terça-feira, 18 de março de 2014

Woody Allen, pedófilo? J.P. Coutinho


Tempos atrás, ofereci a um amigo o documentário de Barbara Kopple sobre Woody Allen. Intitula-se "Wild Man Blues" e é uma reportagem "íntima" com o diretor durante as suas viagens pela Europa para tocar clarinete.

O amigo agradeceu. Mas depois disse que tinha receio de assistir ao produto: ele, um fã de Woody Allen desde "Noivo Neurótico, Noiva Nervosa" (1977), ficara chocado com as acusações de pedofilia que a própria filha, Dylan, hoje com 28 anos, lançara contra o pai. "Tenho dois filhos pequenos, João", disse ele. "Como olhar para Woody Allen da mesma maneira?"

Eis a pergunta que incontáveis fãs do cineasta formularam nos últimos tempos e que Chuck Klosterman, um alegado especialista em ética do "New York Times", abordou na sua última coluna.

Será normal continuar a assistir aos filmes de Woody Allen quando existe sobre ele uma sombra sinistra? E será legítimo deixar de assistir aos filmes por causa dessa sombra?

Klosterman prefere ficar em cima do muro e responde afirmativamente às duas questões. É legítimo separar a obra e o homem. E é legítimo recusar o Woody pedófilo.

Com todo respeito por Klosterman, a sua resposta só revela estupidez e covardia. Se a ética fosse apenas uma forma de relativismo em que tudo é igual ao seu contrário, não valeria a pena discutir moralmente nenhum assunto racional.

Por isso proponho: é legítimo separar o homem da obra e é perfeitamente legítimo continuar a assistir aos filmes de Woody Allen, apesar das suspeitas. Por duas razões fundamentais.

A primeira, óbvia, é que um Estado de Direito civilizado considera qualquer indivíduo acusado de um crime como inocente até prova em contrário.

Woody Allen não foi acusado formalmente de coisa nenhuma. Não foi levado a tribunal. E os médicos que analisaram a criança em 1992 não encontraram vestígios — físicos, psicológicos— de nenhum abuso.

As pessoas podem recusar os filmes de Woody Allen porque pensam que uma acusação basta para fechar uma condenação. É uma atitude possível, mas apedeuta e irracional.

Mas existe um segundo motivo pelo qual é aconselhável separar o homem da obra: porque mesmo que Woody Allen tivesse sido condenado em tribunal por abuso sexual de menores, isso não retiraria aos seus filmes uma qualidade intrinsecamente estética.

O jornal "The Guardian", semana atrás, contribuiu para o debate com uma lista generosa de grandes artistas que, em privado, tiveram condutas aberrantes, para não dizer criminosas.

O caso de Caravaggio é talvez o mais relevante: o maior pintor do século 17 era um homicida que fugiu de Roma para escapar da prisão. Será por causa disso que o leitor recusa "David com a Cabeça de Golias" ou "O Martírio de São Mateus", obras-primas absolutas do barroco italiano?

O mesmo para Benvenuto Cellini, anterior a Caravaggio e com mais mortes no currículo do que o seu sucessor. Os crimes de Cellini mancham as suas esculturas, como o "Perseu" de Florença ou a "Crucificação" do Escorial?

E, para ficarmos em abuso de menores, será que o leitor também evita os quadros de Egon Schiele, o grande pintor expressionista que tinha uma inclinação problemática por "jeunes filles en fleur"?

O desejo de que os grandes artistas tenham condutas privadas igualmente irretocáveis pode ser uma exigência narcísica da nossa admiração por eles.

Mas já é tempo de crescer um bocadinho, deixando à Justiça o que é da Justiça — e agradecer aos céus, e aos homens, a grande dádiva da arte.

P.S. - A minha última coluna, "Frankensteins", provocou reações violentas de profissionais da cirurgia plástica. O presidente da Sociedade Brasileira de Cirurgia Plástica escreveu para a Folha, defendendo que "há excessos de alguns poucos colegas, com resultados grotescos, mas isso não lhe dá o direito de generalizar".

Com a devida vênia ao doutor João Moraes Prado Neto, eu não "generalizei" coisa nenhuma. Parti de um caso concreto — o rosto mumificado de Kim Novak— para denunciar os profissionais que se disponibilizam para vandalismos do gênero, indiferentes a qualquer consideração ética (e até estética). O meu artigo não lidava com a maioria dos médicos que, citando o doutor Prado Neto, tratam de queimados, deformados faciais, vítimas de escalpelamento ou violência doméstica. Fica o esclarecimento

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