Slavoj Zizek tem razão: depois dos massacres de Paris, é preciso coragem para pensar. Mas alguém deveria ter explicado a Zizek que coragem, por vezes, não chega. É preciso ter algum material na massa cinzenta para realizar tal tarefa.
O texto de Zizek alimenta as minhas dúvidas: ele é contraditório, historicamente relapso -e, no essencial, apenas debita a velha cartilha totalitária de que o "liberalismo", pela sua intrínseca "fragilidade", é uma presa fácil para o terrorismo islamita. Se eu tivesse lido o texto de Zizek sem conhecer a verdadeira autoria, diria que alguém tinha ressuscitado Carl Schmitt, o ilustre jurista do Terceiro Reich, e as suas considerações nefandas sobre a democracia liberal.
Comecemos pelas contradições: Zizek recusa a litania de Nietzsche e de todos os seus imitadores menores (como Oswald Spengler ou Werner Sombart) de que o "declínio do Ocidente" se explica pelo seu rasteiro materialismo: nós, ocidentais, anestesiados pela afluência do capitalismo (sempre essa temível besta!), deixamos de ser "heróis" e de servir uma causa transcendente. Preferimos o conforto dos nossos "hobbies" infantis ao desafio homérico de nos superarmos em nome de um ideal.
UTOPIA
O problema é que Zizek afirma tudo isso -por outras palavras- ao considerar as "virtudes burguesas" das democracias liberais, que na verdade são indissociáveis das sociedades capitalistas, como incapazes de proteger o Ocidente de predações islamitas. Só a esquerda radical pode insuflar no liberalismo decadente a dose certa de vigor político e moral, diz ele (sem rir). Como é evidente, Zizek limita-se a repetir o que qualquer revolucionário utópico -de Lênin a Hitler- defendeu nos inícios do século 20 para justificar as suas utopias. Relembrar os resultados dessas utopias sangrentas seria apenas uma perda de tempo e de espaço.
Mas Zizek não é apenas contraditório e pouco original. Historicamente falando, o seu texto é um pequeno desastre. Começa logo na escolha de certas palavras. Um exemplo: "fundamentalismo", que Zizek usa livremente, não é o mesmo que "radicalismo", muito menos que "jihadismo". Por mais bizarro que possa parecer a Zizek, é possível ser um fundamentalista islâmico (procurando a interpretação mais rigorosa do Corão) sem advogar a matança dos "infiéis".
E é possível advogar a matança dos "infiéis" sem nunca ter lido o Corão na vida. Não é por acaso que os infelizes que partiram para o Iraque e para a Síria para lutarem em nome do Estado Islâmico fizeram do "Koran for Dummies" (corão para leigos) um best-seller da Amazon.
Por outro lado, e ao contrário do que argumenta Zizek sem conhecimento de causa, o terrorismo islâmico não se limita a atacar as "democracias liberais" do Ocidente, muito menos as alegadas "fraquezas" que as definem. Para começar, a lista de países não ocidentais (e não "liberais") que o jihadismo atacou nas últimas décadas -Quênia, Arábia Saudita, Rússia, Argélia etc.- desautoriza a tese simplória de Zizek.
E ela é reduzida a pó quando sabemos, historicamente falando, que é a força da democracia liberal, e não a sua "fraqueza", que explica a loucura homicida e suicida dos terroristas.
O historiador Bernard Lewis relembra esses fatos básicos: em finais do século 19, o desenvolvimento material das sociedades industrializadas do Ocidente contrastava com a estagnação das sociedades muçulmanas. Esse sentimento de atraso agravou-se com a desagregação do Império Otomano depois da Primeira Guerra Mundial, na medida em que Constantinopla, desde o século 16, pelo menos mantinha a unidade do Califado.
Depois de 1918, é a força do Ocidente, e não a sua "fraqueza", que passa também a dominar politicamente o Oriente Médio -uma força que, aos olhos dos extremistas, adquire contornos assustadores.
O parlamentar inglês Michael Gove, no seu breve tratado sobre a ameaça jihadista na Europa ("Celsius 7/7"), revisita esses contornos. Na década de 1920, quando Hassan al-Banna defende "a jihad como método e o martírio como desejo", o fundador da Irmandade Muçulmana revelava esse temor ante a "ocidentalização" do Egito. Um temor que seria continuado por Sayyid Qutb (seguramente o mais importante teórico sunita do islamismo radical) que, depois das suas viagens pelos Estados Unidos, deixou páginas pungentes de ódio à democracia liberal (e, em particular, às mulheres gostosas que ele viu por lá sem burca).
É esse ódio que Osama bin Laden ou o sucessor Ayman al-Zawahiri destilam nas suas diatribes contra o Ocidente e os países árabes contaminados pela sua influência. O que inquieta esse par maravilha não é a "fraqueza" da democracia liberal. É, obviamente, a sua força e a sua capacidade de sedução.
Por último, não deixa de ser sofrível que Zizek disserte com tanta autoridade sobre o fundamentalismo islâmico sem estabelecer uma diferença importante entre o jihadismo sunita e o milenarismo xiita.
Uma vez mais, não é questão de pormenor. É não compreender que na tradição xiita, que teve no Irã o seu momento áureo com Khomeini na revolução de 1979, não há nenhum sentimento de inferioridade, como afirma Zizek sobre os terroristas em nova contradição: se a democracia liberal é um poço de fraquezas, como explicar os problemas de "autoestima" que afligem os terroristas?
Obviamente, não há falta de autoestima alguma. Pelo contrário: como explica o mesmo Michael Gove no seu breve ensaio, Khomeini agiu com o mesmo sentido de superioridade vanguardista e de urgência revolucionária que Lênin exibira em 1917. Na Rússia analfabeta e rural dos czares, era preciso apressar a revolução, ou seja, recusar as imprecisões "profetistas" de Marx sobre a queda inexorável do capitalismo.
Na Teerã de 1979, o regresso do "mahdi" -o imã escondido que um dia chegará para redimir a humanidade- implicava igualmente alguma celeridade nos procedimentos. No caso, um Estado teocrático e a exportação do modelo para as terras do Profeta. Se isso é "inferioridade", eu gostaria de saber em que consiste a "megalomania".
RADICAIS
Não, não é o Ocidente que tem de mudar, muito menos pela adoção do radicalismo de esquerda que, tal como o radicalismo de direita, já deixou um longo cortejo de
cadáveres no século 20. É o islã que tem de mudar -de passar pelo seu "Iluminismo", se quisermos, um esforço dantesco que, é justo reconhecer, é possível encontrar nos trabalhos "reformistas" de autores como Mahmud al-Qimani ou Abdolkarim Soroush. E que nos dizem eles?
Contra Zizek, que é preciso repensar as virtudes do liberalismo, moderando a ambição do poder político em "interferir na alma dos homens", para citar o patrono John Locke. Não é tarefa fácil.
Basta consultar o gigantesco estudo que o Pew Research Center realizou em 39 países muçulmanos, com entrevistas presenciais a 38 mil pessoas. Já escrevi nesta Folha sobre as conclusões gerais do estudo (intitulado "The World's Muslims: Religion, Politics and Society" e disponível na internet). Mas nunca é demais relembrar uma das suas conclusões mais relevantes: a maioria dos muçulmanos não admite uma vida moral sem caução religiosa. Isso leva a maioria a defender a sharia (a lei islâmica que tutela a vida cotidiana) como um documento legal insubstituível. Conceder a Deus o que é de Deus e a César o que é de César -a separação crucial do Ocidente cristão- é ainda uma escalada íngreme para quem atribui a Deus o que é de César.
Quando Zizek grita bem alto que liberalismo é decadência, ele não atraiçoa apenas os esforços, ainda tímidos, dos reformistas que remam contra a maré. Ele repete, palavra por palavra, a mensagem odiosa dos próprios terroristas.
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