terça-feira, 16 de julho de 2013

A camisa do Feliciano (08/07/13) - Pondé

Nesses tempos sombrios de crise, somos obrigados a falar muito e por isso sempre acabamos falando demais. Precisamos de mais clareza, mas, como dizem por aí, a democracia é o regime do barulho, e no barulho o mais fácil é gritar "palavras de ordem", muito mais fácil para temperamentos que gozam em assembleias. Não é o meu caso, (in)felizmente.

No dia 29 de junho, aconteceu em São Paulo a Marcha para Jesus. Nela, o conhecido pastor e deputado Feliciano usava uma camisa na qual estava escrito "eu represento vocês".

Claro, de primeira, entendemos que ele quer dizer que representa os evangélicos que ali estavam. Não tenho tanta certeza: tenho amigos e conhecidos que são evangélicos e estão muito longe do que Feliciano diz representar. Não podemos jogar todos os evangélicos no mesmo "saco".

Mas me interessa hoje outra coisa: ele diz ser representante dos conservadores no Brasil. O conceito é complexo e pouco afeito a espíritos que gostam de falar para multidões. Mas é urgente dizer que Feliciano não representa o pensamento conservador no Brasil. Vou dar um exemplo "clichê" em seguida. Antes, vamos esclarecer uma coisa.

A tradição "liberal-conservative", como se diz comumente em inglês, se caracteriza por uma sólida literatura quase desconhecida entre nós: David Hume (sua moral), Adam Smith, Edmund Burke, Alexis de Tocqueville, Friedrich Hayek, T.S. Eliot, Michael Oakeshott, Isaiah Berlin, Russell Kirk, Theodore Dalrymple, John Gray, Gertrude Himmelfarb, Thomas Sowell, Phyllis Schafler, Roger Scruton, entre outros.

Não é à toa que matérias como a da "Ilustrada" do domingo 30 de junho falam que a Flip (poderia ter falado de qualquer outra atividade intelectual no país) é de esquerda: quase ninguém conhece a bibliografia "liberal-conservative" entre nós, porque a esquerda mantém uma poderosa reserva de mercado na vida intelectual pública no país, inclusive tornando um inferno a vida na universidade para jovens interessados neste tipo de bibliografia.

Esta reserva de mercado intelectual e ideológica inviabiliza pesquisas e trabalhos mesmo em sala de aula. Isso faz dos jovens intelectuais interessados nessa tradição uns fantasmas invisíveis, verdadeiras almas penadas, sem corpo institucional para atuarem. Mesmos os centros financiados por bancos investem apenas na bibliografia de esquerda.

Como toda visão política, os conservadores são diferentes entre si e nem sempre convivem bem com seus pares, principalmente quando saímos do livro e vamos para política partidária. Imagine alguém de uma esquerda "islandesa" sendo obrigado a engolir Pol Pot em seu clube intelectual.

O pensamento "liberal-conservative" se caracteriza por defender a sociedade de livre mercado, a propriedade privada, a liberdade de expressão e religiosa, pluralismo moral, a democracia representativa com "corpos médios" locais atuantes, uma educação meritocrática, emancipação feminina, tributação alta para grandes heranças, desoneração da classe trabalhadora, profissionais liberais e pequenos e médios empresários, Estado mínimo necessário (inclusive porque isso diminui a corrupção), saúde eficaz para a população.

E, não esqueçamos: opção liberal quanto à vida moral, cada um faz o que quiser na vida privada contanto que respeite a lei, e esta deve levar em conta esta liberdade privada.

Simplesmente não existe opção partidária no Brasil para quem pensa dessa forma. Por exemplo, dizer que os conservadores queimam bandeiras do movimento negro é uma piada. Isso deve fazer Joaquim Nabuco tremer em seu túmulo, já que ele, conservador, foi um dos principais intelectuais e defensores da abolição da escravatura no Brasil.

E aí voltamos à camisa do Feliciano. Ele não representa os conservadores no Brasil, a começar porque é alguém que mistura religião com política.

Deixe-me esclarecer uma coisa (vou usar um tema "clichê"): sou conservador e sou contra o projeto da cura gay e a favor do casamento gay.

E aí, esquerda: vamos conversar? Vamos parar de se xingar e sentar numa távola redonda e discutir o Brasil?

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá, estava navegando com o intuito de encontrar uma música específica da banda Noir Désir, que apesar de não lembrar o nome, não poderia ir dormir sem ouví-la. Já estava perdendo as esperanças de escutar música por música, meio sonolento e quase conformado em deixar para outro dia o prazer de ouvir o som que eu tanto queria e eis que me deparo novamente em seu blog. Confesso que tentei não ler o ultimo post, comecei a ler na esperança que me desse mais sono, mas não só li como também perdi o sono. Gostei muito do texto, mesmo para um ignorante como eu é uma leitura prazerosa e essa é uma impressão que carrego já das outras visitas que fiz. Bom, gostaria de retribuir o conhecimento e a cultura que você compartilha ao postar seus textos, e portanto vou deixar aqui o nome de duas canções dessa banda homônima ao blog, a primeira é a que eu buscava: Noir Désir - A l'envers A l'endroit; e a segunda segue o mesmo estilo: noir desir l'enfant roi. Ambas são fáceis de achar online. Já deixo avisado que tenho um gosto meio eclético e fascínio pelo que me é diferente, portanto sinta-se livre para gostar ou odiar. Vou voltarei em breve com mais tempo para ler os outros textos. Obrigado novamente e boa sorte!

André

flávia disse...

Olá, André. Que bom que gostou dos textos. tenho postado poucas coisas minhas, e mais coisas que tenho para mim como base.
E, talvez para sua surpresa, o nome do blog surgiu de uma música chamada Noir Desir, da banda Vive la Fête.
Mas adoro conhecer bandas novas e vou sim procurar por sua indicação!
Obrigada!