segunda-feira, 16 de dezembro de 2013

A deliciosa nudez castigada - Pondé

A repressão ao sexo mudou de lugar, agora ela está ali onde se situa o discurso "por um mundo melhor". As antigas "freiras" e senhoras protestantes de preto, que falavam de pecado e babavam de ódio das mais gostosas, agora propõem a extinção do sexo pago em nome da "justiça social". Ou seja, a puta, a garota de programa, deve deixar de existir. Antes era o pecado, agora é a "exploração do corpo".

O conceito de pecado implica em desejo reprimido (o que dá tesão), o de "exploração" não pressupõe o desejo, mas sim o papo-furado do "capital malvado". Gente chata essa que fala de "controle político do corpo".

Meu Deus, quando é que nos tornamos tão incapazes de entender um mínimo da natureza humana? Já sei: desde que criamos essa noção autoritária de "lutar por um mundo melhor".
Se um dia não existir mais mulheres que cobram por sexo (de modo direto e sem rodeios), a violência no mundo será ainda maior. Sexo e amor sempre custam dinheiro, além de outras coisas. Aliás, a garota de programa é a mulher menos cara do mundo, custa só dinheiro.

Outras relações custam vínculos, jantarzinhos, longas conversas, "DRs", incertezas quanto à retribuição do investimento de desejo, tempo e dinheiro. Entre essas meninas que trocam dinheiro por sexo, as melhores são aquelas que o fazem porque gostam do que fazem. Aliás, como em toda profissão.

Na Antiguidade, em muitos lugares, essas mulheres generosas faziam parte do processo de transformar um menino num homem. Mesmo em rotinas religiosas e espirituais. Na Bíblia, o numero de personagens prostitutas importantes é razoável. Dirão algumas pessoas mais nervosas que isso é "machismo", mas elas não entendem nada de sexo nem de mulher.

Nelson Rodrigues falava de "uma vocação ancestral". Diria eu, um arquétipo. O mundo fica mais pobre cada vez que esta vocação se torna muda. Tranque-a num quarto e seu perfume atravessará as paredes. Seu desejo escorrerá por debaixo da porta. Esconda-a sob véus, ela ressurgirá nos olhos, nos lábios, nos fios de cabelo. Seja nas roupas, na maquiagem, no modo de andar, de se sentar, de cruzar as pernas, de pensar, de sonhar, as melhores mulheres exalam cheiro de sexo como um dos modos de se relacionar com o mundo. Na filosofia se chama isso de erotismo.

A psicologia evolucionista considera a mulher que troca sexo por dinheiro um salto adaptativo. Elas mantêm o poligenismo masculino sob controle porque não exigem investimento afetivo em troca. Antes uma delas do que uma colega de trabalho. Não se pode falar isso, mas todo mundo sabe disso. Com a colega vem o risco da semelhança de interesses, da convergência de gostos, e o pior, a possível sensibilidade compartilhada.

Mas, eis que o Monsieur Normal, leia-se, o chato do François Hollande, presidente da França, resolveu multar quem for pego com uma dessas mulheres generosas. Não vai adiantar, só vai aumentar a violência, o crime, a distancia geográfica entre o homem e a mulher que querem fazer sexo sem complicações.

Mas, seguramente, vai aumentar a arrecadação do Estado, única coisa que socialista entende de economia. No resto, são analfabetos que só atrapalham o mundo. O que alimenta o socialismo como visão de mundo é a inveja dos que não conseguem ganhar dinheiro contra os que conseguem. De novo, o pecado (a inveja), ilumina melhor nossa natureza do que o blá-blá-blá da política como redenção do mundo.

Os "corretos" falam em "profissional do sexo", porque consideram a expressão puta ou garota de programa um desrespeito com essas mulheres. Pura hipocrisia, como sempre, quando se fala de pessoas que querem "um mundo melhor". Como dizia o filósofo Emil Cioran, vizinhos que são indiferentes são melhores do que vizinhos que têm uma "visão de mundo".

Mas, graças a Deus (que nos entende melhor do que esses santinhos de pau oco), essa lei não vai adiantar porque quanto mais se castiga a nudez paga da mulher, mais deliciosa ela fica.

Ao final, a mulher que troca sexo por dinheiro, sempre é mais desejada quando encontrá-la fica ainda mais caro.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Breaking Bad - Pondé

A série "Breaking Bad" chegou ao fim. Enquanto o cinema americano encareta sob a bota da censura politicamente correta, na qual homens cada vez mais falam fino como mulherzinhas e as mulheres brincam de meninas superpoderosas, a TV arrisca aquilo que o cinema se tornou incapaz de fazer: falar a sério sobre o cotidiano.

Uma sutil herança de obras como "O Médico e o Monstro", de Robert Louis Stevenson, se faz sentir em "Breaking Bad": o homem "bonzinho" é um derrotado. Seu lado mau é essencial para sua virilidade, mesmo espiritual. Sabendo que parte do mundo hoje é composto por gente mimada, vale salientar que ao dizer isso não estou a cultivar o mal como coisa chique. O assunto é mais sério do que pensa nossa vã inteligência infantilizada.

Ecos da terrível hipótese de Nelson Rodrigues sobre os maridos também se fazem sentir em "Breaking Bad". Nelson dizia que a mulher quer um nada como marido. Segundo Nelson, nenhuma das grandes qualidades que fazem de um homem um grande homem servem num bom marido.

O professor Walter White é um homem aniquilado. A maioria de nós é, e no aniversário merece, quando muito, que a mulher bata uma punheta como presente --ainda que prestando mais atenção a alguma oferta da internet.

Um homem um pouco mais bem-sucedido talvez ganhasse um boquete. Trata-se de uma cena homérica da série, mas que indica bem o grau de investimento do casal no sexo (ele tampouco está muito interessado no "presente de pobre").

Espremido entre uma carreira que marca seu fracasso (era um promissor gênio da química quando jovem e virou um medíocre professor de "high school" e um funcionário humilhado de um lava-rápido), um salário miserável, um filho portador de necessidades especiais e uma mulher grávida que enche o saco dele para pintar o quarto, Walter é um homem sem qualquer futuro.

Passa suas noites insone, mergulhado no pânico de todo "loser": o dinheiro vai dar? Vou aguentar muito tempo sendo capacho? Minha mulher também me faz de capacho? Vou conseguir comer minha mulher quando ela quiser? Meu cunhado é mais macho do que eu? Por que eu dei errado e meus colegas de faculdade se deram bem? Serei eu um merda? No que eu errei? Por que estou aqui com esse carro medíocre? E essas férias CVC? Eis o dia a dia de um homem comum.

Ser capacho é a virtude máxima de um "loser" que é bom pai e bom marido. Se a emancipação feminina era só dizer que ela queria trabalhar fora e gozar, a do homem é mais complexa porque aparentemente passa por elementos mais destrutivos do que a feminina.

Um homem que se sente preso na condição de bom pai e bom marido pode chegar à conclusão de que só se libertará quando puser em risco exatamente as virtudes que o estão matando: ganhar dinheiro seguro ainda que pouco, ser provedor, engolir sapo no trabalho, abrir mãos dos seus sonhos em nome de uma casa própria, investir na ideia de que algum dia sua mulher Bovary e seus filhos chorarão em seu enterro, louvando-o. Um homem de classe média aniquilado só experimenta um pouco de respeito (quando muito) quando fica silencioso como um cadáver.

Nosso químico descobre que tem câncer terminal de pulmão (e, como puro que sempre foi, nunca fumou) e "desperta". Esta é a expressão que ele usa quando fala com seu sócio sobre a razão de um "loser" como ele de 50 anos decidir entrar para o crime fazendo droga.

E não só. Passa a comer sua mulher com gosto (e em situações inesperadas) e ela fica mais feliz. Pele bonita, olhos brilhantes, cabelos sedosos, mais generosa no dia a dia, como toda mulher bem comida.

Dito nos termos banais de hoje: "recupera sua autoestima" quando descobre que vai morrer e entra para o crime para ganhar dinheiro. Nosso herói sente que pela primeira vez está vivo, justamente quando sabe que, de certa forma, já está morto.

O mal como componente libertador é uma questão assustadora, mas perigosamente real. Um mundo que goza em defender alfaces terá cada vez mais homens medíocres que para poderem meter em sua s mulheres precisarão ter câncer no pulmão sem nunca ter fumado.

sexta-feira, 8 de novembro de 2013

Atrações de feira - J.P. Coutinho

Espero escrever um dia sobre "The Wire", a série da HBO que me acompanha há vários meses.
Digo "há vários meses" porque, apesar de ter apenas cinco temporadas, é a primeira vez na vida que assisto a uma série que exige repetição contínua do mesmo episódio. Só para saborear a carpintaria literária do produto; a complexidade de cada personagem; e os diálogos, meu Deus, capazes de transformar o calão rasteiro das ruas em duelos verbais dignos de um Edmond Rostand.
O mundo imundo de Baltimore ganha em "The Wire" o mesmo estatuto épico que Victor Hugo concedeu a Paris; e Dickens, a Londres; e Dostoiévski, a São Petersburgo. Não estou a delirar.
Mas estou a lamentar. Quando a TV surgiu em meados do século 20, alguns luditas modernos decretaram a morte do cinema. Enganaram-se, claro. Mas enganaram-se apenas por meio século. Como escreveu Michel Laub em excelente texto para a Folha("O ponto final do cinema", 25/10/2013), as séries de TV americanas sugaram o talento audiovisual que existe.
Só discordo de Laub no otimismo dele: para o colunista, ainda há esperança para a sétima arte se ela conseguir superar o desafio do "ponto final" --contar em duas horas o que as séries contam em dois meses, dois anos, quem sabe duas décadas.
Infelizmente, e para mim, o "ponto final" do cinema "mainstream" começa a ganhar contornos mais literais.
Um bom exemplo é o filme do momento, "Gravidade", de Alfonso Cuarón. Acompanho as críticas. Confesso pasmo com tanto pasmo. Que o filme é um prodígio visual, ninguém nega: os primeiros 15 minutos em plano-sequência, quando a trilha sonora não arruína a beleza do silêncio, valem como experiência estética.
Mas é a pobreza narrativa do filme que deprime, sobretudo para quem esteve nas ruas de Baltimore horas antes.
No filme, um acidente sideral condena uma astronauta a ficar sozinha no espaço. Imaginar Sandra Bullock como astronauta já é abusar da nossa "suspensão da descrença".
Mas o pior vem depois: precisamente para comprimir uma história plausível em menos de duas horas, "Gravidade" oferece todos os clichês em sucessão contínua.
Sabemos que a astronauta perdeu uma filha na "mãe" Terra. E para quem tem esse prejuízo na biografia, surge o dilema: é melhor desistir e entregar-se ao esquecimento do espaço? Ou, apesar de todas as mágoas com o mundo "cá em baixo", tentar ainda regressar para ele e reaprender --literalmente-- a seguir em frente?
Não sei como classificar esta simplificação adolescente que é apresentada com "gravitas" cósmica pelos roteiristas do filme. Sei apenas que em nenhum momento acreditamos no luto daquela mãe --um luto que surge do nada e se dissolve no nada. Sem falar do óbvio: uma mãe com semelhante cicatriz no cardápio dificilmente estaria em missão espacial.
Para Michel Laub, o fato de o cinema exigir maior brevidade que uma série de TV pode ser um desafio criativo. Sim, pode e admito que nas mãos certas ainda seja. E também admito que o cinema de hoje poderia estar para o conto como as séries de TV para o romance.
Que o mesmo é dizer: abandonando o desejo de "totalidade" que o romance (e a série de TV) encerra, o cinema ganharia em aprofundar os "fragmentos de realidade" que fizeram a grandeza de Tchékhov, Carver ou Pritchett.
O problema é que os filmes "mainstream" que dominam as salas querem ser romances no espaço de um conto. Esquemáticos, nunca passam de esqueletos. Ou nem isso: apenas pretendem usar o texto como pretexto para qualquer prodígio formal.
A redescoberta recente do 3D parece apontar esse caminho e "Gravidade" é novamente um exemplo: se a TV é narrativamente mais poderosa, pensam os estúdios, o cinema pode deslumbrar as plateias com a "experiência" visual só possível na grande tela.
É uma forma de ver as coisas. Mas é também uma forma regressiva de ver o cinema: de "atração de feira" a expressão artística, o cinema estaria novamente condenado a ser "atração de feira" com a ambição explícita de maravilhar as plateias. Seria, no fundo, um retorno aos ilusionismos primitivos de Georges Méliès. Exagero?
Acredito que sim e desejo que sim. Mas não deixa de ser melancólico que, nos alvores do século 21, exista mais grandeza na baixeza de Baltimore do que no espaço infinito de Sandra Bullock.

Morrissey - Michel Laub

Por volta de 1987, quando os Smiths eram minha banda estrangeira preferida, seu cantor e líder Morrissey atacou o então onipresente George Michael com uma frase que cito de cabeça: "Se ele experimentasse viver a minha vida por um minuto, correria até a árvore mais próxima e se enforcaria".
Talvez involuntariamente, as recém-lançadas memórias de Morrissey ("Autobiography", Penguin Classics) tornam a declaração emblemática. Não posso avaliar os sofrimentos íntimos de George Michael, mas há turbulências públicas o bastante em sua trajetória para intuir que a coisa não foi fácil (como nunca é para ninguém).
Já Morrissey é um pouco o que se sabe por suas canções: colégios rígidos na infância, medo e fascínio por gangues de rua, inadequação sexual, vegetarianismo, romantismo no sentido clássico do termo, melancolia. Há biografias que iluminam a obra de um artista. Aqui é o contrário: a leitura pode soar tediosa para quem não tem familiaridade com o universo desta figura peculiar.
Um pouco porque as constantes referências às próprias desgraças não encontram correspondência nos fatos descritos. Manchester é úmida e cinzenta, a classe média baixa inglesa dos anos 1960 e 1970 tinha poucas perspectivas, há perdas e desilusões como de praxe, mas apenas retórica vitimista não torna literariamente dramática uma experiência.
Resta então a genealogia de uma formação estética, a melhor parte do livro, juntamente com os (raros) detalhes sobre álbuns e composições. De Oscar Wilde a David Bowie, de W.H. Auden e James Dean a New York Dolls, Patti Smith e Lou Reed, as referências de Morrissey sempre dialogam com a esfera comportamental, numa projeção daquilo que ele mesmo se tornaria: um artista que mudou seu meio e seu tempo com uma obra e, tão importante quanto, uma postura.
No caso, uma mescla de princípios, autoindulgência e ironia. Eu tinha 14 anos em 1987, e claro que só identifiquei o primeiro dos três itens no ataque a George Michael.
Apenas mais tarde, conhecendo melhor o ethos da cultura pop britânica, percebi que era a sério e não era. Um astro milionário acredita ser a pessoa que mais sofre no mundo, fazendo dessa crença a expressão de uma angústia geracional, de uma sinceridade imaculada frente à hipocrisia reinante no showbiz, mas o tom propositalmente afetado mostra consciência de como tudo pode ser ridículo.
Tal ambiguidade salvou o cantor do que o tempo quase sempre faz a artistas como ele. O kitsch oferece seus braços gordos e tardios àqueles que, como os Smiths, tornam-se esteio de adolescentes fracos, confusos e sozinhos. Morrissey costumava driblar o perigo em entrevistas como a de 1987 e paródias com a própria iconografia --roupas, flores, gestos, topete.
"Autobiography" tem um pouco desse humor que suaviza o egocentrismo, em especial no veneno contra desafetos nas gravadoras, na música e na imprensa. Também tem algo da veia lírica do autor, que escreve num registro preciosista e cheio de imagens. Mas em muitos pontos as qualidades são sufocadas pelo rancor, pela mesquinhez dos vereditos, por uma incapacidade juvenil de empatia com a vida não idealizada.
Minha experiência emocional com os Smiths, digamos assim, está encerrada há tempos. Não sei o quanto dela é conceito, o que aprendi lendo sobre a banda ao longo dos anos, e o quanto é impacto direto de atributos artísticos de recepção mais sensorial. A voz de Morrissey, por exemplo. Ou sua maneira de encaixar temas sombrios em melodias que transformaram a energia do pós-punk num pop solar e glorioso, compostas por parceiros --como o guitarrista Johnny Marr-- de talento igualmente superior.
O caráter dessa memória afetiva exclui o distanciamento intelectual. Trata-se de um problema quando se lê as memórias de um antigo ídolo. Morrissey continua importante para mim em 1987. Também na carreira solo bem-sucedida, que acompanhei até certo ponto, e em suspensões eventuais e voluntárias da descrença --numa tarde nostálgica ouvindo discos antigos, em apresentações como as que ele fez aqui em 2000 e 2012.
Só que o livro precisa ser julgado a partir do que sei hoje. Levada ao pé da letra, como o autor parece querer muitas vezes, sua leitura reforça a obviedade de que o tempo passou, e o mundo é tão maior que uma banda de rock, e é triste e bom e engraçado que seja assim.

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

Literatura como cura - Pondé

Hoje quero falar de dois sintomas que marcam nossa época. O primeiro sintoma é a falação ruidosa de nosso mundo; o segundo é a ideia de que o mundo sofre porque não nos amamos e que tudo se resolveria se nos abraçássemos e parássemos de sermos gananciosos.
Fala-se demais hoje. Todos têm opinião. Até jovens de 20 anos são chamados a dar opinião sobre o mundo e a sociedade, quando mal sabem arrumar o quarto. E quando se elegem crianças de 25 anos como arautos da sociedade (adulto que faz isso, o faz, normalmente, para ter discípulos fiéis e fanáticos, ou porque é bobo mesmo), o resultado é que acaba se pensando que o mundo começou, como diz um amigo meu muito esquisito, em "Woodstock".
Quando se pensa isso, acaba-se imaginando que o problema do mundo é mesmo aprendermos que "all you need is love"... Infelizmente, a humanidade é mais complicada do que pensa nossa vã inteligência woodstockiana. Contra essa visão infantil da realidade (este é o segundo sintoma do qual falei acima), proponho a leitura da obra do grande crítico norte-americano Edmund Wilson. Vou a ele já; antes, quero voltar ao problema do ruído mais especificamente (o primeiro sintoma do qual falei acima).
Somos um grande mundo ridículo e falastrão. Decorrente dessa falação, um ruído infernal toma conta do dia a dia. O silêncio, às vezes, é um dos maiores indicativos de maturidade, não só de uma pessoa, mas de uma civilização.
Estou falando isso por conta de um breve ensaio que caiu na minha mão esses dias, parte integrante do volume "Best American Essays 2013", editado por Cheryl Strayed.
O ensaio ao qual me refiro foi escrito pela prêmio Nobel Alice Munro e chama-se "Night". Nele, a autora conta a operação que fez quando criança para tirar o apêndice e uma "coisa do tamanho de um ovo de peru". Munro compara o comportamento atual diante de casos como o dela e o comportamento de seus pais na época. A conclusão é que hoje se falaria como o diabo do risco que ela corria na época. Mas, ao contrário, pouco se falou do assunto, "respeitando o medo" sem falação. Conta Munro que, nessa época, ela dormia num beliche com sua irmã mais nova (moravam numa espécie de granja), e que numa noite olhou para a irmã e pensou em sufocá-la.
A partir daí, não conseguia mais dormir, pensando no ímpeto que tivera de matar sua irmã. Numa das manhãs seguintes a suas noites de insônia, encontrou com seu pai, todo vestido chique, saindo de casa de manhã muito cedo. Contou para ele o que pensara e o horror que sentira.
Seu pai simplesmente lhe disse que esquecesse aquilo e que essas coisas passam. Depois, adulta, lembra como o modo simples de falar do pai a acalmou profundamente. A pequena Alice nunca mais teve insônia.
Na sequência, a prêmio Nobel comenta que nunca perguntara ao pai para onde ele ia tão cedo e tão elegante. Perguntou-se se ele ia ao banco renegociar a dívida da família ou ver a mulher que amava, mas com quem não podia ficar porque amava sua família... Silêncio. Nem uma linha de rancor. Hoje, escreveriam uma tese sobre como seu pai poderia ter sido um homem desatento ou, quem sabe, infiel. Ao lembrar do seu pai no momento do reconhecimento em que recebera o prêmio, Munro pensa em como ele teria ficado orgulhoso de sua pequena filha insone.
Nessas horas, tenho saudade do passado e lamento como nos transformamos em adolescentes barulhentos que se levam demasiadamente a sério.
O segundo autor que quero comentar é Edmund Wilson, um dos últimos críticos literários, segundo Paulo Francis, a enfrentar a literatura sem se esconder atrás de grandes teorias abstratas (que se querem "concretas").
No volume editado por Francis pela Companhia das Letras em 1991, "Onze Ensaio - Literatura, Política, História", esgotado, aparece sua "visão de mundo": a história é um longo processo através do qual as civilizações se devoram, criando e destruindo, em círculos, indo para lugar nenhum. Concordo.
Pura coragem intelectual, que tanto faz falta hoje, nesta época de líderes adolescentes que creem em Woodstock como modelo de sociedade.

terça-feira, 8 de outubro de 2013

Uma alma em agonia - Pondé

Outro dia, dirigindo pelo trânsito de São Paulo, ouvi uma música da Lana del Rey que me chamou atenção, pela ideia que nela se repetia: o medo sentido por uma mulher de ser abandonada por seu amado um dia, quando sua beleza e juventude acabassem e restasse apenas sua "aching soul" (sua alma em dor ou em agonia). Uma letra romântica banal, como todo clichê.

Mas quem em sã consciência negaria que essa mesma letra banal descreve a dor de todos nós, homens e mulheres que envelhecem e perdem a beleza dia após dia? Acredito mais nessa letra de música do que em inúmeros textos sofisticados sobre "relações entre sexo, afeto e poder".

Cada dia que passa, temo pela irrelevância dos estudos acadêmicos das chamadas ciências humanas, devido ao que o intelectual americano Thomas Sowell chama de alienação da classe "ungida" que somos nós, os intelectuais.

Essa música seria facilmente acusada de repetir a "ideologia dominante" (para mim, esse conceito tem a mesma validade de dizer que algo acontece porque Saturno está na casa sete...) e de que esse medo é simplesmente "culpa" da opressão do conceito de beleza capitalista ou sexista. Pensar que cultura pop seja simples sintoma da "ideologia dominante" é ser incapaz de enxergar o óbvio.

A vida é clichê, por isso, temo, revistas femininas logo serão mais relevantes no debate sobre comportamento e afetos contemporâneos do que estudos acadêmicos. Seria essa, afinal, a vingança do jornalismo, muitas vezes menosprezado por nós, intelectuais, contra a soberba dos ungidos que nada entendem das agonias de carne e osso? Talvez a condição de escrever sob o gosto de sangue e de saliva que tem a trincheira da vida real dê às revistas femininas mais consistência do que as elaborações sem corpo dos especialistas em afetos.

O filósofo Francis Bacon (séculos 16-17) tirava sarro da "baixa escolástica" e suas questões sobre quem puxava o burro, quando se puxava um burro com uma corda, se era a pessoa ou a corda que puxava o burro... (risadas?). Penso que, em 500 anos, rirão de nós da mesma forma quando se diz hoje em dia que o medo de uma mulher (ou de um homem) de ser abandonada é sintoma de "opressão social", e que pessoas emancipadas não sofrem com isso. O conceito de opressão virou um grande fetiche dos intelectuais.

Suponho que assim como os textos de Sade (considerado lixo no século 18) hoje são parte do cenário filosófico, em 500 anos as revistas femininas serão mais importantes para a compreensão do que pensamos hoje do que toda a parafernália de teorias sobre "relações de poder".

Um adendo: vale salientar que Sade não ficou importante porque é o ancestral de toda teoria que relaciona sexo à perversão, mas sim porque ele relaciona sexo, afeto e a crueldade de nossa natureza humana e da natureza biológica como um todo.

Talvez um dos maiores medos humanos e que move o mundo desde sempre seja justamente o medo de perder a beleza e a juventude, e se restará alguém ao nosso lado quando formos apenas uma alma em agonia. Já que as ciências humanas mentem, a esperança é que as revistas femininas falem a verdade que não quer calar: ao final, temos mesmo é medo de sermos feios e mal-amados.

Por fim, recomendo vivamente o livro "Não se Pode Amar e Ser Feliz ao Mesmo Tempo" (Nova Fronteira), de Nelson Rodrigues, escrito sob o pseudônimo de Myrna, sua rápida coluna de 1949 no "Diário da Noite". Esta "mulher" Myrna é uma sábia. Falaremos dela em 500 anos.

Revistas femininas e autores como Nelson Rodrigues são acusados de moralismo. Antigamente o moralismo relacionava sexo, afeto e demônios. Incrível como não se vê que hoje o verdadeiro moralismo está nas teorias que relacionam as formas comuns (dos meros mortais) de afeto e sexo a "frutos da opressão da mulher".

Aprendemos a negar nosso medo com teorias sofisticadas, mas o medo sempre aparece. Ficou chique dizer que se é emancipado, quando na realidade nem só de liberdade vive o desejo, mas também de pecado, medo e vergonha. Como dizia Nelson, "o desejo também precisa de seu claustro".

Homens de bem - J.P. Coutinho

Você, leitor, é pessoa honesta e cumpridora. Trabalha. Paga as contas. É decente com a mulher e os filhos. Mas quando olha em volta, o cenário é selvagem. Os colegas usam e abusam da dissimulação e da mentira. Sem falar da corrupção de superiores hierárquicos ou de políticos nacionais, esse câncer que permite a muitos deles terem o carro, a casa, as férias, a vida que você nunca terá.

Para piorar as coisas, eles jamais serão punidos por suas viciosas condutas. A pergunta é inevitável: será que eu devo ser virtuoso? Será que eu devo educar os meus filhos para serem virtuosos?

Essas perguntas foram formuladas por Gustavo Ioschpe em excelente texto para a "Veja". De que vale uma vida ética se isso pode representar, digamos, uma "desvantagem competitiva"?

Boa pergunta. Clássica pergunta. Os gregos, que Ioschpe cita (e, de certa forma, rejeita), diziam que a prossecução do bem é condição necessária para uma vida feliz. Mas o que dizer de todas as criaturas que, praticando o mal, o fizeram de cabeça limpa por terem falsificado a sua própria consciência?

Apesar de tudo, Gustavo Ioschpe tenciona educar os filhos virtuosamente. Não por motivos religiosos, muito menos por temer as leis da sociedade. Mas porque assim dita a sua consciência. Um dia, quem sabe, talvez o Brasil acabe premiando essas virtudes.

A resposta é boa por seu otimismo melancólico. Mas, com a devida vênia ao autor, gostaria de deixar dois conselhos para acalmar tantas angústias éticas.
O primeiro conselho é para ele não jogar completamente fora as leis da sociedade na definição de boas condutas. Porque quando falamos de vidas éticas, falamos de duas dimensões distintas: uma dimensão pública, outra privada.

E, em termos públicos, acreditar que os homens podem ser anjos (para usar a célebre formulação do "Federalista") é o primeiro passo para uma sociedade de anarquia e violência.

Na esfera pública, eu gostaria que os homens fossem anjos; mas, conhecendo bem a espécie, talvez o mínimo a exigir é que eles sejam punidos quando se revelam diabos.

Se preferirmos, não são os homens públicos que têm de ser virtuosos; são as leis que devem ser implacáveis quando os homens públicos são viciosos.

Isso significa que a principal exigência ética na esfera pública não deve ser dirigida ao caráter dos homens --mas, antes, ao caráter das leis e à eficácia com que elas são aplicadas. No limite, é indiferente saber se os homens públicos são exemplos de retidão. O que importa saber é se a República o é.

Eis a primeira resposta para a pergunta fundamental de Gustavo Ioschpe: devemos educar os nossos filhos para a virtude? Afirmativo. Ninguém deseja para os filhos a punição exemplar das leis. E, como alguém dizia, é do temor das leis que nasce a conduta justa dos homens. Desde que, obviamente, as leis inspirem esse temor.

E em privado? Devemos ser virtuosos quando nem todos seguem a mesma cartilha e até parecem lucrar com isso?

Também aqui, novo conselho: não é boa ideia jogar fora os gregos. Sobretudo Aristóteles, que tinha sobre a matéria uma posição sofisticada e, opinião pessoal, amplamente comprovada.

Fato: não há uma relação imediata entre virtude e felicidade. Mas Aristóteles gostava pouco de resultados imediatos. O que conta na vida não são as vantagens que conseguimos no curto prazo. É, antes, o tipo de caráter que "floresce" (uma palavra cara a Aristóteles) no curso de uma vida.

E, para que esse caráter "floresça", as virtudes são como músculos que praticamos e desenvolvemos até ao ponto em que a "felicidade", na falta de melhor termo, se torna uma segunda natureza.

Caráter é destino, diria Aristóteles. O que permite concluir, inversamente, que a falta de caráter tende a conduzir a um triste destino. Exceções, sempre haverá. Mas, aqui entre nós, confesso que ainda não conheci nenhuma. Não conheço maus-caracteres que tiveram grandes destinos.

Sim, leitor, não é fácil olhar em volta e ver como a mesquinhez alheia triunfa e passa impune. Mas não confunda o transitório com o essencial.

E, sobretudo, nunca subestime a capacidade dos homens sem caráter para arruinarem suas próprias vidas.

Educar os filhos para serem "homens de bem" é também ajudá-los a evitar essa ruína.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Escorpiões do deserto - Pondé

O oriente Médio tem uma fábula que é comum para quem lá viveu ou conhece bem a região: certa feita, um escorpião pediu a uma rã que o deixasse atravessar o rio nas suas costas. Ela, atenta, disse a ele que não era idiota e que não o deixaria atravessar o rio nas suas costas, porque ele a picaria no meio da travessia e ela morreria afogada.

O escorpião respondeu que não se preocupasse, porque se ele a picasse morreria junto com ela. A resposta pareceu razoável e eles iniciaram a travessia.

No meio do caminho, o escorpião picou a rã e, enquanto ela afundava, e ele com ela, ela perguntou desesperada: "Mas por quê? Você vai morrer comigo". Ele respondeu: "Sinto muito, mas é a minha natureza". É assim que o Oriente Médio se vê.

É impressionante como a minha classe intelectual se fez ridícula diante da Primavera Árabe, mais especificamente agora, com a Síria, achando que ali havia um movimento democrático islandês. Não há isso nem na Síria, nem no Egito. A democracia ali é tão estranha quanto para nós seria uma teocracia.

Mas a vida intelectual pública está morta no Brasil, vítima da mania de ver em toda parte "um processo histórico" em curso, da avenida Paulista às ruas de Damasco, o mesmo ridículo "frisson" com "um processo político" em curso, visando a "autonomia popular". Puro fetiche.

Não existe tal coisa como "um processo político histórico". Esses caras nunca se curaram do "mito da dialética" (expressão usada por Edmund Wilson, crítico americano, em seu grandioso "Rumo à Estação Finlândia"). Há muito que nós, intelectuais, sobrevivemos de fetiche no debate político. Esse fetiche chama-se "fetiche da democracia", "fetiche do povo" ou "fetiche da revolução".

Mais recentemente, e associado aos movimentos nos países árabes e às baladas de junho, nasceu um novo fetiche, o da revolução causada pelas redes sociais.

No Oriente Médio, os escorpiões riem desse ridículo, que tem em Obama "sua baratinha tonta" querida. O Obama pensa que é presidente de um centro acadêmico de ciências sociais.

Alguns intelectuais europeus, tomados pelo "frisson" de gozarem com seu próprio fetiche, chegaram a falar em "dois momentos da Primavera Árabe" (à la Marx) por conta do golpe "secular" do exército egípcio em cima do governo fundamentalista eleito democraticamente. Por que não paramos de projetar esquemas metafísicos (do tipo dialética hegeliano-marxista) sobre o mundo?

Acabamos por acreditar que obscuros cineastas árabes vivendo nos EUA ou professores de filosofia em capitais árabes (exemplos de "contaminação" com nosso modelo ocidental, ferramentas de nosso próprio gozo, porque "pensam como nós") representam a população e a vida nesses países.

Não, a Síria estava muito melhor (veja que não digo perfeita) antes dessa pseudoprimavera pela democracia.

A Síria, como a Jordânia hoje, era um país com razoável liberdade religiosa e social, com um cotidiano sem muita miséria e violência.

Ela é o palco da disputa entre Arábia Saudita (sunita) e Irã (xiita, defensora de Assad), que vivem num estado de Guerra Fria. Mas, nem o Irã, nem os sauditas, nem os EUA, nem Israel querem a queda de Assad, porque ele, mesmo que não perfeitamente, mantém um equilíbrio na região.

Mas, desde o momento em que a mídia ocidental batizou os movimentos nos países árabes de "primavera" (ecoando a Primavera de Praga), fetiche ocidental, estabeleceu-se um programa de interpretação daqueles fenômenos como se eles fossem réplicas da mitológica Revolução Francesa, de Maio de 68 (a revolução de queijos e vinhos) e da queda das ditaduras marxistas no Leste Europeu. Entrevistando "ocidentalizantes" naqueles países, acabamos por projetar sobre eles uma demanda estranha àquele universo.

Ao endossar sem crítica os chamados rebeldes sírios, acabamos por "justificar" a guerra civil síria, para depois ficarmos posando de Madalenas arrependidas com a violência na Síria.

Em vez disso, deveríamos ouvir a sabedoria do escorpião do deserto e menos nossos livros escritos sob a tutela de taças de vinhos nas ruas de Paris.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

Mais baratinhas tontas - J.P. Coutinho

1.

Há pessoas que duvidam do aquecimento global. E há pessoas que duvidam do aquecimento global antropogênico. Não é a mesma coisa.

As primeiras desconhecem, em suma, a história da humanidade. Entre os séculos 11 e 13, o planeta aqueceu bastante. Nos séculos 17 e 18, parece que arrefeceu bastante. Isso para ficarmos em períodos anteriores à Revolução Industrial.

Que a humanidade aquece (e arrefece) por longos períodos de tempo, eis um fato que dispensa grande polêmica científica.

Coisa diferente é saber se a humanidade aquece porque os homens aquecem o planeta. Atenção aos termos: eu não disse que os homens não aquecem o planeta. Apenas questiono se o planeta aquece dramaticamente porque os homens o aquecem dramaticamente com a emissão de CO2.

A partir do ano 1000, as temperaturas na Europa não seriam muito diferentes das atuais. Será preciso lembrar que o homem medieval só emitia gases para a atmosfera depois de certas comidas condimentadas?

Pois bem: parece que o Painel Intergovernamental sobre Mudanças Climáticas das Nações Unidas começa a ter dúvidas sobre as suas próprias certezas. Já tinha escrito na edição on-line da Folha a respeito. O "Sunday Telegraph" volta agora ao assunto e eu volto também.

Para começar, parece que desde 1951 o mundo aqueceu 0,12ºC por década, e não 0,13ºC. Coisa pouca? Admito. Mas para quem gosta de fazer previsões com o rigor da ciência, números são números.

Mas há mais: a julgar pelo relatório preliminar do Painel, os cientistas não concederam a importância devida às variações climatéricas naturais, que muitas vezes são mais determinantes do que as emissões de CO2 propriamente ditas.

O período medieval referido é apenas um exemplo. E a estagnação das temperaturas desde 1997 é outro: parece que os termômetros não dão sinais de vida há 15 anos e o gelo antártico, que se considerava em desaparecimento, atingiu em 2013 quantidades alarmantes.

Claro que nada disso parece perturbar, por enquanto, o dogma central do Painel da ONU: com "95% de certeza" (sic), o relatório continua a defender que o aquecimento global é culpa do homem.

Já é um progresso: 95% sempre permite que céticos como eu se agarrem aos restantes 5%. E não será de excluir que esses 5% tenham o mesmo destino que o gelo em vias de extinção na Antártida.

2.

Leitores vários não gostaram do meu texto ("Baratinha tonta") na semana passada. Barack Obama, uma barata tonta no caso da Síria?

Longe disso, escreveram-me alguns deles. Depois de estabelecer "linhas vermelhas" que o regime sírio não poderia cruzar, Obama conseguiu finalmente que Bashar al-Assad entregue uma lista com todo o seu arsenal químico para posterior destruição até o meio do ano que vem. Obama ganhou essa jogada.

Com a devida vênia ao auditório, discordo. Obama pode ter encontrado no acordo russo-americano uma boia de salvação para terminar o segundo mandato com um mínimo de dignidade. Mas quem saiu a ganhar não foi Obama. Foi Bashar al-Assad e, claro, Vladimir Putin.

Sobre Putin, a carta do próprio publicada no "The New York Times" será um dia estudada como peça notável de hipocrisia política.

Depois de declarar que Moscou não apoia Damasco (o envio de material militar tem sido apenas por razões humanitárias, presume-se), Putin veste o traje de grande democrata para lembrar ao mundo a importância dos direitos humanos e da lei internacional (que ele, escusado será dizer, respeita na Rússia como grande democrata que é).

Sobre Assad, nem vale a pena comentar a fantasia: acreditar que o regime vai entregar uma lista com todo o seu arsenal químico é coisa de otários, não de gente adulta e racional.

Como é coisa de otários acreditar que os inspetores externos terão livre acesso a qualquer instalação militar (no meio de uma guerra civil), ainda para mais quando se sabe, via "The Wall Street Journal", que o exército sírio tem sido veloz na dispersão do material por mais de 50 locais diferentes.

O que vem aí é mais do mesmo: uma farsa, na melhor tradição iraniana, em que os inspetores não inspecionam nada e o regime colabora o suficiente para ganhar tempo e poder continuar as suas matanças "convencionais".

Viva Obama! Tudo está bem quando acaba mal.

segunda-feira, 16 de setembro de 2013

A ética das baratas - Pondé

As pessoas têm crenças desde a pré-história. Nossa constituição frágil é uma das razões para tal. Hoje, cercados de luxo e levados a condição de mimados que somos, até esquecemos que há anos atrás mais da metade de nossas mulheres morriam de parto. Elas viviam por conta de ficarem grávidas e pronto. Hoje existe essa coisa de "escolha", profissão, filhos depois da pós, direitos iguais, ar-condicionado, reposição hormonal, bolsa Prada.

Esquecemos que direitos e escolhas são produtos mais caros do que bolsa Prada. Pensamos que brotam em árvores.

Mas existem crenças mais frágeis do que outras, algumas que beiram o ridículo. E algumas delas até recebem bênçãos de filósofos chiques.

Em 1975, o filósofo utilitarista australiano Peter Singer publicou um livro chamado "Animal Liberation", que deixou o mundo de boca aberta.

Para Singer, "bicho é gente" (porque também sente dor). A partir daí, ele encampou toda uma gama de militantes que gostaria de tornar a alimentação carnívora um crime como o canibalismo.

Achar que se pode comer animais se basearia no preconceito de que os animais seriam "seres inferiores", daí o conceito de "especismo" como análogo ao de "racismo", o conhecido preconceito contra certas raças que foram consideradas inferiores no passado.

Tudo bem a ideia de que devemos tratar os animais com respeito e carinho e sem maus-tratos (eu pessoalmente gosto mais dos meus cachorros do que de muitas pessoas que conheço, e um deles é mais inteligente do que muita gente por aí), mas esta discussão quando toca as praias dos fanáticos puristas (essa praga que antes era limitada a crente religioso, mas hoje também se caracteriza por ser um ingrediente do fanatismo sem Deus de nossa época) é de encher o saco. Se um dia eles forem maioria, o mundo acaba.

O mundo não sobreviveria a uma praga de pessoas que não usam sapatos de couro porque os considera fruto da opressão capitalista contra os bichinhos inocentes.

Ainda bem que esta "seita verde" tende a passar com a idade, e aqueles que ainda permanecem nessa depois de mais velhos ou são hippies velhos que fazem bijuteria vagabunda em praças vazias (tem coisa mais feia do que um hippie velho?) ou são pessoas com tantos problemas psicológicos que esta pequena mania adolescente até desaparece no meio do resto de seus sofrimentos com a vida real.

Recentemente ouvi uma história hilária: alguém contra matar baratas porque não se deve matar nenhuma forma de vida. Risadas? É bom da próxima vez que alguém te convidar para ir na casa dela você checar se ela defende os direitos das baratas.

Nem Kafka foi tão longe ao apontar o ridículo de um homem que, ao se ver transformado num enorme inseto marrom, se preocupou primeiro com o fato de que iria perder o bonde e por isso perder o emprego.

Eu tenho uma regra na vida: quando alguém é mais ridículo do que alguns personagens do Kafka, eu evito esta pessoa.

Às vezes me pergunto o que faz uma pessoa razoável cair num delírio como esse. Como assim "não se deve matar nenhuma forma de vida"?

A pergunta é: essa moçadinha seguidora de uma mistura de filosofia singeriana aguada e budismo light (com pitadas de delírio) já olhou para natureza a sua volta?

A natureza é a maior destruidora de vidas na face da Terra. Ela mata sem pena fracos, pobres e oprimidos. A natureza é a maior "opressora" da face da Terra. E mais: normalmente essa moçadinha é bem narcisista e muito pouco solidária com gente de carne e osso.

Se todo mundo defender o direito da baratas, um dia vamos acordar com baratas na boca, nos ouvidos, na xícara do café da manhã. A mesma coisa: se não comermos os bois e as vacas, eles vão fazer uma manifestação na Paulista pedindo direito a pastos de graça ("os sem-pastos") para garantir a sobrevivência de seus milhões de cidadãos bovinos.

Pergunto a esses adoradores de baratas: ele já pensou que as alfaces também sofrem? ela já pensou que quando come uma alface está interrompendo toda uma vida feliz de fotossíntese? Que as alfaces também choram? Malvados e insensíveis...

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Baratinha tonta - J.P. Coutinho

Nunca sigas o teu primeiro instinto porque ele será sempre generoso. O conselho é de Talleyrand, diplomata e premiê francês do século 19. É um bom conselho. Pena que Barack Obama nunca o tenha seguido.
A vaidade do presidente americano, apaixonado pelas suas palavras grandiloquentes e pela sua suposta retidão moral, é incompatível com o realismo cínico, porém salvífico, do político francês.
E, no entanto, se Obama tivesse lido Talleyrand, talvez ele não tivesse mergulhado os Estados Unidos no desastre do dossiê sírio. Que promete continuar e gangrenar.
Tudo começou há um ano, quando Obama, do alto do seu púlpito, seguiu o seu instinto generoso e afirmou que o governo da Síria não poderia cruzar certas "linhas vermelhas".
Que bonito! O carniceiro de Damasco poderia matar o seu povo de todas as formas possíveis e imaginárias. Como, de fato, o tem feito com apreciável sucesso.
Mas, cuidado!, ele não poderia usar armamento químico. Isso é feio. Isso fere a sensibilidade do mundo. E Obama, humildemente, existe para representar o mundo.
Como é evidente, o moralismo vácuo do personagem é aberrante. Não apenas porque armamento convencional tem uma capacidade destrutiva que pode ser incomparavelmente superior a qualquer arma química. Mas sobretudo porque, com armas químicas ou sem elas, é a brutalidade de Bashar al-Assad que deveria ter comovido Obama desde o início.
Se o presidente americano considerava intoleráveis as matanças de Assad, só restava a Obama ter agido em conformidade: punindo o regime, promovendo a sua queda e apoiando os rebeldes que, nesses tempos primitivos, ainda lutavam sem a Al-Qaeda a acompanhá-los.
Mas a triste história das "linhas vermelhas" revela duas cegueiras suplementares. Para começar, estabelecer "linhas vermelhas" em política internacional é sempre uma tentação para que alguém se atreva a cruzá-las.
E esse alguém pode ser Assad; ou a oposição a Assad; ou os grupos jihadistas que operam no interior da Síria (e que já representam 20% dos rebeldes) --as hipóteses são múltiplas. As hipóteses são tentadoras.
E, cedo ou tarde, elas acabariam por ser experimentadas: por Assad, para testar a seriedade do ultimato de Washington; pela oposição a Assad, para arrastar Washington para o conflito sírio; ou até por ambos, como parece ser o caso nesta luta entre selvagens.
Por fim, e talvez mais importante, ninguém estabelece "linhas vermelhas" se não sabe antecipadamente o que irá fazer se elas forem violadas. Obama, manifestamente, não sabe.
Às segundas, quartas e sextas, o presidente americano quer punir Assad com bombardeamentos aéreos. Às terças e quintas, Obama exige mais: criar as condições para mudar o regime. Aos sábados e domingos, dias de descanso, talvez Obama deseje secretamente não fazer nada e esquecer o assunto de uma vez por todas.
Hoje, cada um desses caminhos já se tornou pior que o anterior. Se decidir punir Assad --pelo ar, jamais por terra-- isso deixará o ditador intacto e, aos olhos dos sírios, o verdadeiro resistente contra mais uma agressão imperialista.
Se, pelo contrário, Obama optar pela mudança de regime, isso pode significar entregar o poder de Damasco aos exatos jihadistas que os Estados Unidos passaram a primeira metade do século 21 a combater.
Por último, não fazer nada, depois da belíssima retórica das "linhas vermelhas", será sempre uma revelação de medo e fraqueza que o terrorismo islamita não esquecerá.
Não admira que, perdido no seu labirinto, Obama já admita tudo: consultar o Congresso; pedir autorização às Nações Unidas; talvez fazer uma peregrinação à Senhora da Aparecida. Os Estados Unidos não têm um presidente; têm uma baratinha tonta que fala demais e depois espera por um milagre.
Faça o que fizer no conflito da Síria, Barack Obama já perdeu. E perdeu porque acreditou que as suas palavras sentimentais, que costumam conquistar os corações moles do Ocidente, teriam o mesmo efeito hipnótico entre a pior vizinhança do Oriente Médio.
Se calhar, foi por isso que lhe atribuíram o Prêmio Nobel da Paz. Guerra, definitivamente, nunca foi com ele.

segunda-feira, 9 de setembro de 2013

As raízes do romantismo - Pondé

O mundo, às vezes, pode parecer um lugar assustador. Um lugar onde não conseguimos ver espaço para nossa vida. A alma, então, fica ofegante, sem ar, buscando um lugar onde o horror não seja a regra.

Esse lugar pode ser um mundo invisível, o passado, um paraíso, a pessoa desejada, ou, o que às vezes é a mesma coisa, um outro inferno, como o mundo, ainda que feito da substância dos pesadelos. Quando esse terreno encontra gênios literários, o horror pode virar beleza.

A descrição acima está muito próxima do que o filósofo judeu britânico Isaiah Berlin (século 20) pensava da Alemanha (ainda que neste momento a Alemanha não existisse como unidade política) dos séculos 17 e 18, devido as terríveis guerras religiosas entre católicos e protestantes, "a Guerra dos 30 Anos".

O resultado foi uma Alemanha devastada e reduzida à "Idade Média". Enquanto França e Inglaterra nadavam de braçada em direção à modernização burguesa industrial, os alemães se afogavam no ressentimento e na melancolia. Nascia o romantismo. Essa Alemanha foi seu o berço.

A historiografia marxista costuma dizer (com razão) que o romantismo é a primeira grande ressaca da Europa com a modernização burguesa. A tese de Berlin não nega este fato, mas ilumina elementos sutis com relação aos afetos românticos.

A modernidade é bipolar. Quando acorda bem, é iluminista, científica e progressista, assim como nós quando acordamos acreditando em nossa capacidade de produzir o sucesso material em nossas vidas.

Mas quando ela acorda mal, é romântica, ciente da hostilidade do mundo e em dúvida com relação à capacidade de sua grande criação, o iluminismo racionalista e técnico-científico. Assim como nós quando acordamos em meio a madrugada sentindo a solidão de quem investiu a vida em dinheiro, profissão e sucesso material às custas dos vínculos afetivos pouco eficazes.

Mas, se o romantismo é mal-estar com o mundo burguês, ele é também fruto do mesmo mundo burguês e sua esperança na capacidade do indivíduo criar sua própria vida e sonhar com um futuro que seja autêntico e livre de convenções limitantes. O romantismo é antes de tudo uma afetividade angustiada com um mundo que nega aos homens e mulheres sua espontaneidade. Uma espontaneidade recém-adquirida graças à liberdade moderna.

Em março e abril de 1965, Berlin deu um série de conferências na National Gallery of Art em Washington, EUA, como parte do programa conhecido como The A. W. Mellon Lectures in the Fine Arts. Estas conferências foram publicadas em 2001 com o título "The Roots of Romanticism", Princeton University Press, organizadas pelo editor da obra de Berlin, Henry Hardy. São quatro conferências imperdíveis tanto para os interessados no romantismo quanto para os interessados no pensamento do próprio Berlin.

O romantismo é um grande ataque ao iluminismo e sua fé na eficácia e na ciência da razão. Por isso, na segunda das conferências, Berlin identifica no pietismo alemão do século 17 a grande matriz romântica e não nos delírios das caminhadas do solitário Rousseau. Os pietistas eram de classe média baixa, homens de letras, que liam a mística alemã medieval, principalmente autores como o místico do século 14 Meister Eckhart.

Os petistas viam o mundo como um lugar tomado pelos horrores do mal e por isso fugiam para o campo, viviam em silêncio, estudavam, e por isso mesmo tinham uma vida interior de enorme força e violência. A vida como drama, e não como "uma agenda" (como viam os iluministas).

Em especial, o teólogo e poeta piestista J.G. Hamann (1730-1788), amigo pessoal de Immanuel Kant, lerá o conceito de "Abgrund" ekhartiano, entendido pelo medieval como "abismo sem fundo" de uma alma que se descobre feita da matéria de Deus, como sendo a realidade de uma alma obscura e misteriosa que não cabe na razão, mas que é presa num mundo que não é sua casa. O exílio no mundo é a marca deste "mago do Norte", como ficou conhecido.

O romantismo nos legou esse sentimento sem cura de que criamos um mundo no qual não nos reconhecemos.

sexta-feira, 6 de setembro de 2013

Vitrines holandesas - J.P. Coutinho

Você, leitor, que é pessoa versada em novas tecnologias, conhece o Google Now?
Eu não conheço. Eu não conhecia. Até ler Claire Cain Miller em prosa dominical para "The New York Times". Instrutivo.
O Google Now é um novo "app" (para usar a linguagem cafona dos ciberfanáticos) que envia informação para o utilizador mesmo antes de nós precisarmos dela.
Conta a autora que, depois da inscrição no Google Now, o bicho deu sinais de vida no celular. Com uma sugestão: era preciso sair 15 minutos mais cedo de casa para chegar no horário ao jantar. Isso porque o trânsito no centro estava uma barbaridade. Como foi possível ao Google Now saber tudo isso?
Sabendo. Cruzando informação. Primeiro, o "app" foi às reservas do OpenTable no Gmail da autora, só para confirmar a hora da reserva no restaurante.
Depois, através da localização do celular, deu uma espreitada no Google Maps, confirmou os endereços (da casa e do restaurante), fez as contas ao trânsito e deu a sua sentença. Era preciso sair 15 minutos mais cedo. O cenário é puro Philip K. Dick. Só na ficção científica o futuro é antecipado no presente de forma a alterar esse mesmo futuro. Existe até um conto de Mr. Dick, "Minority Report", que deu filme tolerável. Mas, como sempre, divago.
Ou, como sempre, talvez não. Porque essa pequena história não horroriza apenas pela forma totalitária como ela condiciona o futuro, transformando cada ser humano numa espécie de marionete da tecnologia.
A história horrorizou Claire Cain Miller pela quantidade de informação que uma empresa é capaz de saber sobre um ser humano. Onde ele está. Onde ele mora. Onde ele vai jantar. E até que rota ele costuma fazer para chegar do ponto A ao ponto B.
Não sei se o Google Now dá uma olhada no cardápio do restaurante e, atendendo ao histórico gastronômico da comensal, vai encomendando o filé no ponto e aquela garrafa de vinho que é aberta em ocasiões especiais.
Porque chegará o dia em que o Google Now saberá por antecipação quais são as nossas ocasiões especiais: lendo torpedos apaixonados ou até medindo, de cada vez que encostamos o ouvido ao celular, o nosso batimento cardíaco enamorado. E saberá tudo isso porque fomos nós a fornecer as informações mais relevantes sobre a nossa existência.
O recente escândalo com a Agência de Segurança Nacional dos Estados Unidos é um caso exemplar. Sim, mil vezes sim: não cabe ao governo americano violar grosseiramente a privacidade de cidadãos e estrangeiros, espiolhando e-mails e contas de Facebook.
Mas, oh Deus, é tão fácil e tão tentador! Antigamente, espionagem era coisa difícil. Perigosa. Demorada. Era preciso vigiar o suspeito --dias, semanas, meses. Conhecer as suas rotinas com precisão de mulher despeitada. Depois, era preciso entrar lá em casa, instalar grampos, sair sem deixar rastro.
E depois vinham novos dias, semanas ou meses em que era preciso escutar com paciência de santo todas as conversas, todos os suspiros, todos os roncos do sujeito.
Hoje, uma distopia como o "1984" de George Orwell seria incompreensível. Não é preciso nenhum aparato totalitário para saber quem somos, o que somos, o que fazemos, onde estamos, do que gostamos, do que não gostamos, com quem vivemos, onde nascemos, onde estudamos, o que estudamos, o que fazemos.
Nós próprios fornecemos essa longa lista de privacidades que fariam as delícias das antigas polícias secretas dos regimes totalitários. Alegremente. Publicamente. Voluntariamente. E cedemos por quê?
O filme é fraco, mas a frase é primorosa: "Vaidade: definitivamente, o meu pecado favorito". Assim falava "O Advogado do Diabo", pela boca diabólica de Al Pacino.
Que o mesmo é dizer: mergulhados na nossa irreprimível condição narcísica, usamos a tecnologia e as redes sociais para montar pequenos altares públicos aos nossos umbigos privados.
E, claro, nessa adoração onanista acabamos por destruir a mais importante conquista da civilização ocidental: esse espaço íntimo onde os olhos de terceiros não entram.
Nada disso desculpa os abusos do poder político? Fato. Mas quem não quer ser tratado como carne para canhão não deve exibir-se nas vitrines holandesas dos bairros vermelhos da internet.

O fascismo do PT contra os médicos - Pondé

O PT está usando uma tática de difamação contra os médicos brasileiros igual à usada pelos nazistas contra os judeus: colando neles a imagem de interesseiros e insensíveis ao sofrimento do povo e, com isso, fazendo com que as pessoas acreditem que a reação dos médicos brasileiros é fruto de reserva de mercado. Os médicos brasileiros viraram os "judeus do PT".
Uma pergunta que não quer calar é por que justamente agora o governo "descobriu" que existem áreas do Brasil que precisam de médicos? Seria porque o governo quer aproveitar a instabilidade das manifestações para criar um bode expiatório? Pura retórica fascista e comunista.
E por que os médicos brasileiros "não querem ir"?
A resposta é outra pergunta: por que o governo do PT não investiu numa medicina no interior do país com sustentação técnica e de pessoal necessária, à semelhança do investimento no poder jurídico (mais barato)?
O PT não está nem aí para quem morre de dor de barriga, só quer ganhar eleição. E, para isso, quer "contrapor" os bons cidadãos médicos comunistas (como a gente do PT) que não querem dinheiro (risadas?) aos médicos brasileiros playboys. Difamação descarada de uma classe inteira.
A população já é desinformada sobre a vida dos médicos, achando que são todos uns milionários, quando a maioria esmagadora trabalha sob forte pressão e desvalorização salarial. A ideia de que médicos ganham muito é uma mentira. A formação é cara, longa, competitiva, incerta, violenta, difícil, estressante, e a oferta de emprego descente está aquém do investimento na formação.
Ganha-se menos do que a profissão exige em termos de responsabilidade prática e do desgaste que a formação implica, para não falar do desgaste do cotidiano. Os médicos são obrigados a ter vários empregos e a trabalhar correndo para poder pagar suas contas e as das suas famílias.
Trabalha-se muito, sob o olhar duro da população. As pessoas pensam que os médicos são os culpados de a saúde ser um lixo.
Assim como os judeus foram o bode expiatório dos nazistas, os médicos brasileiros estão sendo oferecidos como causa do sofrimento da população. Um escândalo.
É um erro achar que "um médico só faz o verão", como se uma "andorinha só fizesse o verão". Um médico não pode curar dor de barriga quando faltam gaze, equipamento, pessoal capacitado da área médica, como enfermeiras, assistentes de enfermagem, assistentes sociais, ambulâncias, estradas, leitos, remédios.
Só o senso comum que nada entende do cotidiano médico pode pensar que a presença de um médico no meio do nada "salva vidas". Isso é coisa de cinema barato.
E tem mais. Além do fato de os médicos cubanos serem mal formados, aliás, como tudo que é cubano, com exceção dos charutos, esses coitados vão pagar o pato pelo vazio técnico e procedimental em que serão jogados. Sem falar no fato de que não vão ganhar salário e estarão fora dos direitos trabalhistas. Tudo isso porque nosso governo é comunista como o de Cuba. Negócios entre "camaradas". Trabalho escravo a céu aberto e na cara de todo mundo.
Quando um paciente morre numa cadeira porque o médico não tem o que fazer com ele (falta tudo a sua volta para realizar o atendimento prático), a família, a mídia e o poder jurídico não vão cobrar do Ministério da Saúde a morte daquele infeliz.
É o médico (Dr. Fulano, Dra. Sicrana) quem paga o pato. Muitas vezes a solidão do médico é enorme, e o governo nunca esteve nem aí para isso. Agora, "arregaça as mangas" e resolve "salvar o povo".
A difamação vai piorar quando a culpa for jogada nos órgãos profissionais da categoria, dizendo que os médicos brasileiros não querem ir para locais difíceis, mas tampouco aceitam que o governo "salvador da pátria" importe seus escravos cubanos para salvar o povo. Mais uma vez, vemos uma medida retórica tomar o lugar de um problema de infraestrutura nunca enfrentado.
Ninguém é contra médicos estrangeiros, mas por que esses cubanos não devem passar pelas provas de validação dos diplomas como quaisquer outros? Porque vivemos sob um governo autoritário e populista.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Os pássaros na meia-idade - J.P. Coutinho

Um dos grandes mistérios de Portugal é saber por que motivo as gaivotas lusas não se assustam com os humanos. Várias vezes caminhei por entre a bicharada, que continua tranquilamente as suas rotinas.

Séculos e séculos de convívio apertado com uma pátria de marinheiros acabaram por domesticar as aves. Em Portugal, um filme de Alfred Hitchcock sobre gaivotas assassinas seria tão improvável como um filme sobre gaivotas assustadas. Elas não querem saber de nós para nada.

O mesmo não acontece com os pássaros de Hitchcock, que fazem agora 50 anos. Será preciso resumir a história do filme?

Talvez, para o auditório juvenil. Uma jovem "socialite" de São Francisco (a divina Tippi Hedren, em estreia cinéfila) conhece e apaixona-se por Mitch (Rod Taylor) numa loja de animais. Acaba por segui-lo até Bodega Bay (delicioso nome). As aves começam a atacar pouco depois. Mas por que atacam as aves, afinal? Passaram 50 anos e ninguém conseguiu explicar ainda. Existem tentativas.

Anos atrás, cientistas da Universidade de Lousiana afirmaram que os pássaros atacavam por influência de uma toxina que os enlouquecia. O próprio Hitchcock, confrontando-se com o fenômeno na década de 60, teria encontrado aí a inspiração para as suas aves assassinas. O conto de Daphne du Maurier, que serviu de base para o roteiro, não passou de um pretexto.

É uma boa tentativa de explicação. Que, como é evidente, retira o elemento mais importante do filme: o seu sinistro mistério.

As aves atacam porque atacam. É a explicação mais simplória --e inquietante. Quem disse que o mal tinha sempre uma justificação racional, ou teológica, ou científica?

Verdade que a nossa civilização não lida bem com essa possibilidade. Basta olhar para a história da cultura ocidental. O mal nasce da ignorância, diziam os clássicos gregos e seus herdeiros iluministas no século 18. O mal nasce da nossa irremediável perdição depois da Queda, dirão os doutores da igreja. O mal nasce da pobreza e da miséria, dirá o pessoal marxista de Porto Alegre.

Ou então o mal nasce de um desequilíbrio orgânico ou químico que a ciência moderna acabará por resolver. Tudo é possível, exceto admitir que o mal está entre nós sem nenhuma explicação, nenhuma justificação. Nenhuma cura ou redenção.

O primeiro som que escutamos em "Os Pássaros" é, precisamente, o som dos pássaros: na rua, quando a moça caminha; na loja, quando encontra o rapaz; e em todas as cenas do filme --o chilrear constante e vulgar, que faz parte da nossa paisagem cotidiana.

Eis a assustadora premissa de Hitchcock: e se um dia aquilo que é banal se converte em uma sombra de destruição e morte? Pior ainda: e se essa sombra emerge com a mesma ferocidade misteriosa com que se dissipa?

Mas existe uma segunda tentativa de explicação. Sabemos que as pragas bíblicas não aconteciam por acaso. Eram uma forma tangível de Deus castigar a licenciosidade dos homens.

Um moralista misógino como Hitchcock, para quem as mulheres eram essa fonte permanente de fascínio e temor, não seria insensível à hipótese: as aves atacam, primeiro que tudo, o atrevimento de Tippi Hedren na caçada do seu homem.

Não por acaso, ela é a primeira vítima de uma gaivota quando pretende seduzir Mitch.

E a punição continua: quando ela decide ficar mais uns dias no vilarejo e, finalmente, quando ela se confronta no quarto com as aves enlouquecidas. Ao desfalecer perante os golpes animalescos, é o nome de Mitch que ela pronuncia --um gemido orgástico de prazer que é Hitchcock "vintage".

Mensagem: Tippi Hedren é o agente corruptor que traz a desgraça para a comunidade. Sem surpresa, as aves só concedem uma trégua quando ela abandona a comunidade --assombroso plano final, em que o carro se afasta e as aves permanecem, guardiãs majestáticas.

No panteão dos filmes de Hitchcock, é provável que "Os Pássaros" não esteja na "pole position".

Um erro. Pela décima ou centésima vez, assisti ao filme para brindar aos seus 50 anos. E garanto que não encontrei uma única ruga nesta gloriosa meia-idade. O mesmo brilhantismo formal. E, claro, a mesma perversidade moral e metafísica.

Tudo coisas que as gaivotas de Lisboa não conhecem. Olho para elas através do vidro, passeando calmamente entre os humanos. Sim, talvez sejam imunes a toxinas. Ou, então, são umas deliciosas devassas.

Em um mundo melhor - Pondé

É possível um mundo melhor? Sim e não. Sim, é possível um mundo melhor a começar por melhores remédios, casas, escolas, hospitais, aviões, democracia (ainda acredito nela, apesar de ficar de bode às vezes).

Não, não é possível um mundo melhor porque algumas coisas não mudam, como o caráter humano, suas mentiras e vaidades, sua violência, mesmo que travestida de civilidade, nossas inseguranças, nossa miséria física e mental, nossa hipocrisia. Nossas ambivalências sem cura. Os valores são incomensuráveis. Você até pode achar que na vida vale mais a pena "ser" do que "ter", mas isso pode ser apenas um modo infantil de ver as coisas: não há "ser" sem o "ter" que sustenta tudo.

A famosa frase "que vão os anéis e fiquem os dedos" às vezes mais parece ser bem o contrário, "que vão dedos e fiquem os anéis", porque os diamantes são eternos, e os dedos, não.

Resumindo: mesmo a tecnologia e a ciência, grandes fatores positivos, podem ser elas mesmas terríveis. Não é outro o sentido de se perguntar "como educar depois de Auschwitz?", como se pergunta o filósofo Theodor Adorno. Mesmo a democracia pode virar coisa de "black blocs" ou demagogos que juram confiar na "sabedoria popular". E isso dá bode.

Recentemente revi o filme "Em um Mundo Melhor", de Susanne Bier, de 2010. Trata-se de um filme bastante didático, bom para escolas. Um médico sueco trabalha em algum lugar infeliz da África, enquanto sua família derrete na Dinamarca onde mora.

Seu filho é objeto de bullying (chamam-no de "rato" pelo dentes feios que tem e esvaziam o pneu da sua bicicleta o tempo todo). Ele nunca reage. É tímido e tem medo dos mais fortes. Sabe que se reagisse apanharia mais. Muitas vezes, a essência da coragem é perder o medo de sofrer além do que já se sofre. A verdade da coragem não é querer vencer, mas perder o medo de perder tudo que se tem.

Escolas de crianças são um escândalo. Um depósito de violência de todo tipo. Um lugar especialmente indicado se quisermos duvidar da existência de Deus usando o famoso argumento a partir do mal ("argument from evil", como dizem os filósofos da religião americanos): se Deus existe e é bom e todo-poderoso, como o mundo pode ser mau como obviamente é?

Há todo tipo de resposta para isso, e elas compõem o que em teologia se chama "teodiceia". Qual é o sentido de ser bom na vida? Há garantias de que o bem compensa? Não, não há, nenhuma.

Eu concordo com o filósofo Isaiah Berlin: não há teodiceia possível. Os valores são incomensuráveis entre culturas, pessoas, épocas históricas. Qualquer utopia não passa de um surto infantil projetado sobre o mundo. Não vai mais longe do que uma história de Branca de Neve.

Voltando ao filme. O médico é contra violência física. E vive isso de modo corajoso, não se pode negar. A vida que leva na África é prova de seu caráter. Enfrenta um sujeito que bate na sua cara na Dinamarca, quando está visitando sua mulher e filhos, de modo digno, revelando a estupidez que está por trás do brutamontes idiota.

Ela quer o divórcio porque se sente sozinha, é óbvio, e, aparentemente, além de deixá-la sozinha, ele andou comendo alguém por aí... Santo, mas nem tanto... Você pode salvar o mundo enterrando sua família. Olha aí a incomensurabilidade de que fala Berlin.

Ao final, seu princípio de não violência é testado na África e ele perceberá que para tudo existe um basta, e às vezes a violência é tudo que resta. Os pacifistas são também gente infantil.

Mas onde está esse mundo melhor no filme? A vida em casa degringola. O filho humilhado encontra um amigo que o protege na escola. Um menino corajoso, decidido e violento, que se move no mundo de modo oposto aos princípios do médico.

Na verdade, o menino é um desesperado, solitário, que acaba de perder a mãe de câncer, num processo doloroso que sutilmente o filme parece indicar ter chegado à eutanásia.

O mundo melhor parece ser aquele no qual as pessoas podem errar, pedir perdão e ser perdoadas. Um mundo melhor não é um mundo sem violência ou ambivalência, mas um mundo onde existe o perdão.

Salmos chilenos - Pondé

Dias atrás entrei na catedral de Santiago do Chile. Minha mulher, discípula de Guimarães Rosa, para quem "quanto mais religião melhor", adora todo e qualquer santo.

Eu, mais miserável nesse assunto, apesar de não religioso, sou facilmente capturado pelo aspecto estético e sublime de templos sagrados. Foi um prazer ver e ouvir aquela missa "en chileno".

A catedral silenciosa, discreta e com pouca luz, com sua altura gigantesca, nos ajudava a lembrar nosso lugar no mundo -que não me venham os inteligentinhos fazer o blá-blá-blá da crítica à religião, porque a conheço desde o jardim da infância.

Sentir-se "em seu justo lugar no mundo" é parte clássica de toda boa espiritualidade, contra esse narcisismo dos "direitos do Eu total" de hoje, essa coisa "ninja brega".

Este "justo lugar no mundo" é parte daquilo que o historiador das religiões Mircea Eliade chama de perceber que não somos o "axis mundi" (o eixo do mundo). Toda verdadeira espiritualidade deve nos ajudar a vivenciar este "descentramento" de nosso próprio valor.

O mistério me encanta e me faz sentir menos banal. A sensação da banalidade de tudo me esmaga continuamente. Sou um peregrino da falta de sentido. Uma testemunha da noite escura da alma de San Juan de la Cruz e Terrence Malick. Não levo a sério ateus militantes que ainda acham que ateísmo é "evolução espiritual". Para mim, ateísmo é, apenas, o modo mais óbvio de ser e um estágio elementar em filosofia.

Fiquei ateu com oito anos. Alguém poderia dizer que com os anos me tornei um ateu encantado pelo "personagem" Deus e pela possibilidade de existir o perdão no mundo, justamente porque, no fundo, não o merecemos. Sou cego, mas pressinto o espaço à minha volta.

O padre em sua homilia falava da alegria da vida. O papa Francisco quando cá esteve tocou neste tema, falando da "religião da alegria". Não se trata de autoajuda, como pode parecer aos desinformados, mas da mais fina teologia moral cristã (e judaica também). O que é essa alegria? Vejamos.

A vida é precária. A pobreza (material, espiritual, psicológica) é como a gravidade, na hora em que relaxamos, ela nos consome. É uma questão de tempo. Nosso caminho é "para baixo". Não é à toa que tomamos antidepressivos o tempo todo, cada um se vira como pode. A solidariedade na melancolia devia nos unir a todos. O que não perdoo na autoajuda é que ela mente para nosso justo desespero dizendo que ele é mera questão de incompetência.

É aqui que começa a consistência da teologia da alegria a qual se refere o papa Francisco: temos todas as razões "materiais" do mundo para sermos tristes, o milagre é não sermos tristes todo o tempo.

Confiar na vida é quase impossível. A fé na vida é um mistério e um dom. Muito mais caro do que a inteligência e a cultura -não as desprezo, porque inclusive elas são quase tudo que tenho.

Este é o sentido de fé como "estar acompanhando" em sua encíclica "A Luz da Fé".

A alegria da qual falava o padre chileno e o papa Francisco é a "alegria teologal", aquela que nasce das três virtudes teologais básicas: a esperança, a fé e a caridade (o amor).

Ter esperança, crer na vida e amar são experiências que separam a infância espiritual da maturidade d'alma. O desespero é o caminho mais curto entre dois momentos na vida. A esperança é que é o milagre para quem enxerga o mundo como ele é. Por isso, toda literatura espiritual séria começa pelo vale das sombras.

Dizer que uma virtude é teologal é dizer que ela é fruto da graça de Deus, não uma dedução a partir dos fatos do mundo. Dos fatos, apenas deduzimos o desespero. Mas, por isso mesmo, esta alegria, quando nos visita, tem o hálito divino, por sua própria quase total impossibilidade de ser, para quem reconhece o vale das sombras à nossa volta. Na mística, esta alegria pode nos levar às lágrimas. Este é o conhecido "dom das lágrimas", marca de quem vê a beleza do mundo em meio ao véu absoluto do desespero.

Nada a ver com religião como muleta, mas sim com uma espiritualidade de quem caminha só, eternamente, entre sombras.

sábado, 17 de agosto de 2013

Luz no fim do eixo - Alvaro Pereira Junior

Na defensiva, admitindo erros. Quem diria, foi essa a imagem nos últimos dias de Pablo Capilé, o outrora inabalável líder do coletivo Fora do Eixo.

Até há pouco, só quem sabia do Fora do Eixo --originário de Cuiabá, surgido em festivais independentes, hoje tentando colar também em movimentos populares-- era a turma pequena que acompanha o cenário musical. Já escrevi muito e criticamente sobre o FdE. Por anos, na "grande mídia'', uma voz solitária.

Mas vieram as manifestações de junho, as transmissões da Mídia Ninja (ao vivo, de dentro das passeatas) e a revelação de que os ninjas eram bancados pelo Fora do Eixo.

Seguiu-se um interesse natural, culminando no programa "Roda Viva" da semana retrasada. Os entrevistados foram Capilé e Bruno Torturra. Mesmo que boa parte dos entrevistadores não entendesse nada, fez-se uma pergunta crucial: de onde vem o dinheiro do FdE?

Assim, já de início, foi possível saber que a tropa do revolucionário, do antiestablishment, do inimigo do capitalismo Pablo Capilé vive de dinheiro de governos e de grandes corporações (por meio dos chamados "editais"). De qualquer governo (PT, PSDB etc.) e de qualquer corporação (Petrobras, Vale, Banco do Brasil, Itaú Cultural, o que pintar).

No geral, Capilé e Torturra saíram-se bem. Ironicamente, parece que o bom desempenho foi o estopim da reação. Como se algumas pessoas tivessem dito: "O Fora do Eixo vai sair por cima? Já me dei mal com eles, sei quem são. Vou contar tudo". Uma tormenta se armou na internet.

Começou com o depoimento da cineasta Beatriz Seigner, que se ligou a eles e sentiu-se enganada. Prosseguiu com o testemunho de Laís Bellini, ex-militante, apontando as semelhanças com uma seita. E aumentou com dezenas de outros desabafos.

Assim, foi possível esboçar o "modus operandi" do FdE.

a) são uma indústria de ganhar editais;

b) muito raramente pagam cachês;

c) operam por dentro da política partidária e do aparelho estatal, principalmente secretarias de Cultura (quase sempre petistas) e o próprio MinC;

e) são uma máquina de autodivulgação, inflando os números dos eventos que organizam, para conseguir mais visibilidade com patrocinadores e políticos;

f) sob o slogan "trabalho é vida", jovens que vivem nas Casas Fora do Eixo dedicam-se de graça, sete dias por semana, a essa atividade publicitária, como "formigas felizes".

A expressão "formigas felizes" não é de ninguém "de direita", "rancoroso" ou "analógico", como o FdE costuma desqualificar seus críticos. Está em um texto no Facebook da americana Shannon Garland, 31, doutoranda do Departamento de Música da ultraprestigiosa Universidade Columbia, em Nova York.

Ela estuda a música independente sul-americana. Fala ótimo português, entende o Brasil. Colaborou com o Fora do Eixo, chegando a passar dois dias por semana na casa de São Paulo.

Em dezembro de 2012, publicou um artigo revelador: "The Space, the Gear, and Two Big Cans of Beer" (o espaço, o equipamento, e duas latonas de cerveja).

O texto antecipa a discussão de hoje. Aponta que o Fora do Eixo é uma organização voltada para a promoção de si própria. Os festivais, as bandas, tudo segundo plano. O importante é fazer coisas, qualquer coisa, para que depois as formigas felizes as promovam artificialmente na internet.

Shannon Garland se diz decepcionada com a unanimidade pró-FdE no meio acadêmico, incluindo pesquisadores que admira. Lamenta que Hermano Vianna, Ronaldo Lemos e Oona Castro "elogiem tanto" a organização de Capilé.

Mas há pelo menos uma exceção. André da Fonseca, da Universidade Estadual de Londrina, apresenta o que chama de "visão crítica sem rancores ou deslumbres". Escreveu um artigo valioso, "Vida Fora do Eixo", sobre a dedicação obcecada dos militantes.

E um dos maiores especialistas do mundo em coletivos e cultura alternativa também quebra o consenso. É George Yúdice, da Universidade de Miami, profundo conhecedor do Brasil.

Em depoimento no "Face", ele conta como apresentou o FdE a grupos da América Central e, quando percebeu, fora passado para trás --o FdE tinha tomado conta do dinheiro e pregado sua marca em eventos que nada tinham a ver com o coletivo brasileiro.

O juiz da Suprema Corte americana Louis Brandeis (1856-1941) dizia: "A luz do sol é o melhor desinfetante; a luz elétrica, o policial mais eficiente". Figura das sombras, das manobras, imperador de um submundo paralelo, Pablo Capilé enfrenta pela primeira vez a exposição pública. O resultado tem sido devastador.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A noite escura de Terence Malick - Pondé

"Amor Pleno", novo filme de Terrence Malick, é um exemplo do que o místico espanhol do século 16 San Juan de la Cruz chamou de "noite escura da alma". Não é à toa que o padre (Javier Bardem) tem um discurso muito colado ao do místico espanhol. Ele é o personagem central da narrativa. Como sempre, sem teologia e filosofia, não se entende Terrence Malick.

Por consequência, o filme está próximo do texto bíblico "Cântico dos Cânticos", peça fundamental da literatura mística ocidental, influência marcante no místico espanhol: "Onde Te escondestes que não Te encontro, meu Deus?". No "Cânticos", o amor entre Deus e a humanidade é representado pelo amor entre um homem e uma mulher, suas agonias, prazeres e ausências. "A Noite Escura da Alma" é, como "Cânticos", um texto erótico.

"O amor de Cristo pela sua igreja é como o amor de um homem e uma mulher", diz Bardem. Eis a chave para entendermos o poema místico que é "Amor Pleno". No cristianismo, amor não é mero afeto, mas a ação que nos faz existir. Sem ele, a vida esvazia.

Nesta chave, o amor entre Ben Affleck e "suas" duas mulheres está também "sob" o véu da noite escura da alma, assim como está o amor do padre por Deus e o mundo. Ele é incapaz de amar, elas sofrem por isso.

O filme encerra com a imagem do Mont Saint-Michel, na França, local onde o casal vai no começo de seu amor. Esta abadia é símbolo da vida monástica medieval. Os filósofos vitorinos (Hugo e Ricardo da Abadia de São Vitor, século 12), em sua teoria sobre o amor, entendiam que o amor, posteriormente dito romântico, era da mesma substância do amor de Deus.
Ricardo Cammarota




Assim como é difícil para nós mantermos o amor por Deus, é difícil sustentarmos o amor entre um homem e uma mulher. Nossa natureza "caída" não suporta o "peso" do amor. Este "peso" assume várias formas, entre elas, o compromisso com ele, principalmente no vazio que o cotidiano instaura em nosso coração e corpo sedentos.

Nossa natureza tende "para baixo", para o tédio e a insatisfação, como diz a mulher francesa no filme quando se refere às duas mulheres que existe nela: uma tende para o amor, para o alto, a outra para baixo, para a terra.

Não é à toa que ela, a francesa, após uma longa conversa com a amiga italiana, niilista e entediada, chega ao adultério, símbolo máximo do tédio e da degradação do amor. Quando nos distanciamos do amor, nos dissipamos num desejo que nos leva ao nada.

Mas, o que vem a ser esta "noite escura da alma"? Quando falamos de mística, pensamos normalmente em êxtase, em "gozo místico". Mas, a "noite escura" é o momento em que a alma, conhecedora de Deus, deixa de senti-lo no seu cotidiano, o que a leva à solidão, ao desespero e à dúvida. Uma verdadeira mística da agonia.

Neste momento, o padre lembra a máxima do Evangelho: "Você deve amar", portanto, o amor não é mero sentimento, mas sim uma ação, como é dito no filme. Agir com amor, mesmo que não sintamos o amor. Para ele, continuar cuidando dos doentes, para o casal, continuar a cuidar um do outro, porque longe do amor, somos todos doentes, umas criaturas da noite que vagam numa escuridão sem fim. No escuro, não é só o outro que desaparece, mas nós também.

O padre chega mesmo a lamentar o fato que, em seu ministério, ele deve "fingir" sentimentos que não tem, assim como um casal deve continuar a amar (esta é a condição do amor como "ação" e não mero sentimento) mesmo quando a paixão desaparece.

Quando nos sentimos longe do amor (de Deus), vemos nosso nada, isso deixa nossa alma inquieta, sedenta. Como é dito em "Árvore da Vida", filme anterior de Malick, a vida sem amor "flashes by", apenas passa. Esta é a chave para passarmos do "Árvore da Vida" ao "Amor Pleno". A responsabilidade dos que "amam menos", como diz o padre, se referindo a ele e a Ben Affleck, é maior, porque são eles que enxergam melhor o vazio no coração da vida.

Os ecos da "noite escura" atingem toda a existência, para além da teologia, adentrando a solidão nossa de cada dia. O drama maior não é não ser amado, mas ser incapaz de amar.

terça-feira, 30 de julho de 2013

Os falsários - J.P. Coutinho

Memórias falsas. Eis a nova descoberta científica publicada em revista da especialidade. Segundo a "Science", pesquisadores do Massachusetts Institute of Technology conseguiram implantar memórias falsas no cérebro de ratinhos. Já tinham cometido uma outra proeza no passado: apagar certas memórias. Agora, o desafio foi implantá-las. Conseguiram.

Ainda estamos longe do Santo Graal: apagar más memórias e, se possível, conferir a cada ser humano um passado glorioso. Mas o futuro, tal como o passado, promete. Ou não promete?

Robert Nozick (1938-2002), um dos grandes filósofos do nosso tempo, achava que não. No seu magistral "Anarchy, State, and Utopia", Nozick pedia-nos para imaginar a seguinte situação: existe uma máquina do prazer a que os seres humanos se podem ligar. E, por esse simples processo, ter prazer a vida inteira. Quem daria o primeiro passo?

Poucos. Existe algo de incômodo na ideia de uma felicidade eterna, porém falsa. E esse incômodo tem nome: verdade. Ou, para usar uma palavra cara aos românticos, "autenticidade".

Nós não queremos apenas que as nossas vidas sejam felizes. Queremos que essas vidas sejam autênticas e que a nossa felicidade seja o resultado de experiências, méritos ou virtudes reais.

Se tudo fosse resumido a critérios de prazer e desprazer, ninguém hesitaria em ligar-se à máquina de Nozick. E, no entanto, a maioria hesita.

Não conheço crítica mais devastadora ao utilitarismo nos tempos modernos. Seguindo o cálculo hedônico, o que interessa é proporcionar a maior felicidade ao maior número?

Não necessariamente, afirmava Nozick. Se a felicidade humana não é humana, ela perde qualquer valor para nós.

E o que é válido para a felicidade é válido para a infelicidade. Até porque a segunda é condição para haver a primeira.

Ironicamente, uma máquina de prazer permanente deixaria até de proporcionar prazer. Porque deixaria de haver contraste com as restantes iniquidades da existência: habitaríamos apenas um estado de normalidade entediante em que nada seria importante porque nada seria valorizado em si mesmo.

Sabemos o que é a felicidade porque sabemos o que é a infelicidade. E também porque aprendemos algo com as nossas infelicidades.

"Aprender" é o verbo: implantar memórias falsas já seria uma aberração ética. Mas apagar as más é mais que isso: é uma aberração epistemológica.

Sofremos como cães pelos erros que cometemos. Escolhas profissionais lamentáveis; amores cultivados e frustrados; atitudes egoístas, covardes, impensadas --quem atira a primeira pedra?

Mas sofremos e, com sorte, aprendemos. E existe algo de libertador (e de redentor) quando seguimos em frente e somos capazes de reconhecer os mesmos dilemas, as mesmas tentações, os mesmos traços de caráter --em nós e nos outros. E, claro, as mesmas consequências prováveis de certos atos e omissões.

É então que o passado, e sobretudo o insuportável passado, se torna nosso tutor privado: ao segredar-nos o que devemos evitar e abraçar com conhecimento de causa.

Todos precisamos de más memórias para evitar cometer os mesmos erros. Apagar essas memórias seria uma forma de nos condenarmos a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos. E a sofrimentos perpétuos. E a apagamentos perpétuos.

Talvez eu esteja sendo injusto. Talvez o objetivo das recentes descobertas seja outro: aliviar o sofrimento de soldados em situações de combate, por exemplo, apagando experiências traumáticas e colocando tardes de verão onde antes havia destruição e morte.

Sem falar de vítimas de crimes ou acidentes para quem um "reset" mental seria uma benesse. Sobre esses casos extremos, manda a prudência que nada diga.

Mas será preciso lembrar como as sociedades contemporâneas foram medicalizando os mais básicos sentimentos humanos --o medo, a ansiedade, a angústia-- procurando uma resposta química e imediata para eles?

Se hoje declaramos guerra às tristezas presentes, por que não declarar outra contra as tristezas passadas?

Quase todos recusamos a máquina de prazer de Nozick. Mas às vezes pergunto se o fazemos mesmo por questões de princípio --ou pela razão mais prosaica de que essa máquina não existe ainda.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

A espiritualidade das pedras. - Pondé

Meu Deus, como ter um "eu" cansa! Os místicos têm razão. Não é necessário ser um "crente" para ver isso, basta ter algum senso de ridículo para ver o quão cansativo é satisfazer o "eu". E a modernidade é toda uma sinfonia (ou melhor, uma "diafonia", contrário da sinfonia) para este pequeno "eu" infantil.

Outro dia, contemplava pessoas num aeroporto embarcando para os EUA com malas vazias para poder comprar um monte de coisas lá.

Que vergonha. É o tal do "eu" que faz isso. Ele precisa comprar, adquirir, sentir-se tendo vantagem em tudo. O "eu" sente um "frisson" num outlet baratinho em Miami. O mundo faz mais sentido quando ele economiza US$10. E o pior é que, neste mundo em que vivemos, faz mesmo sentido. Qualquer outra forma de sentido parece custar muito mais do que US$ 10.

A filosofia inglesa tem uma expressão muito boa que é "wants", para se referir a nossas necessidades a serem satisfeitas. Poderíamos traduzir de modo livre por "quereres". O "eu" é um poço sem fundo de "wants". Isso me deprime um tanto.

Como dizia acima, a modernidade é toda feita para servir ao pequeno autoritário, o "eu": ele exige mais sucesso, mais autoestima, mais saúde, mais dinheiro, mais beleza, mais celulares, mais viagens, mais consumo, mais direitos, mais rapidez, mais eficiência, mais atenção, mais reconhecimento, mais equilíbrio, melhor alimentação, mais espiritualidade para que ele não se sinta um materialista grosseiro.

Outra demanda do "eu" que enche o saco é querer se conhecer. Você conhece coisa mais chata do que alguém que tira um final de semana para fazer um workshop de autoconhecimento e aí vai para jardins "fakes" na Raposo? E pior, quem tira seis meses para se conhecer depois dos 40 anos e acha legal? O autoconhecimento só é sério quando deságua em autoironia.

O império do "eu" se revela quando vivemos pela angústia de torná-lo "resolvido". Nada é mais típico dessa angústia estéril do que alguém sempre atento às próprias dores.

Outra armadilha típica do mundinho do "eu" é a idolatria do desejo. A filosofia sempre problematizou o desejo como modo de escravidão, e isso nada tem a ver com a dita repressão cristã (que nem foi o cristianismo que inventou) do desejo. Problematizar o desejo tem mais a ver com um conhecimento sutil, fruto da experimentação que a realização do desejo sem idealizá-lo traz. A idealização do desejo é marca da condição adolescente ou reprimida.

O "eu" falante inunda o mundo com seu ruído. O "eu" mais discreto tece um silêncio que desperta o interesse em conhecê-lo. Mas hoje vivemos num mundo da falação de si, como numa espécie de contínuo striptease da alma. O corpo nu é mais interessante do que a alma que se oferece. Por isso toda poesia sincera é ruim (Oscar Wilde). O "eu" deve agir como as mulheres quando fecham as pernas em sinal de pudor e vergonha.

A alta literatura espiritual, oriental ou ocidental, há muito compreende o ridículo do culto ao "eu". Uma leveza peculiar está presente em narrativas gregas (neoplatonismo), budistas (o "eu" como prisão) ou místicas (cristã, judaica ou islâmica).

Conceitos como "aniquilamento" (anéantissement, comum em textos franceses entre os séculos 14 e 17), "desprendimento" (abegescheidenheit, em alemão medieval) e "aphalé panta" (grego antigo) descrevem exatamente esse processo de superação da obsessão do "eu" por si mesmo.

A leveza nasce da sensação de que atender ao "eu" é uma prisão maior do que atender ao mundo, porque do "eu" nunca nos libertamos quando queremos servi-lo. Ele está em toda parte como um deus ressentido.

Por isso, um autor como Nikos Kazantzakis, em seu primoroso "Ascese", diz que apenas quando não queremos nada, quando não desejamos nada é que somos livres. Muito próximo dele, o filósofo epicurista André Comte-Sponville, no seu maior livro, "Tratado do Desespero e da Beatitude", defende o "des-espero" como superação de uma vida pautada por expectativas.

Entre as piores expectativas está a da vida eterna. Espero que ao final o descanso das pedras nos espere. Amém.

segunda-feira, 22 de julho de 2013

Invasão de privacidade - Pondé

Quando Obama disse que ninguém pode viver com segurança e privacidade com 0% de inconveniência, pensei: Obama virou gente grande. Mas não foi assim que o mundo reagiu. Quase todo mundo ficou horrorizado, e eu, fiquei horrorizado com mais um show de infantilidade do mundo em que vivemos. É um mundo "teenager" mesmo.

E por que o Brasil seria vigiado? Talvez porque suspeita-se que o Brasil esteja na rota entre o dinheiro do crime internacional e terroristas. E a América Latina está à beira de uma virada socialista, só não sabe quem não quer ver. Corrupção, autoritarismo, gestão inepta da economia e populismo sempre foram paixões secretas do socialismo.

A CPI do "Obamagate" é um truque nacionalista (tipo Guerra das Malvinas) para desviar a atenção da nossa crise econômica, apesar de muitos brincarem de revolução enquanto a economia vai para o saco nas mãos de um governo que aumentou os gastos públicos com embaixadas em repúblicas das bananas, criação de ministérios inúteis e "investimento" na inadimplência como forma de ganhar votos.

A diferença entre um "teenager" (ainda que com PhD, PostDoc e livre-docência) e alguém que sofre para ser um pouco menos "teenager" é saber que o mundo não é preto e branco e que se você é responsável por muitas coisas, você nem sempre vive com luvas de pelica.

O mundo é uma terra abandonada pelos deuses, e temos que nos virar com o pouco que temos, a começar por uma espécie confusa como a nossa e que ainda acredita em borboletas azuis como salvação da vida.

Não é bonito o que o Obama fez. Mas todo mundo que tem as responsabilidades que o Obama tem faz coisas assim quando ocupa o lugar do Obama.

Por muito menos, vigiamos a geladeira para ver quantos iogurtes tem, os armários da cozinha para ver quantos sacos de açúcar tem, e as sacolas das empregadas para ver se elas não estão levando algum pacotinho de carne.

O mundo é um grande Big Brother, George Orwell acertou em cheio. A diferença é que nosso mundo não é uma ditadura pré-histórica como a do livro "1984", mas uma sociedade democrática que preserva direitos gays ao mesmo tempo que quer saber se eu e você estamos envolvidos num ataque a alguma embaixada no Mali ou que tipo de tênis e comida étnica curtimos.

Nada disso é bonito, apenas é assim. Para manter as coisas funcionando, pessoas tem que fazer coisas que não são muito bonitinhas. Eu sei que os inteligentinhos facilmente entram em surto, mas que vão brincar no parque, com segurança, de preferência.

As redes sociais, esse grande bacanal de narcisismo, são um prato cheio para sermos vigiados. Sites nos dão nosso perfil de consumo e nossa "linha da vida". Celulares nos avisam quando algo acontece em nossa conta e em nosso cartão de crédito, e isso tudo é muito "prático", não?

Este evento revela a óbvia violência à privacidade que as redes sociais significam. A ideia de que elas são uma ferramenta da democracia pode ser uma ideia também infantil.

Além de elas serem um elemento de alto risco com relação a linchamentos e violência espontânea, elas nos tornam vulneráveis de modo direto na medida em que estar "na rede" significa estar dependente de uma "teia" (de aranha) tecnológica de controle bastante vulnerável a tutela das empresas que nos oferecem a própria ferramenta. Por isso o nome é TI, tecnologias da informação.

Há muito se sabe que é mais fácil subornar um blogueiro do que um jornal gigantesco (o blogueiro é mais barato...). Agora fica mais claro ainda que a manipulação via redes sociais é muito maior do que via mídia "clássica".

Todo mundo sabe que não pode marcar encontros amorosos ilegítimos via e-mail ou mensagem de celular, como alguém fica escandalizado que a internet não seja segura? Parece papo de falsa virgem de 50 anos.

Em breve esqueceremos isso e continuaremos a postar fotos, falar bobagens, marcar revoluções no final de tarde e propor utopias que requentam a falida autogestão. E viajar para fazer compras em Miami com segurança e usando Visa.

Snowden, e seus 15 minutos, é mais um falso herói para falsos adultos.