segunda-feira, 9 de janeiro de 2012

Francesca



Lia eu o livro do marxista Terry Eagleton, "O Debate sobre Deus" (ed. Nova Fronteira, 232 págs., R$ 39,90), recém-publicado entre nós, quando topei com sua crítica ao cineasta Clint Eastwood.

Eagleton é um bom pensador, mas ninguém é perfeito. Seu livro é muito bom e merece ser lido, mas o que ele diz sobre Eastwood é uma grande bobagem.

Bobagem, aliás, comumente repetida por gente de bem, mas contaminada pelo que há de pior nos maus hábitos da esquerda: falar mal de algo que não conhece.

Eastwood não é um cineasta machão (como supõem Eagleton e quase toda a esquerda, que nada entende de ser humano, porque pensa o tempo todo na bobagem de luta de classes e oprimido x opressor). Pelo contrário, talvez ele seja um dos artistas que melhor entendem o desespero humano (masculino ou feminino), assim como suas virtudes mais sagradas, como a coragem, o autossacrifício e a generosidade.

Recentemente, revi seu maravilhoso filme "As Pontes de Madison" (1995), um longa feito para as mulheres, como muitos dizem.

Provavelmente ele pegou muita mulher por conta desse filme. Mulheres comumente não resistem a homens que parecem entendê-las. Uma das coisas mais lindas na mulher é a sua capacidade de erotizar o intelecto masculino.

Concordo que "As Pontes de Madison" seja um filme sobre o desejo feminino atado à rotina esmagadora de um casamento sem amor, mas nem tanto. Ele vai muito além de um drama especificamente feminino.

Sua personagem feminina principal, Francesca, vivida por Meryl Streep, não representa apenas as mulheres entediadas de casamentos conservadores (apesar de que sim, também as representa), mas sim todos os homens e mulheres que abrem mão de suas vidas afetivas em nome da família sem reclamar.

Se é verdade que Gustave Flaubert (1821-80), autor do clássico "Madame Bovary" (1857), disse um dia a famosa frase "Emma Bovary sou eu" (referindo-se à personagem principal de seu romance como representante universal da infelicidade humana), acho que muitos homens poderiam dizer, parafraseando esse grande romancista francês do século 19, "Francesca sou eu".

É um erro comum pensarmos que as angústias femininas não são universais. Tal erro é comum principalmente nas feministas, que, na realidade, não entendem nada de mulher nem de homem. Essa tendência a achar que os fantasmas femininos são "coisa de mulher", assim como menstruação e menopausa, é comum mesmo em gente capaz.

Vejamos. No filme em questão, ao final, Francesca (casada e mãe de dois filhos) abre mão de ir embora com Kinkaid, fotógrafo da "National Geographic", vivido pelo próprio Eastwood, e que se tornará seu amante por alguns dias, mas de quem ela jamais se esquecerá (nem ele se esquecerá dela).

No marasmo de uma vida interiorana americana, Francesca vive por poucos dias o pecado do adultério. Não se faz de vítima, mas sabe que peca. Peço aos inteligentinhos que nada entendem do conceito de pecado que vão brincar no parque.

O adultério é um pecado, principalmente quando há amor envolvido; talvez, somente quando há amor envolvido. E pecado aqui significa a consciência de que você não é dono de si mesmo. Suas reações, pensamentos e esquemas rotineiros de enfrentamento da vida entram em colapso. E dói.

E mais: é pecado porque o adultério faz você ver que existe alguém dentro de você que é despertado do sono por outra pessoa que não aquela que divide honestamente e cotidianamente o dia a dia da sua vida.

Aquela pessoa que envelhece com você ao longo de uma vida de "pequenos detalhes" (como diz nossa heroína Francesca) que, ao serem somados, representam uma parceria de confiança, retribuição e generosidade. A grandeza da pecadora Francesca só pode ser medida contra seu sacrifício em nome dos filhos e do fiel e dedicado marido.

A alma de um pecador é a sua consciência de que faz algo contra alguém que não merece. A pior tragédia do adultério se dá quando o traído é inocente.

Ao contrário do que muitas mulheres casadas pensam, muitos homens sacrificam suas vidas afetivas em nome delas e dos filhos, em silêncio. A virtude é sempre discreta.

12 comentários:

Guilherme disse...

Oi Flávia,
Acompanho seu blog desde o ano passado.
Queria tirar uma dúvida com você.
Como é sua relação com os textos? Eles dizem muito sobre você, e você diz muito sobre eles?
Pergunto isso porque sinto a vontade de montar um blog e fico me questionando sobre essa relação entre o criador e a criatura.
Abraço

Mateus disse...

Parece que neste texto Pondé quis ganhar um ponto com a 'patroa', hehehe.

Walter disse...

Uma crítica que cabe neste texto, (http://www.eternoretorno.com/2009/07/13/a-aposta-de-pascal/).

Pondé é um tando 'pascaliano'.

flávia disse...

Olá, Guilherme.
Obrigada pela presença!
Sim, creio que a relação é bem essa mesmo. Raramente posto algo do qual não compartilho a ideia, caso contrário, posto a crítica. Mas nunca havia parado para refletir sobre essa relação... muito legal!
Tenho o blog há quase 10 anos e já fiz boas amizades através dele (assim como fiz inimizades tb...rs).
Me avise quando o seu estiver pronto!
abraço

flávia disse...

Mateus: pois é... eu ficaria feliz em ouvir isso do meu homem.

Walter: Não é só impressão tua: Pondé é doutor em Pascal e tem dois livros publicados sobre o assunto.
Sobre o link que você citou, há algumas ressalvas: Pondé não é teólogo pois não tem formação em Teologia. Ele leciona na pós graduação de Ciências da Religião, bem diferente de Teologia (aliás, os teólogos odeiam que os aproximem dos cientistas da religião). E a visão sobre a pós-modernidade, citada no texto, é bem diferente dessa entendida pela pessoa que assistiu a palestra de Pondé, aliás, palestra interessantíssima para compreender a crítica à Pós-modernidade. Pondé se utiliza muito das ideias de Bauman sobre a pós-modernidade.

Guilherme disse...

Espero ser mais uma amizade então....rs
Assisti seu minicurso na USC em 2011.
Também sou graduado em História e leciono para Ensino Médio e Fundamental.
Penso que blog tem que ter uma regularidade de postagem...embora essa regularidade não esteja simplesmente em escrever uma vez por dia ou por semana...entende?
E essa "paixão" pelo Pondé...rsrs...ao que se deve?
abraço

flávia disse...

Opa, que legal, Guilherme! Aquele minicurso foi "mini"mesmo, né? Não deu pra falar metade do que queria...rs.
Pois sim, você tem razão quanto á regularidade. A minha, acredito, esteja nos temas e não na frequência em si.
Pondé apareceu na minha vida através dos cursos da CPFL Cultura e das colunas do jornal, como alguém que fala e escreve coisas que dizem respeito ao ser e à vida cotidiana. E de fã acabei virando aluna e orientanda. C'est la vie.

Walter disse...

"O remédio que Pascal encontrou para as desordens de sua época foi simples: obediência passiva à autoridade legalmente constituída [...]. É a sabedoria politica do desespero. Afinal, para se desejar em meio à anarquia a apz e a ordem a qualquer preço não é preciso que se seja cristão. Os conselhos de desespero passivo que Pascal formulou tinham sua origem nos acontecimentos políticos e não em suas convicções católicas. Mas suas convicções católicas os justificaram. Pois que o homem sendo extremamente corrupto, é incapaz de realizar qualquer coisa boa sem assistência divina. É portanto tolice rebelar-se, é tolice querer mudar as instituições existentes, porque o novo estado de coisas, como obra da natureza humana corrompida, terá infalivelmente de ser tão mau quanto o que foi substituído. Sábio portanto, por conseguinte, é aquele que aceita a ordemexistente, não porque ela seja justa ou torne felizes os homens, mas simplesmente porque ela existe e porque nenhuma ordem em nada seria mais justanem mais capaz de fazer os homens mais felizes.
A história demonstra que existe boa dose de verdade nas opiniões de Pascal. As esperanças do revolucionário sempre acabam por decepcionar. Mas quem quer que valorize a vida como vida, isso não é argumento que impeça as tentativas de revoluções. A fé na eficácia das revoluções (por mais que os acontecimentos possam prova-la infundada) é um estimulo para avida presente, um acicate ao pensamento e à ação.No afã de tornar realidade os objetivos ilusórios da revolução, os homens são induzidos a viver mais intensamente no presente, a pensar, a agir e a sofrer com redobrada energia. Como resultado eles criam uma nova realidade (muito diferente, sem dúvida, daquela que eles sonham criar, mas isso não tem importância; o importante é que ela seja nova). A nova realidade impõe nova esperança e nova fé naqueles que vivem em teu seio, tal como a nova esperança e a nova fé estimulam os homens a uma vida mais intensae à criação de uma outra realidade ainda mais nova. E assim indefinidamente. Mas esse é o tipo de argumento que com toda certeza teria impedido de fazer de Pascal um revolucionário. Pascal não tinah a menor vontade de que a vida presente fosse intensificada. Detestava a vida presente. Pois a vida presente era um emaranhado de concupiscências e, portanto, rigorosamente anticristã. Ele teria gostado de ver abolida a vida presente; daí não ter tido paciência com nenhuma doutrina religiosa, filosófica ou social destinada a exaltar o processo vital. O cristianismo, que ele escolheu como crença e prática, era adequadamente antivital. “

“Não obstante, ele exigiu que os homens se elevassem acima da humanidade – ou se olocassem por baixo dela – tornando-se cristãos coerentes. Queria que eles renegassem à multiformidade de seu ser; exigia que eles impusessem uma unidade – a unidade dele, Pascal.”

A partir destes trechos do livro DO WHAT YOU WILL, de Aldous Huxley, podemos entender a filosofia de Pascal, e por conseguinte a de Pondé. Lembrando que em meados do século XVII, que serviram de cenário histórico para a breve existência de Pascal, foram anos de miséria e de inquietação na Europa (bando de salteadores, pilhagem, estupro, eram comuns) para Pascal que olhava para este mundo a paz parecia ser a coisa mais ardosamente desejada, paz e ordem. Parece que para o Pondé, basta a ordem (estabilidade econômica).

flávia disse...

Muito bom.
Talvez eu concorde contigo no quesito que, para Pondé, a paz jamais seja algo alcançável. Afinal, somos todos atormentados pela culpa, pelo desejo e pelo pecado.

Walter disse...

Apesar dos erros de digitação, deu pra entender.

Gosto de ler os textos do Pondé, acho ele inteligente e adulto, mas não gosto quando ele tenta empurrar a sua "unidade".

flávia disse...

Creio que todos nós, de uma maneira ou de outra, às vezes "empurramos" nossos pontos de vista.

Walter disse...

Nada justifica os anseios antivitais de Pascal.

Não vivemos atormentados pela culpa ou pecado, querem que nós convivamos com isso, por isso inventaram o pecado.