quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

Escravos - J.P. Coutinho

Não é preciso assistir a "12 Anos de Escravidão" para saber que a prática foi uma das maiores vergonhas da humanidade. Mas é preciso corrigir o tempo do verbo. Foi?

Melhor escrever a frase no presente. A escravidão ainda é uma das maiores vergonhas da humanidade. E o fato de o Ocidente não ocupar mais o topo da lista como responsável pelo crime não deve ser motivo para esquecermos ou escondermos a ignomínia.

Anos atrás, lembro-me de um livro aterrador de Benjamin Skinner que ficou gravado nos meus neurônios. Intitulava-se "A Crime So Monstrous" (um crime tão monstruoso) e Skinner ocupava-se da escravidão moderna para chegar a conclusão aterradora: existem hoje mais escravos do que em qualquer outra época da história humana.

Skinner não falava apenas de novas formas de escravidão, como o tráfico de mulheres na Europa ou nos Estados Unidos. A escravidão que ele denunciava com dureza era a velha escravidão clássica —a exploração braçal e brutal de milhares ou milhões de seres humanos trabalhando em plantações ou pedreiras ao som do chicote.

Na Índia, eram 10 milhões. Na África, eram outros tantos —prisioneiros de guerra, por exemplo, forçados a trabalho maquinal sob vigilância apertada do inimigo. Muitos eram crianças.

O próprio Skinner, em "experiência de campo" (digamos assim), comprovava algumas das suas teses. Segundo ele, era possível viajar de Nova York a Port-au-Prince (Haiti) e, por apenas 50 dólares, comprar um escravo de 12 anos. Em cinco horas de viagem, eis a diferença entre a civilização e a barbárie. Cinquenta dólares.

Pois bem: o livro de Skinner tem novos desenvolvimentos com o maior estudo jamais feito sobre a escravidão atual. Promovido pela Associação Walk Free, oGlobal Slavery Index, é um belo retrato da nossa miséria contemporânea.

Em termos relativos, a Mauritânia continua no topo da lista: com uma população que não chega aos 4 milhões, o país terá entre 140 mil a 160 mil escravos. O Haiti vem a seguir, sobretudo com a escravidão infantil. Em 10 milhões de haitianos, 200 mil não conhecem a palavra "liberdade".

O Paquistão sobe a parada e, sobretudo nas zonas fronteiriças com o Afeganistão, é provável encontrar qualquer coisa como 2 milhões de escravos.

A Índia, tal como o livro de Benjamin Skinner já anunciava, continua a espantar o mundo em termos absolutos com um número que hoje oscila entre os 13 milhões e os 14 milhões de escravos. Falamos, na grande maioria, de gente que continua a trabalhar uma vida inteira para pagar as chamadas "dívidas transgeracionais" em condições semelhantes às dos escravos do Brasil nas roças.

Conclusões principais do estudo? Pessoalmente, interessam-me duas.

A primeira, segundo o Global Slavery Index, é que a escravidão é residual, para não dizer praticamente inexistente, no Ocidente branco e "imperialista".

De fato, a grande originalidade da Europa não foi a escravidão; foi, pelo contrário, a existência de movimentos abolicionistas que terminaram com ela. A escravidão sempre existiu antes de portugueses ou espanhóis comprarem negros na África rumo ao Novo Mundo. Sempre existiu e, pelos vistos, continua a existir.

Mas é possível retirar uma segunda conclusão: o ruidoso silêncio que a escravidão moderna merece da "intelligentsia" progressista. Quem fala, hoje, dos 30 milhões de escravos que continuam acorrentados na África, na Ásia e até na América Latina?

Quem perde um minuto de tempo com os escravos da Índia, da Nigéria, da Etiópia ou do Congo?

Ninguém. Onde não existe homem branco como capataz, também não existe homem negro como escravo.

O filme de Steve McQueen, "12 Anos de Escravidão", pode relembrar ao mundo algumas vergonhas passadas. Mas confesso que espero pelo dia em que Hollywood também irá filmar as vergonhas presentes: as vidas anônimas dos infelizes da Mauritânia ou do Haiti que, ao contrário do escravo do filme, não têm final feliz.

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