quarta-feira, 2 de abril de 2014

Queimando hereges - J.P. Coutinho


1.
A ESQUERDA gosta de romantizar o povo. Exceto quando o povo é pouco romântico e expressa o que realmente pensa sobre o mundo.

Uma enquete do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) horrorizou algumas consciências "finas" com as opiniões do povo sobre a violência contra as mulheres.
Simplifico: dentro de casa, é feio bater. Mas, fora de casa, quando o crime é sexual, as mulheres têm culpa no cartório. Números: 65% dos brasileiros concordam que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Um aiatolá no Irã não diria melhor. E 58,5% consideram que "se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros". Um aiatolá no Irã, idem.

É justo concluir que, para a maioria dos brasileiros, o ideal seria que as mulheres usassem burca. O clima brasileiro não permite essas mumificações? Isso não é desculpa. Quem aguenta o calor persa, também aguenta o calor tropical.

A pesquisa é interessante porque revela um dos problemas centrais da política moderna: como defender um regime democrático das "tiranias da maioria"?

Certo: a democracia pode ser o governo do povo, para o povo e pelo povo. Mas o que fazer quando o povo apoia a pena de morte, deseja perseguir homossexuais ou, no caso da pesquisa, tolera estupros contra mulheres de minissaia?

Eis o desafio que os pais fundadores dos Estados Unidos enfrentaram. E a resposta deles, contida nos "Federalist Papers" (uma coletânea de ensaios em defesa da ratificação da Constituição) continua válida, mais de 200 anos depois: a única forma de impedir o perigo das "facções" (um termo caro a James Madison) passa pela defesa de um sistema de governo representativo.

Que o mesmo é dizer: o povo não decide diretamente os assuntos da comunidade; o povo apenas elege os seus representantes para que sejam eles a filtrar a opinião da maioria, decidindo de acordo com um julgamento mais ponderado e informado.

Os herdeiros de Rousseau, que deploram a "democracia representativa" e têm orgasmos com a "democracia direta", deveriam escutar mais vezes as aberrações que o povo defende.

2.
Um amigo viaja para São Paulo e pergunta-me se a cidade é segura. Digo que sim, apesar de já ter sido assaltado à mão armada no lobby de um hotel. "Foi um caso isolado nas duas dezenas de viagens que fiz pelo Brasil", acrescento.

Ele fica mais descansado e depois, passando os olhos pelas notícias da internet, lê a história bizarra de uma cabeça humana encontrada junto da Sé. Cancelou a viagem.

Que exagero, meu Deus! Até porque existem coisas piores que uma cabeça cortada. Por exemplo, ter várias cabeças intactas, mas sem nada lá dentro.

Aconteceu com alunos da USP: um professor de geografia, André Martin, terá dito em plena aula que só as tropas brasileiras poderiam pôr ordem na "macacada" do Haiti.

Os alunos consideraram a palavra ofensiva: "macacada", para eles, é um insulto racista aos haitianos. Para mim, que tenho dicionários em casa, "macacada" significa, no contexto da frase, "turba", "multidão desgovernada", "caos" etc.

Segundo "O Estado de S. Paulo", o professor ainda tentou convencer a turma com esses sinônimos. A turma não se convenceu. O professor, em desespero de causa, terá então dito que "macacada" é o termo que o imperialismo americano usaria para intervir arrogantemente no Haiti. A turma não se comoveu com essa prova de esquerdismo do professor. Onde é que eu já vi isto?

Obviamente, em Philip Roth e no seu magistral "A Marca Humana": Coleman Silk também é um professor que usa a palavra "spooks" ("assombrações") para se referir a dois alunos negros que faltam sistematicamente às aulas (e que ele nem conhece). O problema é que "spooks" era o termo cruel com que os negros americanos eram tratados no tempo da segregação.
No livro, a carreira de Coleman é destruída pelos seus colegas universitários, que transformam uma palavra vulgar em ofensa invulgar.

Espero que o fim de André Martin não seja tão dramático. Mas este caso só confirma a regra. O problema do pensamento politicamente correto é funcionar como as antigas inquisições: encontrando heresias onde elas não existem; e queimando os hereges quando eles não merecem.

segunda-feira, 31 de março de 2014

Melhor Impossível? - Pondé


Você lembra do filme com Jack Nicholson chamado "Melhor É Impossível"? Há uma cena em que ele, um obsessivo-compulsivo (diríamos, um caso grave de TOC), de repente, saindo do analista, se dá conta: "E se melhor do que isso for impossível?". Referia-se a seu quadro tenso, cheio de rituais obsessivos, mas rasgado por um esforço cotidiano de enfrentá-lo.

Pois bem, outro dia, em meio a uma aula com alunos de graduação, discutindo se é melhor ser religioso ou não, essa questão apareceu: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". Ou: "E se uma vida melhor for impossível de se conseguir?". Que vida é essa da qual falávamos? O que pensa um jovem de 20 anos acerca do que seja qualidade de vida?

A questão se apresentou quando ouvíamos uma menina, religiosa, dizer o quanto melhor era a qualidade de vida que se tinha vivendo dentro de uma comunidade religiosa. Melhores amizades, melhor namoro, meninos mais honestos, melhores férias, melhor convívio com os pais, enfim, melhor tudo que importa, apesar de nunca ser perfeito.

Os semiletrados pensam que jovens gostam de ser "livres".

Risadas? Jovens querem famílias estáveis, casa com segurança, futuro garantido, um grupo para dizer que é seu, códigos que os definam de forma clara e distinta, enfim, de um quadro de referências que torne o mundo significativo e seu.

Quando encontram, aderem de forma muito mais direta do que pessoas com mais de 30. Estas já começam a entrar no desgaste cético que a vida impõe a todos nós. Da louça que lavamos, do sexo meia boca que fazemos à arte que cultivamos.

Basta ver o caráter dogmático do movimento estudantil pra ver esse tipo de adesão direta e sem medo dos jovens. Às vezes temo que mais atrapalhamos os jovens do que os ajudamos com o conjunto de exigências que fazemos a eles: sejam diferentes, mudem o mundo, rompam com tudo, inventem-se. Woodstock foi um surto do qual eles já se curaram, mas nós não.

Mas, de volta a: "E se a vida não puder ser melhor do que isso?". O problema era: É melhor viver sem religião ou viver aceitando um código religioso claro?

E vejam: no dia a dia, os poucos jovens religiosos que conheço no meio que frequento costumam ser melhores alunos, mais atentos ao que se fala em sala de aula, menos inseguros com relação a temas como sexo, drogas e rock and roll, assim como também quando se fala de futuros relacionamentos. Enfim, parecem saber mais o que querem e serem menos permeáveis às modinhas bobas que existem por aí.

A conclusão parece ser que uma adesão a uma vida religiosa sem exageros de contenção de comportamento nutre mais esses meninos e meninas ao redor dos 20 anos do que a parafernália de teorias que a filosofia ou as ciências humanas produziram nos últimos séculos.

É como se as religiões tradicionais (como digo sempre, se você quiser uma religião, pegue uma com mais de mil anos...) carregassem uma sabedoria mais instalada, apesar de silenciosa, com relação ao que de fato eles precisam.

E se tivermos alcançado algum limite nas utopias propostas para a modernidade? E se o surto do século 18 pra cá tiver se esgotado como fórmula e chegarmos à conclusão que, como pequenos ajustes aqui e ali, pequenas correções de percurso (um cuidado com os recursos do meio ambiente, uma sensibilidade maior aos riscos de um materialismo extremado, maior longevidade, beijo gay na novela das nove), a vida se impõe em seu ritmo como sempre se impôs aos nossos ancestrais?

E se o velho ritmo de nascer, crescer, plantar, colher, reproduzir e morrer, com variações criadas pela Apple, for tudo o que temos? E se for justamente essa "perenidade do esforço" impermeável às modas de comportamento a realidade silenciosa da vida?