segunda-feira, 14 de fevereiro de 2011

NO OSSO - Pondé



ESTOU FELIZ. Dirão meus detratores que minto porque um niilista nunca está feliz. Mentira. A felicidade de um niilista apenas custa mais caro porque não é “made in China”. Está mais para BMW do que para Chery.
Estou feliz porque vi um filme que me deu esperança no cinema dos próximos anos: “Inverno da Alma“, de Debra Granik.
Com os 80 anos do grande Clint Eastwood, temo por sua herança. Encontrei em Debra Granik uma esperança. Quem achar estranho que uma mulher seja a herdeira de um cineasta que fala de virilidade engana-se.
Num cenário como o atual no qual os homens, quase todos, falam fino e pedem permissão às mulheres para dizer o que pensam, só podíamos mesmo ter esperança que as cineastas mulheres se tornassem as possíveis herdeiras daquilo que os homens estão a perder: a coragem de dizer que a vida é um drama sem solução. Hoje, são os homens que esperam o príncipe encantando.
“Inverno da Alma” é filme de gente grande, coisa rara na medida em que a democracia de mercado avança (e tem que avançar mesmo, senão todo mundo morre de fome, como na África) e faz do cinema coisa para retardados.
A luta no capitalismo avançado e na democracia de massa é pela defesa da inteligência, que sofre o risco constante de atolar num pântano de bobagens para fazer a classe média se sentir segura.
Nada contra filmes divertidos, de ação, de terror e coisas assim. Mas quando o cinema resolve salvar o mundo, mudar o mundo, mudar as pessoas, meu Deus, que tédio.
Parafraseando o grande Oscar Wilde (1854-1900), que disse algo como “toda poesia sincera é ruim”, todo filme no qual o diretor quer salvar o mundo é ruim. Mas como a audiência costuma ter o mesmo nível mental do diretor, quase ninguém percebe que está diante de coisa do jardim da infância.
Em 2004, Debra Granik já fizera “Down to the Bone“, filme sobre uma mulher que luta contra as drogas em meio à criação de seus filhos. Agora ela volta “ao osso” para falar de uma menina de 17 anos que luta para achar seu pai, que meteu sua família numa fria das sérias.
Sua mãe, imprestável, é uma deprimida apática. Em meio à pobreza, a garota cria seus dois irmãos mais novos e cuida de tudo mais. Sozinha diante da vida, sem frescuras, sem “mapa moral”, sem a ladainha política de vítima social.
O filme se passa num desses Estados atrasados do sul americano, pobre e rural. Aquela América que o amador Obama não entende. Esperemos que passe logo a onda Obama de governar para a torcida, a fim de ganhar aplausos dos estudantes e das feministas.
Uma das coisas que pode tornar o filme “difícil” é exatamente o fato de ele não oferecer o “mapa moral” que todo mundo gosta de receber quando vai ao cinema ou quando pensa sobre a vida e os costumes.
O filme não oferece “mapa moral” porque todos os personagens estão atolados na vida, que é essencialmente um fenômeno amoral, sem os tais “valores” de que todo mentiroso gosta de falar.
Apesar de que ficou na moda todo mundo desfilar “princípios éticos” por aí, a semelhança da hipocrisia cristã do passado, no silêncio de nossas almas nós sabemos que fazemos tudo que for necessário para sobreviver. E quem é exceção, não faz marketing do bem, apenas morre cedo.
Sim, uma dose de “ilusão moral” constitui a vida em sociedade. A própria noção de amor familiar como fato óbvio é uma dessas ilusões (as famílias, às vezes, são máquinas de moer gente e nem toda mãe ama seus filhos, às vezes os odeia e às vezes, com razão).
A metáfora do “osso” aqui é essencial. Em inglês, chegar ao osso é chegar ao fundo das coisas, na sua estrutura mais elementar. É chegar ali onde a ilusão não habita.
A cena na qual a protagonista com a ajuda das mulheres que a tinham espancado, “resolve o enigma” é uma ode à genuína piedade.
Não consigo pensar em maior canto à sofrida dignidade humana (esta mesma que os marketeiros do bem maculam com seu papo-furado) do que a heroína Ree (Jennifer Lawrence), ao final, tranquilizando seus irmãos pequenos, dizendo que não conseguiria viver “sem o peso deles nas costas”. Eis um filme para se ver de joelhos.

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