ACABO DE CHEGAR DE ISTAMBUL, para onde fui por razões profissionais. No avião, li o belo livro “A Resistência“, do escritor argentino Ernesto Sabato. Trata-se de uma peça de resistência à estupidez do mundo moderno. Sabato lamenta a ganância que nos assola sob a forma de projeto social para felicidade.
Estive em Istambul há 15 anos. Nunca esqueci a Igreja de Santa Sofia. A Turquia tem um dos maiores patrimônios arqueológicos do mundo antigo. Pena que esteja na moda. Em 1995, andei pela Santa Sofia (eu e minha pequena família) sozinho por algum tempo, mergulhado no silêncio daquele monumento ao cristianismo antigo.
A Turquia, naquele tempo, tinha a benção de ser esquecida pelo mundo. O Cristo Pantocrator (O Senhor do Universo), no alto, e os demais ícones bizantinos eram as únicas companhias. Hoje, a Santa Sofia parece uma Aparecida do Norte sob os pés da multidão. Se aqui são os crentes que assolam o espaço, lá são as novas formigas devoradoras do mundo, esses novos bárbaros, os turistas.
Hoje, o impasse, para quem ama conhecer o mundo, é como escapar da indústria do turismo e sua breguice de massa. O capitalismo aqui revela uma de suas maiores contradições: para ganhar dinheiro, muitas vezes, há que fazer tudo parecer a “25 de março”. E, com isso, chegamos ao “progresso” da Turquia. É, a Turquia “progrediu”. E o “progresso moderno” é uma praga de formigas assolando a vida.
“Progresso” é uma dessas ideias típicas da modernidade que deve ser manipulada como quem manipula o bacilo da lepra. Aos 50 anos, começo a ter aquele sentimento clássico de que o “passado” detém uma dignidade essencial. Acredito firmemente que toda redenção possível vem apenas dos mortos.
Pouco importa se as almas superficiais me taxarem de nostálgico. Ser odiado pelas almas superficiais é parte da minha ética. Ser superficial nada tem a ver com ser ignorante, muitas vezes a erudição está a serviço da superficialidade. Desprezo a democracia como forma de sensibilidade, aliás, a considero como um desses remédios necessários, mas horríveis (como quimioterapias) para uma doença humana incurável: nossa natural vocação para abusar do poder.
Prefiro almas pecadoras a almas eficazes (como diz Sabato), culpadas em sua agonia, conscientes do mal que causam no mundo, presas em suas fraquezas, aniquiladas por seu orgulho ridículo, com olhos vidrados de dor. Prefiro ser um pecador (e com isso não faço elogio a autores medíocres como Sade, mas sim me coloco sob a sombra de grandes filósofos como Santo Agostinho) a ser um “cidadão que crê no progresso”.
Uma amiga minha me define, com precisão matemática, como “um medieval com estilo”. As almas superficiais dirão “todo medieval é sem estilo”, mas, de novo, as almas superficiais não têm a mínima ideia do que seja um medieval. Um medieval vaga por um mundo devastado, pressentindo a esperança sempre como filha do mistério. Uma espécie caçada, a cada dia, pelos superficiais crentes no progresso “humanista”.
O que me encanta em Sabato é a forma que assume sua crítica, seu viés nostálgico, traço do que há de melhor no romantismo, sua dor diante da barbárie que é a sociedade da eficácia em que vivemos, sem o ridículo do filme “Avatar”. Mas ele esbarrará num impasse clássico: confessemos, a sociedade da eficácia nos serve a todos com sua medicina, seus aviões, seus computadores. Abrir mão dela é abrir mão dos ganhos técnicos que ela gerou. Ninguém abre mão disso, por isso todo mundo prefere a infelicidade permeada pela higiene da solidão, porque o amor não é eficaz.
A resistência proposta por Sabato passa pela crença numa saúde espiritual, fincada em nossa vocação para o sagrado e para os valores eternos. Neste movimento, ele ataca o humanismo da eficácia e chama para si a herança de russos como o filósofo Nicolai Berdiaev (século 20). Berdiaev chamava de “nova Idade Média” a devastação da vida causada pela sociedade do progresso tecnológico. Ele era um dostoievskiano e nietzschiano e, por isso mesmo, alguém que desprezava a sensibilidade burocrática da democracia em favor da sensibilidade criadora e libertária.
Os superficiais, essa maioria que infesta o mundo, dirão que isso é um desvio aristocrático. Pouco importa, mesmo que sejamos sempre derrotados, o que importa é termos a coragem de fracassar da forma que escolhermos.
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