1. Temas JUDAICOS são sempre sucesso de bilheteria. Quatro dias atrás estive na TV portuguesa para falar de circuncisão. Não sou especialista no procedimento e, da última vez que confirmei, o meu prepúcio estava intacto.
Mas nada disso impediu as dezenas de insultos que recebi por e-mail. Curioso: na Europa do século 21, "judeu" (melhor: "judeuzinho") continua a ser forma de agressão. Mesmo que você não seja.
Como Tayllerand disse dos Bourbon, a Europa não aprendeu nada e não esqueceu nada. Nem a Europa, nem a Alemanha: o meu comentário televisivo analisava a decisão recente de um tribunal alemão que condenou a circuncisão.
Atenção à diferença: o tribunal de Colônia não condenou, como deveria, um caso de negligência médica que provocou hemorragias graves numa criança judia de 4 anos.
O tribunal foi mais longe e condenou a prática "in toto": a circuncisão é um atentado contra a integridade das crianças em nome das concepções religiosas dos seus pais.
Não vou reproduzir nesta Folha, um jornal de família, o conteúdo de algumas mensagens que recebi. Mas as mais moderadas batiam no mesmo ponto: se eu já condenei publicamente a mutilação genital feminina nos países muçulmanos, como posso tolerar a circuncisão?
A ignorância não é apenas atrevida. É também ridícula. Comparar a circuncisão à mutilação genital feminina é, resumindo, não entender nada sobre uma e outra.
A circuncisão, realizada por mãos habilitadas, é um procedimento seguro, rotineiro e, segundo vários estudos científicos, pode mesmo ser vantajoso na prevenção de doenças sexualmente transmissíveis.
A mutilação genital feminina é apenas isto: uma mutilação movida pelo ódio masculino ao prazer sexual da mulher. No espírito e no método, a circuncisão e a mutilação não habitam o mesmo planeta.
E agora? Agora, calma: a decisão de um tribunal não cria legislação sobre o assunto. Mas as comunidades judaicas (e também muçulmanas) do país temem que a decisão seja um perigoso precedente, transformando a liberdade religiosa numa caricatura.
Porque este é o ponto -para judeus, muçulmanos, mas também cristãos, agnósticos ou ateus: devem as famílias ter liberdade para educarem os seus filhos como entenderem? Ou é função do Estado impor à sociedade os preconceitos de um político ou de um juiz?
Como leitor de John Locke (1632 - 1704), eu julgava que a questão já estava resolvida havia quatro séculos: depois de guerras religiosas intratáveis, a Europa aprendeu que a tolerância era a única forma de evitar a carnificina. A Alemanha, como sempre, parece disposta a rever esses ensinamentos.
2. E por falar em mutilações: o leitor sabe o que aconteceu no Mali? Eu conto: fanáticos islamitas tomaram de assalto a cidade de Timbuktu. E destruíram, com impressionante ferocidade, dezenas de mausoléus e centenas de estátuas ligados à tradição sufista.
A mídia ocidental está horrorizada com a falta de etiqueta do pessoal da Al Qaeda e lembra que Timbuktu é um patrimônio cultural da humanidade.
Não é, não: para a Al Qaeda, falamos de idolatria. E a idolatria só tem uma resposta: a bomba.
Aliás, o caso do Mali não é único. Dentro do fanatismo islâmico, o mundo ainda recorda a destruição dos budas milenares de Bamyian, no Afeganistão, pelo Taleban.
Mas não é preciso viajar para tão longe de forma a contemplar o fanatismo em ação. No Ocidente, também temos os nossos fanáticos: gente alegadamente "culta" e "civilizada" que gosta de apagar ou destruir tudo aquilo que considera ofensivo para a religião do nosso tempo: a religião politicamente correta.
Todos os dias, alguém sugere a proibição de um autor (o americano Mark Twain, racista); a proibição pura e simples de uma obra ("A Divina Comédia", homofóbica); e a criminalização de termos alegadamente ofensivos para minorias ou populações indígenas.
Claro que, para sermos justos, os nossos fanáticos politicamente corretos não viajam de camelo nem usam trapos medievais da cabeça aos pés.
Mas se fosse possível um mapa mental das suas cabeças, aposto que não haveria grandes diferenças em relação aos selvagens do Mali.
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