1.
A ESQUERDA gosta de romantizar o povo. Exceto quando o povo é pouco romântico e expressa o que realmente pensa sobre o mundo.
Uma enquete do Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada) horrorizou algumas consciências "finas" com as opiniões do povo sobre a violência contra as mulheres.
Simplifico: dentro de casa, é feio bater. Mas, fora de casa, quando o crime é sexual, as mulheres têm culpa no cartório. Números: 65% dos brasileiros concordam que "mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas". Um aiatolá no Irã não diria melhor. E 58,5% consideram que "se as mulheres soubessem se comportar, haveria menos estupros". Um aiatolá no Irã, idem.
É justo concluir que, para a maioria dos brasileiros, o ideal seria que as mulheres usassem burca. O clima brasileiro não permite essas mumificações? Isso não é desculpa. Quem aguenta o calor persa, também aguenta o calor tropical.
A pesquisa é interessante porque revela um dos problemas centrais da política moderna: como defender um regime democrático das "tiranias da maioria"?
Certo: a democracia pode ser o governo do povo, para o povo e pelo povo. Mas o que fazer quando o povo apoia a pena de morte, deseja perseguir homossexuais ou, no caso da pesquisa, tolera estupros contra mulheres de minissaia?
Eis o desafio que os pais fundadores dos Estados Unidos enfrentaram. E a resposta deles, contida nos "Federalist Papers" (uma coletânea de ensaios em defesa da ratificação da Constituição) continua válida, mais de 200 anos depois: a única forma de impedir o perigo das "facções" (um termo caro a James Madison) passa pela defesa de um sistema de governo representativo.
Que o mesmo é dizer: o povo não decide diretamente os assuntos da comunidade; o povo apenas elege os seus representantes para que sejam eles a filtrar a opinião da maioria, decidindo de acordo com um julgamento mais ponderado e informado.
Os herdeiros de Rousseau, que deploram a "democracia representativa" e têm orgasmos com a "democracia direta", deveriam escutar mais vezes as aberrações que o povo defende.
2.
Um amigo viaja para São Paulo e pergunta-me se a cidade é segura. Digo que sim, apesar de já ter sido assaltado à mão armada no lobby de um hotel. "Foi um caso isolado nas duas dezenas de viagens que fiz pelo Brasil", acrescento.
Ele fica mais descansado e depois, passando os olhos pelas notícias da internet, lê a história bizarra de uma cabeça humana encontrada junto da Sé. Cancelou a viagem.
Que exagero, meu Deus! Até porque existem coisas piores que uma cabeça cortada. Por exemplo, ter várias cabeças intactas, mas sem nada lá dentro.
Aconteceu com alunos da USP: um professor de geografia, André Martin, terá dito em plena aula que só as tropas brasileiras poderiam pôr ordem na "macacada" do Haiti.
Os alunos consideraram a palavra ofensiva: "macacada", para eles, é um insulto racista aos haitianos. Para mim, que tenho dicionários em casa, "macacada" significa, no contexto da frase, "turba", "multidão desgovernada", "caos" etc.
Segundo "O Estado de S. Paulo", o professor ainda tentou convencer a turma com esses sinônimos. A turma não se convenceu. O professor, em desespero de causa, terá então dito que "macacada" é o termo que o imperialismo americano usaria para intervir arrogantemente no Haiti. A turma não se comoveu com essa prova de esquerdismo do professor. Onde é que eu já vi isto?
Obviamente, em Philip Roth e no seu magistral "A Marca Humana": Coleman Silk também é um professor que usa a palavra "spooks" ("assombrações") para se referir a dois alunos negros que faltam sistematicamente às aulas (e que ele nem conhece). O problema é que "spooks" era o termo cruel com que os negros americanos eram tratados no tempo da segregação.
No livro, a carreira de Coleman é destruída pelos seus colegas universitários, que transformam uma palavra vulgar em ofensa invulgar.
Espero que o fim de André Martin não seja tão dramático. Mas este caso só confirma a regra. O problema do pensamento politicamente correto é funcionar como as antigas inquisições: encontrando heresias onde elas não existem; e queimando os hereges quando eles não merecem.