quarta-feira, 3 de setembro de 2014

Relógio do Rosário - Drummond

Era tão claro o dia, mas a treva,
do som baixando, em seu baixar me leva

pelo âmago de tudo, e no mais fundo
decifro o choro pânico do mundo,

que se entrelaça no meu próprio chôro,
e compomos os dois um vasto côro.

Oh dor individual, afrodisíaco
sêlo gravado em plano dionisíaco,

a desdobrar-se, tal um fogo incerto,
em qualquer um mostrando o ser deserto,

dor primeira e geral, esparramada,
nutrindo-se do sal do próprio nada,

convertendo-se, turva e minuciosa,
em mil pequena dor, qual mais raivosa,

prelibando o momento bom de doer,
a invocá-lo, se custa a aparecer,

dor de tudo e de todos, dor sem nome,
ativa mesmo se a memória some,

dor do rei e da roca, dor da cousa
indistinta e universa, onde repousa

tão habitual e rica de pungência
como um fruto maduro, uma vivência,

dor dos bichos, oclusa nos focinhos,
nas caudas titilantes, nos arminhos,

dor do espaço e do caos e das esferas,
do tempo que há de vir, das velhas eras!

Não é pois todo amor alvo divino,
e mais aguda seta que o destino?

Não é motor de tudo e nossa única
fonte de luz, na luz de sua túnica?

O amor elide a face... Ele murmura
algo que foge, e é brisa e fala impura.

O amor não nos explica. E nada basta,
nada é de natureza assim tão casta

que não macule ou perca sua essência
ao contacto furioso da existência.

Nem existir é mais que um exercício
de pesquisar de vida um vago indício,

a provar a nós mesmos que, vivendo,
estamos para doer, estamos doendo.

Mas, na dourada praça do Rosário,
foi-se, no som, a sombra. O columbário

já cinza se concentra, pó de tumbas,
já se permite azul, risco de pombas.

segunda-feira, 21 de julho de 2014

Não sou responsável por aquilo que cativo

Não, eu não sou eternamente responsável por aquilo que cativo.
Saint-Exupéry estava errado. 
Não é a toa que é a raposa quem fala. Animal astuto, sabe cortejar suas vítimas. Coitado do pequeno príncipe, ainda tão imaturo, não sabia que poderia contestá-la. 
Afirmar que se é responsável eternamente por aqueles que te amam é tragédia declarada. Não sou, não posso ser responsável por aqueles que cativei, afinal, para o ato de cativar são necessários dois seres, dois sentimentos recíprocos, duas almas desejantes de amor e carinho. 
Pequeno príncipe habitou toda minha infância e adolescência. Lia e relia o livro já todo desenhado e rasgado, mostras do tempo que me acompanhou. Eram tão lindos os diálogos. Melancolia sem fim. Imaginava passar os dedos pelos caracóis dourados dos cabelos do príncipe. Imaginava o deserto. Uma flor solitária. Um universo bastante pesado para o cotidiano de uma criança. E logo tomei por frase de cabeceira essa que hoje renego: "Tu te tornas eternamente responsável por aquilo que cativas". Virou marcador de livro. Escrito à mão, doei de presente à um amor pueril. Hoje nem sequer penso mais nesse amor. Desobedeci a raposa e fui irresponsável com meu cativo.
Hoje reafirmo: liberto todos meus cativos! Não quero mais responsabilidades dessa estatura. 
Estou, por fim, livre da sentença da raposa. 


domingo, 13 de julho de 2014

Marcas

The Broken Circle Breakdown
2012
Felix van Groeningen
Bélgica

Inclassificável. Dolorido. Triste. Sim, acho que é essa a melhor definição de Alabama Monroe (The broken circle breakdown). 
Este é um daqueles filmes que me fez chorar, muito, copiosamente, compulsivamente, e que deixa meus olhos rasos d´água apenas ao lembrar.
Não consigo digerir filmes assim com facilidade. Na verdade tenho uma peculiaridade bastante incômoda para a convivência em grupo: não consigo conversar ou comentar qualquer coisa após assistir filmes que me tocam dessa forma. Todas as palavras me fogem ou soam ridículas. Perco a paciência ao me perguntarem "o que achei do filme". Sobre cinema pouco se "acha", muito se sente. É coisa de pathos, feeling, do mundo inatingível. Assim me senti após Alabama Monroe. Extasiada e triste ao mesmo tempo. Como é possível fazer um filme musical, dramático e crítico ao mesmo tempo? Temáticas opostas no mundo cinematográfico, mas não na vida. Talvez resida aí a beleza do filme. 
Num ritmo assimétrico, a história do casal formado por uma tatuadora e um músico de bluegrass na Bélgica (sim, há bluegrass fora do EUA!) se desenrola da paixão inicial ao desfecho trágico. A filha do casal, com apenas 6 anos, enfrenta o cancêr. A morte inevitável chega (lembrando se tratar do cinema belga e não americano, em outras palavras, não espere por piedade. Isso é cinema para gente grande.) e com ela a sombra do fim do casamento. O enredo aparenta ser dramalhão mexicano, mas se sustenta maravilhosamente entre cenas musicais deliciosas. Sim, é possível e apenas compreensível quando vivenciado. 
Didier conhece Elise ao admirá-la através da vitrine do ateliê de tatuagem "Nunca vi tatuagens tão belas". É para o corpo de Elise que ele olha. Ele diz não saber nada tão importante que merecesse ficar marcado no corpo para sempre. Elise então - em uma das cenas mais belas do filme - afirma que coisas que deixaram de ter importância foram recobertas por outras, mais belas. Diz isso apontando para suas próprias tatuagens, nomes de antigos amores, agora invisíveis sob as tintas coloridas de belos desenhos. 
E o círculo do título original, então quebrado com a morte precoce da filha do casal, se fecha perfeitamente ao final, na derradeira tatuagem escrita na virilha de Elise: Alabama Monroe. 
A discussão religiosa também está lá. A relação ética e moral da Bélgica e EUA também grita pela boca de Didier: células-tronco, eutanásia. Mas aqui nada disso me interessa. Ficarei apenas com as marcas do corpo, que inevitavelmente marcaram a alma, mas acima de tudo estão alí, expostas a olhos nú, recobertas por novos amores e novas dores. 




quinta-feira, 19 de junho de 2014

A segunda vez é sempre melhor

Fui rever "A Grande Beleza", dessa vez no cinema. 
Bauru não traz em sua disponibilidade cultural o gosto pelo cinema europeu. Como quase todo interior, aqui reinam os blockbusters e Hollywood shits. Mas às vezes escapam algumas pérolas, as quais recolho com carinho. 
Eis que o filme de Paolo Sorrentino caiu por aqui de paraquedas e, claro, durou menos que 15 dias. Fui com um amigo rever esse filme que julguei uma das poucas e boas homenagens ao cinema italiano - quase um plágio felliniano, e que fique claro, um excelente plágio. 
Péssima escolha do dia, fomos ao sábado a noite. Pensei comigo, "não terá público, ainda que sábado a noite, então estaremos livres da mastigação de pipocas e comentários imbecis". Logo me arrependi. A sala foi aos poucos se completando. Nem metade, mas além do esperado para um filme europeu. A cada casal que entrava, olhava para meu amigo e apontava, (com uma leve dose de veneno escorrendo da boca): "Aqueles alí não aguentarão nem metade do filme". Dos quatro casais apontados, nostradamicamente acertei três. Um casal miraculosamente resistiu. Para meu desespero, estavam eles numa diagonal perfeita entre a minha cabeça e o pé do macho alfa. 
E lá se foram 142 minutos de puras pérolas aos porcos - ou melhor dizendo, ao porco. O cidadão despejou um sem número de palavrões durante todo o filme. Não contente ao somente dizê-los à namorada, tinha o prazer em fazer com que todos da sala ouvissem. A cada comentário esdrúxulo dele, uma bufada minha. 
Quem me conhece sabe que fujo dos horários de pico do cinema exatamente para não viver esse tipo de experiência. Antes só do que mal acompanhada, como diria o sábio dito popular. 
O parvo falou durante as quase três horas de filme, incessantemente. Resistiu bravamente até o último minuto, quando bradou a última pérola: "que bosta foi essa?"
E lá se foi meu momento privilegiado de curtir o cinema europeu em minha cidade natal.  
Enfim, ainda com toda essa distração, minha primeira impressão se reafirmou: filme, lindo, sensível e genial. Apenas por ele (e não por Fellini!!!) tive vontade de visitar Roma pela primeira vez. 
Entrou para a lista de sets a serem visitados. 

segunda-feira, 28 de abril de 2014

Eu quero ser um gigolô de Woody Allen.

Amantes a Domicílio (2013) Poster

Onde está Woody Allen não há espaço para mais ninguém. John Turturro assina a direção de Fading Gigolo  - com o horrível título "Amantes a Domicílio" em português - mas quem realmente toma a cena e incorpora o filme é Allen. A história por trás do filme é mais interessante: Turturro comentou com seu barbeiro que adoraria dirigir Woody um dia. Eis que o linguarudo do barbeiro, que também corta as madeixas de Allen revela o segredo. Woody liga no mesmo instante para Turturro, aceitando a proposta. Eis um belo filme. 
Leve, delicado, nada pretensioso. Turturro quase desaparece como ator interpretando Fioravante, o amante gerenciado por Allen. Fioravante sabe do que uma mulher gosta e precisa: uma boa conversa pra curar a solidão da vida monótona do casamento ou da viuvez. 

O que mais me espantou no cinema não foi o filme em si, mas sim a reação da plateia que lotava a sessão de domingo a noite, ao se deparar com os judeus ortodoxos do filme. Por menos corriqueiro que seja se deparar com os ortodoxos aqui no interior de São Paulo, a perplexidade dos espectadores era tamanha que senti vergonha alheia. Não sabiam nem sequer qual religião era aquela ali exposta. A ignorância se completou quando ao meu lado, a mais indignadas das pessoas, ria dos cachos de cabelo dos meninos judeus, e de repente gritou de alegria ao ler a marca "Dior" em uma das vitrines pela qual passeava o personagem. E o pior: a decepção da maioria com o desfecho final do filme, que não revelarei, obvio. Quem assistir saberá. Em se tratando de Allen e Turturro, não poderia e não deveria ser diferente. Ainda bem. 


Eu quero ser um gigolô de Woody Allen. 
Quero dar vida às pessoas solitárias. 
Quero fazer sorrir aqueles que já haviam desistido da vida. 
Quero rir da cara da tradição. 
Quero virar tradição. 

sexta-feira, 14 de março de 2014

A esterelidade ninfomaníaca

Não vá assistir Ninfomaníaca esperando um filme erótico. Lars von Trier, como de costume em seus últimos filmes, destila frieza e melancolia
Comecei pelo fim. O fim da ninfomaníaca. As citações a Anticristo estão lá, gritadas. A mãe agora já não goza mais em detrimento da vida do filho. Ela perdeu a capacidade prazerosa de seus orifícios.
"Preencha todos os meus buracos", diz Joe. Literalmente, diria você, afinal, trata-se da ninfomaníaca. Metaforicamente, diria eu. Um ser repleto de buracos, preenchidos pela solidão de seu vicio.
Ninfomaníaca, diz Joe. Nunca "viciada em sexo". E não há um único momento de prazer ou desejo. A esterilidade tomou conta de tudo. Preencheu todos os buracos de Joe
O mal está lá. David Bowie também. Assim como a árvore seca e retorcida.
Um ícone russo a observa contar infâmia ao velho virgem Seligman, um monge laico. O conteúdo religioso é sempre abundante em von Trier: uma experiência mística toma conta da pequena Joe aos 12 anos; na aparição que ela julgava ser a virgem Maria, se encontrava, realmente, com personagens apocalípticos.
Lars von Trier nunca aliviou o jugo. Não há espaço para o politicamente correto em sua câmera. Apenas ironia com pouca dose de lirismo e muita coerência. Sim, von Trier e sua ninfomaníaca são atenciosamente coerentes, afinal, o slogan é claro: forget about love.
Dessa vez nem a sacralidade de Tarkovski suportaria.





sexta-feira, 7 de março de 2014

Tudo muda

Impressionante. Resolvi reler algumas postagens deste blog, em funcionamento desde 28 de agosto de 2006, quando deu continuidade a outro blog, que já não recordo data ou nome.
Conclusões:
1. Eu escrevia muito, todo dia, mesmo que fosse uma única frase.
2. Eu gostava de poemas. Coisa estranha pra mim hoje.
3. Eu escrevia poemas. Mais estranho ainda...
4. O ócio é realmente criativo. Me sinto bem mais vazia hoje, 8 anos depois, terminados uma faculdade, uma especialização e um mestrado.
A vida muda. Mudou. E a única conclusão real é que conhecimento nunca trouxe felicidade.

domingo, 2 de março de 2014

Por que a Beleza importa

A Grande Beleza é um daqueles filmes que não suporta o meio termo: é amado ou odiado. 
Logo nas primeiras cenas em ritmo frenético, embaladas por uma miscelânea bacante entre a música pop e a clássica, o personagem principal nos é apresentado: o jornalista Jep Gambardella, "o rei dos mundanos", um dândi pós-moderno, surgindo com seu indefectível terno alinhado, por entre as muitas mulheres de sua festa de aniversário. A câmera vira de ponta cabeça enquanto Jep saracoteia entre os convidados ao ritmo de "La Colita". E então, a cena desacelera e o tempo quase para quando se ouve os pensamentos de Jep pela primeira vez: "Para esta pergunta, quando jovem,meus amigos davam sempre a mesma resposta. A xana. Mas eu respondia outra coisa: O cheiro da casa dos velhos. A pergunta era: O que você mais gosta na vida? Eu estava destinado a sensibilidade".  
Eis a essência do filme. As disparidades entre vulgar e o clássico, o cafona e o belo. 
Jep havia possuído todos os tipos de mulheres até seus 65 anos, mas a beleza lhe escapara. 
Fellini  renasce com A Grande Beleza. É impossível dissociar este de La dolce Vita. Em ambos a decadência da vida mundana é exposta e escancarada pelos pensamentos de um jornalista em crise. Os cortes e montagens de cenas e planos de Sorrentino são descaradamente fellinianos. E então a beleza se espalha por todas as cenas. 
A Roma clássica é resgatada por Jep, que caminha com uma stripper - Ramona, a filha de um amigo de Jep -  por dentro de palácios, repletos esculturas romanas e quadros renascentistas. Os dois fugiram de mais uma festa incansável, onde o centro das atenções era uma garotinha raivosa que atirava latas de tinta sobre uma enorme tela. E, como por milagre ou mágica, atravessam um jardim acompanhados por um porteiro manco, detentor das chaves dos palácios. Ramona indaga o porteiro de como havia conseguido ser o guardião das chaves dos palácios. E esse responde: "Sou uma pessoa confiável". 
O contraponto é claro: há que se confiar no belo. No clássico. A modernidade renegou essa herança, e hoje, o que nos sobrou foi apenas um bando de crianças fingindo a arte e sendo aplaudidas pelo grande público. A modernidade profanou a beleza.
Em uma das cenas finais, Jep conhece uma freira tida por santa. Naquilo que é uma das mais lindas cenas do filme, a santa observa uma revoada de flamingos (quer ave mais bela que essa?) que pousou no terraço de Jep, e pergunta a ele por que nunca mais escreveu (Jep escreveu apenas um livro, responsável por toda sua fama no mundo das celebridades). Ao que esse responde: "Eu procurava a grande beleza. Mas não encontrei". A santa então pontua: "Sabe por que só como raízes? Por que raízes são importantes". 
Estar no mundo é viver pequenos lampejos de beleza. É o que Jep reflete quando revisita o primeiro amor e a primeira visão de beleza. 
O resto é tudo ilusão. 
La grande bellezza
2013
Paolo Sorrentino



domingo, 23 de fevereiro de 2014

A experiência do cinema

Sim. Se defrontar com um filme é ter uma experiência. Empírica, sinestésica, kinética. 
E para que essa experiência se torne verossímil, não só se faz necessário os atos do diretor, a atuação dos atores, a dedicação da produção, mas estar no cinema é também parte disso.
O cinema como lugar público de experiência estética é pensado de forma a elevar o espírito e prepará-lo para receber o filme. Pelos menos é o que eu sempre esperei ao estar no cinema: luz, somente aquela vinda da tela gigante.  Som inundando a sala por todos os lados. Uma poltrona confortável. Eis o um momento para mim sempre único e inigualável. 
Mas eis que minha ingenuidade naif (não, não é um pleonasmo) se desfaz a cada mastigar crocante das pipocas em volta de mim, a cada barulhinho irritante de pacotes, sacolas e embalagens se abrindo. 
Ok, não me esqueço que o cinema é também indústria cultural e que nesse pacote se inclui tudo aquilo que cabe a ele: junkie food, Coca Cola, bitocas de namorados. 
O que quero dizer é que nem sempre o pacote veste bem em todos os estilos de filmes. Não me imagino mastigando pipoca e assistindo "Anticristo" ou "Azul é a cor mais quente".  É incabível não apenas pelo ridículo da cena (engasgaria com o que quer que fosse às primeiras imagens) mas porque a experiência estaria comprometida. 
O cinema às vezes te exige corpo e alma. 
Que não fiquemos apenas nas migalhas. 


Filmes dos últimos dias:

Her
Spike Jonze
2013

Trem noturno para Lisboa
Billie August
2013