O MELHOR do mundo são as crianças, dizia Fernando Pessoa. Ainda bem que o poeta morreu em 1935. Hoje, na era da histeria, quando qualquer adulto é um agressor sexual em potencial, frases dessas poderiam alimentar equívocos.
Um filme dinamarquês, já estreado no Brasil, ajuda a entender por quê. Intitula-se "A Caça", foi dirigido por Thomas Vinterberg (um dos ideólogos estéticos do movimento Dogma 95, juntamente a Lars von Trier) e a história resume-se em breves linhas: Lucas, depois de um casamento desfeito, encontra trabalho como educador de infância.
Lentamente, a vida começa a reerguer-se: ele tem uma nova namorada; o filho reaproxima-se depois do afastamento; os amigos são exemplos de camaradagem "nórdica" em alegres caçadas e alegres bebedeiras.
Mas eis que surge em cena uma criança, Klara, pronta para estragar a festa com os equívocos próprios das crianças. Em casa, Klara encontra imagens pornô no iPad do irmão adolescente. Sinal dos tempos: onde estão as velhas revistas em papel da minha adolescência? Divago.
Certo é que esse encontro será a primeira fagulha do incêndio que virá a seguir. E que tem início na escola, depois de uma birra entre Klara e o professor Lucas, uma dessas birras em que as crianças são pródigas.
Questionada pela diretora da escola a respeito, Klara confessa um episódio "impróprio" que nunca aconteceu com o professor. Usando para o efeito os pormenores gráficos que vira nas fotos.
O incêndio começa e Vinterberg parece reatualizar no filme essa outra "caça" que Arthur Miller apresentou na peça "The Crucible" a respeito das "bruxas" de Salem.
Não apenas ao eleger como palco da tragédia uma pequena comunidade rural (e puritana) que inicia também a sua "caça" ao elemento demoníaco.
Mas ao filmar, com impressionante crueza, os mecanismos clássicos da "histeria contagiosa".
Primeiro, a histeria da diretora da escola, que passa rapidamente da incredulidade para a dúvida; e da dúvida para a certeza; e da certeza para a condenação pura e simples.
Tudo com a ajuda de um "especialista pedagógico" que, obviamente, não é especialista de coisa nenhuma, exceto das suas próprias taras e preconceitos: o interrogatório à criança, na sua aparente doçura, é um dos momentos mais aberrantes de todo o processo.
Quem diria que os velhos inquisidores de Salém regressariam hoje pela porta da "pedagogia" romântica? Ah, os discípulos de Rousseau nunca desiludem.
E, depois da histeria da diretora, o incêndio propaga-se aos pais das restantes crianças, alertados em reunião escolar para a existência de um lobo entre as ovelhas. O que significa que o incêndio também chega às ovelhas, que já apresentam sintomas possíveis/prováveis/óbvios de abuso sexual.
Exatamente como as donzelas falsamente possuídas da peça de Arthur Miller.
Lucas, o professor, não cometeu nenhum crime. Em poucos dias, cometeu vários crimes -e o incêndio atinge finalmente o seu círculo mais restrito. A namorada. O filho. Os amigos, os velhos amigos, que se afastam com o nojo próprio de quem sempre suspeitara de que ele era "diferente", ou seja, "tarado", ou seja, "pedófilo".
O incêndio da calúnia consumiu todos em volta, ou quase: há ainda um amigo que resiste; há ainda o filho que persiste na inocência do pai.
E quando essa inocência é provada e comprovada, nós, testemunhas da destruição metódica de um ser humano, acreditamos com Lucas que as chamas serão apagadas e o inferno chegará ao fim.
Mas essa é a principal e mais inquietante lição do filme de Thomas Vinterberg, um verdadeiro tratado sobre a natureza humana: as chamas da calúnia nunca se apagam. Elas permanecem como brasas dormentes, prontas para serem atiçadas pela mínima brisa.
A sequência final, que naturalmente não revelo aqui, é talvez o melhor momento do filme ao ilustrar de forma agônica como o inferno é a única eternidade garantida.
O melhor do mundo são as crianças? Acredito que sim. Mas o poeta poderia ter escrito antes que o pior do mundo são os adultos.
Ou, como Arthur Miller explica na sua peça, que não existe maior medo do que o ódio dos homens com medo.
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