segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

Falta de grana mata o amor porque ele perece diante da falta de horizontes



Afeto tem preço? Sim, tem. E, enquanto você não descobriu o seu preço, ainda não pensou a fundo no tema.

Algum tempo atrás, nesta coluna, escrevi que hoje em dia é difícil saber separar afeto de grana (referia-me especificamente ao amor entre pais e filhos, mas o tema vai além disso, tocando o amor romântico também). Recebi alguns e-mails de leitoras revoltadas dizendo que era um absurdo eu não ser capaz de separar amor e grana. Eu já acho o contrário. Enquanto não pensarmos claramente no quanto amor e grana se misturam, não veremos nenhuma fronteira entre os dois.
Em nossa época, mentiras viraram moeda de troca no mercado do pensamento público. Agradar aos outros é métrica de valor. Eu não jogo esse jogo.
Devemos escapar da armadilha comum de pensar que assumir um preço para o afeto implica ser uma pessoa interesseira. Claro que esse caso óbvio também existe. Penso em pessoas motivadas pelo afeto mesmo e que, tristemente, às vezes, se batem com o limite material delas. Não era outra coisa que o grande Nelson Rodrigues tinha em mente quando dizia que dinheiro compra até amor verdadeiro.
O fato é que grana é um potencializador da vida. Com ela você pode criar um ambiente no qual confiança, bem-estar e um forte sentimento de muitas perspectivas se abrem diante de você. Onde bons sentimentos nascem? Num final de semana prolongado em Roma ou no trânsito de oito horas para Praia Grande?
Grana cria horizontes no quais você se desenvolve e pode sonhar com melhores modelos de você mesmo. Grana dá a você a chance de ser generoso, ousado, seguro de si mesmo. No caso das meninas se dá a mesma coisa.
Acrescentaria que no caso das meninas existe também um delicado sentimento (às vezes enterrado no mais fundo do cotidiano) de que, se alguém te dá uma bijuteria no lugar de uma joia, você se sente uma bijuteria, e não uma joia. E, em alguma medida, com razão. Porque o preço de uma joia representa o valor investido na mulher para quem você dá essa joia.
Homens, que na maioria das vezes ganham mais e são mais escravos da obrigação do sucesso material, se sentem investidos de amor pela mulher quando ela demonstra serem eles a sua prioridade. Quando ela reconhece potência em tudo o que eles fazem –o que não significa só ganhar dinheiro.
Falta de grana mata o amor porque ele perece diante da falta de horizontes. Do sentimento de que a vida está acabada naquela fórmula pobre de ser. Num cotidiano em que a rotina é sempre a da falta de liberdade de escolha. A dificuldade de enxergar isso torna ainda mais o afeto dependente da grana. A mentira sobre isso torna o amor ainda mais barato porque mais indefeso diante das contingências do dia a dia.
Quer outro exemplo? Você se casa com um cara que tem uma ex-mulher. Se ele der muita atenção para ela e se preocupar muito em deixá-la "bem materialmente" mesmo depois da separação, você vai, sim, achar que ele ainda a ama. Não minta sobre isso só pra ficar bem com o marketing do bem, que deixa o mundo ainda mais cretino do que ele já é normalmente.
O caso do amor entre pais e filhos não é tão diferente, apesar de depender mais da classe social e da cultura do país. No Brasil, da classe média alta pra cima, se você não der um apartamento para cada filho, fracassou como pai.
Imagine que seu pai deixou sua mãe por uma mulher 20 anos mais nova do que ele, e que ele teve um filho com ela. Sei, sei, dizem por aí que todos os jovens tiram isso de letra hoje, mas isso é, também, uma mentira do marketing do bem.
Agora imagine que ele nega para você uma viagem para Paris nas férias, mas faz um lindo quarto de bebê com todas as frescuras que sua nova jovem mulher pede. Quando encontra com você, só fala do novo "irmãozinho". Que tal?
Invertamos a situação. Imagine que você dedicou 40 anos da sua vida para seu filho. Imagine que agora ele é bem-sucedido profissionalmente, mas deixa você viver numa casa de repouso miserável paga com sua aposentadoria.

Onde está a fronteira entre amor e grana aí? Em Roma ou Praia Grande?

domingo, 22 de janeiro de 2017

A Chegada - o fardo do tempo

O filme A Chegada (2016, Dennis Villeneuve) foi para mim um dos melhores rebentos de 2016. O enredo que, em princípio, poderia fazer a cabeça dos amantes de ficção científica - e somente isso - vai maravilhosamente além das expectativas.
Quando 12 naves extraterrestres pousam em diferentes locais do mundo ao mesmo tempo, o que nos resta? A resposta de Villeneuve: nos resta a linguagem, a comunicação. Nada mais difícil do que essa tarefa, a de entender e nos fazer entender.
Uma linguista (Amy Adams) é chamada para a árdua tarefa de fazer a comunicação homem-alienígena, e tem a ajuda de um físico (Jeremy Renner), que logo de cara anuncia que mais importante que a conversa, é a ciência. E logo então se pode inferir que um será o complemento perfeito do outro nessa relação: humana e exata ao mesmo tempo.
Mas para além da ficção científica e dos aliens - que passam a se comunicar diretamente com a linguista - há no enredo uma delicada relação do homem com outro extraterrestre: o tempo.
O tempo é o personagem mais importante dessa trama. Explico: Louise, a linguista, recebe um presente dos aliens, que entenderá apenas nos momentos finais do filme. Os ets (chamados de heptapodes) afirmam que Louise tem a arma para resolver qualquer questão humana importante: o domínio sobre o presente, o passado e o futuro, ou seja, o conhecimento completo do tempo.  E é aqui  que surge um dos conceitos mais fascinantes que Villeneuve parece propor: se você soubesse exatamente o que seria da sua vida, do começo ao fim, a viveria ainda assim? Eis a questão que um dos mais conhecidos filósofos indagou; Nietzsche com seu eterno retorno nos propõe o seguinte, em Gaia Ciência:


E se um dia, ou uma noite, um demônio lhe aparecesse furtivamente em sua mais desolada solidão e dissesse: ‘Esta vida, como você a está vivendo e já viveu, você terá de viver mais uma vez e por incontáveis vezes; e nada haverá de novo nela, mas cada dor e cada prazer e cada suspiro e pensamento, e tudo o que é inefavelmente grande e pequeno em sua vida, terão de lhe suceder novamente, tudo na mesma sequência e ordem – e assim também essa aranha e esse luar entre as árvores, e também esse instante e eu mesmo. A perene ampulheta do existir será sempre virada novamente – e você com ela, partícula de poeira!’.

– Você não se prostraria e rangeria os dentes e amaldiçoaria o demônio que assim falou? Ou você já experimentou um instante imenso, no qual lhe responderia: “Você é um deus e jamais ouvi coisa tão divina!”. Se esse pensamento tomasse conta de você, tal como você é, ele o transformaria e o esmagaria talvez; a questão em tudo e em cada coisa, “Você quer isso mais uma vez e por incontáveis vezes?‟, pesaria sobre os seus atos como o maior dos pesos! Ou o quanto você teria de estar bem consigo mesmo e com a vida, para não desejar nada além dessa última, eterna confirmação e chancela”.

Viveria essa vida, a mesma, da mesma forma, de novo e de novo e de novo? Essa é uma questão que não ouso responder. Mas Villeneuve responde a Nietzsche através de Louise. Com o que há de melhor e mais dolorido, dominando o tempo e a linguagem, a personagem aceita o fardo que só o tempo nos traz.