir uma foto. E se for de um dos fugitivos? E se ficar pronta bem na hora em que ele estiver tentando passar na imigração do aeroporto?

Na vida real, a ação dos tapeceiros mirins não teve tanta importância. No roteiro, ganhou força e poder de condução narrativa. Funciona como "lifeline", linha de apoio. Ainda que o espectador perca interesse na história principal, espera-se que o fato de o filme sempre voltar para aqueles meninos vá intrigá-lo e prender sua atenção. Os garotos vão mesmo reconstruir as fotos? E, se conseguirem, para que isso vai servir?

Os minutos finais são os mais exasperantes, nada a ver com o anticlímax da história real. Na ficção de "Argo", a passagem dos fugitivos pelo aeroporto é um desespero, cheia de percalços. Culmina com uma perseguição eletrizante mesmo para quem já tinha lido a reportagem e sabia o final (meu caso).

Patriotada americana, conspiração pró-CIA etc. Os críticos movidos só por ideologia podem atirar todas essas pedras em "Argo". Só não podem negar o ritmo e a consistência do roteiro. No arcabouço do cinema comercial de Hollywood, difícil fazer melhor.

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

Uma nova ciência moral - Pondé


Ouvi uma dessas mulheres livres, dona de seu nariz e de seu corpo, dizer: "Que falta que faz um canalha!".

Recentemente, um grande especialista e prático da alma humana, um terapeuta, me dizia se escandalizar com o fato de que mulheres inteligentes e emancipadas falam em consultórios de psicanalistas que querem que os homens as chamem de cachorras e as tratem como vagabundas na cama.

Como se escandalizar com o óbvio? Quem foi que disse que as mulheres não gostam de se sentirem vagabundas no sexo? Só quem, mui catolicamente, imaginou que querer ser tratada como vagabunda no sexo fosse fruto de opressão machista. Risadas?

O que é um canalha? Refiro-me ao conceito de canalha. Um kantiano diria "o canalha em si".

Claro, kantianos são pessoas que pensam que o mundo é o que eles pensam que é; no fundo, o kantiano é um puritano da razão aos olhos de qualquer cético. Sua "crítica da razão prática" nada mais é do que um canto monótono semelhante aos cantos das igrejas calvinistas.

Qualquer um sabe que canalhas evoluem historicamente, como tudo mais. O grande personagem Palhares, do Nelson Rodrigues, esse filósofo brasileiro, é um tipo de canalha que não existe mais: o canalha romântico e sincero (que faz falta), apesar de que ele já identificara a necessidade de o canalha evoluir. Diriam os especialistas que Palhares tinha um claro "senso histórico".

Palhares mordeu o pescoço da cunhada caçula no corredor. E cunhadas gostosas são o segredo de um bom casamento. Palhares dizia que um canalha em sua época, os anos 1960, deveria evoluir para continuar a ser um bom canalha.

No caso dele, isso significava assimilar os avanços da psicologia, levando suas vítimas para terapias de nudez e também para reuniões do Partido Comunista. Um canalha, afinal, deveria estar em dia com a sua época.

Importantíssimo, no entendimento de nosso querido Palhares, seria um canalha entender que ser católico não ajudava mais ninguém a pegar mulher porque assustaria a presa. A sinceridade do Palhares estava no fato de ele se reconhecer canalha por vontade própria.

Hoje em dia, o canalha "avançou" muito. Ele identifica "causas externas" para sua condição de canalha, ou, melhor ainda, não reconhece sua condição de canalha; julga-se apenas um homem cumprindo seu "papel social".

Imagine um livro chamado "Tipologia do Canalha: Como Identificar o Seu". Puro best-seller!

Por exemplo, o livro descreveria o canalha institucional, que é o canalha que faz suas baixarias dizendo que é em nome do coletivo.

Normalmente, adora a hierarquia e a burocracia.

É o tipo que, segundo o psicólogo americano Philip Zimbardo, autor do excepcional livro "O Efeito Lúcifer" (Record), se adaptaria bem às condições de horror em sistemas totalitários com justificativa institucional. Sentiria que o horror que causa é simplesmente fruto de respeito à burocracia.

Existem também os canalhas sociais. Estes são aqueles que justificam seus atos via condições sociais em que vivem, dizendo coisas como "a escola em que estudei fez de mim um canalha, por mim seria diferente".

Conhecemos também os canalhas democráticos. Estes são aqueles que justificam seus atos porque combatem em defesa do povo. Este tipo é aquele que, por exemplo, sustenta a corrupção do Estado dizendo que está lutando pela justiça social.

Primo de primeiro grau deste último é o canalha militante, este tipo que agrediu a blogueira cubana Yoani Sánchez, acusando-a de ser paga pela CIA. A marca deste é jamais ouvir nada que discorde de sua religião.

Há também o canalha científico. Este afirma que as neurociências provaram que ser canalha é função de certa área do cérebro, resultado de herança evolucionária e genética.

Um tipo especialmente "fofo" é o canalha livre. Suspeito ser este o mais avançado de todos.

Quando indagados acerca de seu comportamento, afirmam que agem do modo que agem porque sempre foram uma minoria oprimida e agora podem exercer sua canalhice livremente. A frase lapidar deste tipo de canalha é: "Todos têm direito de ser o que são; eu tenho o direito de ser canalha".

domingo, 24 de fevereiro de 2013

Silver Linings Playbook


Não tinha expectativa nenhuma para Silver Linings Playbook (com o horroroso título em português de O lado bom da vida, argh). Mas posso afirmar que superaria qualquer expectativa que quiça existisse.
A câmera rápida conduz o roteiro: o que sobre de humano no ser depois de algumas rasteiras da vida? Um casamento desfeito pela traição e outro pela morte. Nada demais. Nem de tão pouco assim.
Afinal, do que é feita a realidade e a sanidade mental dos casais que se amam ou pensam se amar? A vida seria muito mais fácil se essas respostas fossem claras e diretas. Mas não é. E é assim que a vida segue: destroçada cotidianamente por nossas relações, mas reconstruída quantas vezes o coração suportar.